Louise
Agosto de 1975
A cama está vazia.
Louise, a monitora – vinte e três anos, braços e pernas curtos, voz áspera, jovial – está descalça sobre as tábuas rústicas e quentes da cabana a que deram o nome de Balsam (1) e reflete na ausência de um corpo no beliche de baixo, perto da porta. Mais tarde, os dez segundos que decorrem entre olhar e concluir servir-lhe-ão de prova de que o tempo é uma construção humana, capaz de abrandar ou de acelerar na presença de emoção, de químicos no sangue.
A cama está vazia.
A única lanterna da cabana, cuja ausência serve, mesmo durante o dia, para indicar que as raparigas foram à casa de banho, está no seu lugar, numa prateleira perto da porta.
Louise descreve lentamente um círculo, pronunciando o nome das raparigas que consegue ver.
Melissa. Melissa. Jennifer. Michelle. Amy. Caroline. Tracy. Kim.
Oito raparigas. Nove camas. Conta uma vez e volta a contar.
Por fim, quando não consegue adiar mais, deixa que um nome lhe aflore à mente: Barbara.
A cama vazia pertence a Barbara.
Fecha os olhos. Imagina-se a regressar, durante o resto da vida, àquele local e àquele momento: uma viajante do tempo, solitária, um fantasma, a assombrar a cabana chamada Balsam, a desejar que um corpo se materialize onde não se encontra nenhum. A desejar que a própria rapariga, Barbara, entre pela porta e diga que foi à casa de banho, que se esqueceu da regra de levar a lanterna, e peça desculpa de uma forma desarmante, como já aconteceu antes.
Mas Louise sabe que Barbara não fará nada disso. Pressente, por razões que não consegue bem articular, que Barbara desapareceu.
De todas as raparigas, pensa Louise, logo tinha de ser aquela a desaparecer.
Às 6h25, afasta a cortina e volta a entrar no espaço que parti- lha com Annabel, a monitora estagiária. Tem dezassete anos, é uma bailarina de Chevy Chase, no Maryland. Annabel Southworth está mais próxima em idade das raparigas que passam férias no campo do que de Louise, mas tem uma postura reta, imprime uma certa ironia às palavras e, no geral, faz um esforço para que toda a gente identifique a linha clara entre treze e dezassete anos, linha essa materializada na divisória de contraplacado que separa a parte principal da cabana da zona das monitoras.
Louise abana-a agora para a acordar. Annabel franze o sobrolho. Dobra um cotovelo sobre os olhos num gesto teatral. Deixa-se cair novamente no sono.
Louise começa a ganhar consciência de uma coisa: os vapores a cerveja ressessa. Primeiro pensou que emanava do seu próprio corpo, da sua pele e da sua boca. O que bebeu na noite anterior foi seguramente o suficiente para que os efeitos se sentissem de manhã. Mas agora ao debruçar-se sobre Annabel, pergunta-se se o cheiro não viria, na realidade, do lado da outra.
O que a deixa preocupada.
– Annabel – murmura. No seu tom de voz, reconhece de súbito a voz da própria mãe.
Em alguns aspetos, sente-se como a mãe – a sua mãe incompetente e irresponsável – em relação àquela rapariga.
Annabel abre os olhos. Senta-se e encolhe-se imediatamente. Cruza o olhar com Louise, arregala os olhos e o seu rosto empalidece. – Vou vomitar – diz, demasiado alto. Louise manda-a baixar a voz, agarra a primeira coisa que consegue, um saco de batatas fritas vazio no chão.
Annabel precipita-se para o saco. Vomita. A seguir, ergue a cabeça a ofegar e geme baixinho.
– Annabel – diz Louise. – Estás de ressaca?
Annabel abana a cabeça. Amedrontada.
– Acho que... – começa a dizer, mas Louise manda-a de novo calar. Senta-se na cama da rapariga e conta até cinco mentalmente, como sempre fez desde criança. Um exercício para não reagir.
Annabel tem o queixo trémulo.
– Acho que comi qualquer coisa estragada – murmura.
– Saíste ontem à noite? – pergunta Louise. – Annabel? Annabel observa-a, a avaliar.
– É importante – diz Louise.
Normalmente é paciente com as monitoras estagiárias. Está habituada a acompanhá-las nas primeiras ressacas. Não se importa que abusem um bocadinho uma noite ou outra. Naquele ano é monitora chefe e faz geralmente vista grossa a comportamentos que lhe parecem inofensivos. Ela própria participa neles, em momentos que considera adequados. Mas fora isso, é bastante rigorosa; no início do verão, a primeira monitora a não acordar a horas depois de uma noite de farra foi proibida de ir às festas seguintes, o que pareceu ser suficiente como exemplo para que ninguém repetisse o erro.
Até àquele momento. Porque na noite anterior, enquanto Louise estava fora, era a vez de Annabel ficar de vigia. Mas, aparentemente, isso não aconteceu.
*
Louise fecha os olhos. Passa em revista os acontecimentos da noite anterior.
Houve um baile no salão de convívio: o baile do fim da temporada, no qual todos os jovens do campo, os monitores e os estagiários têm de participar. Lembra-se de, a dado momento, ter dado pela falta de Annabel – pelo menos, não a viu. Mas tem a certeza de que ela já tinha voltado quando o baile terminou.
Porque às onze da noite, quando Louise fez uma contagem rápida, Annabel estava presente, juntamente com as nove raparigas – sim, nove –, que desejaram boa noite a Louise com um aceno gentil. Ela consegue ainda visualizá-las de costas, caminhando em pequenos grupos na direção da Balsam.
Essa foi a última vez que Louise as viu. Depois, confiante de que Annabel se encarregaria delas, saiu sozinha.
A seguir, tenta visualizar as camas das raparigas quando per- correu a cabana em bicos de pés ao final da noite, muito depois do toque de recolher. Deviam ser talvez... umas duas da manhã? Três? Vêm-lhe à cabeça imagens fragmentadas:
A boca aberta de Melissa R, o braço de Amy a pender da cama. Mas Barbara não está em nenhuma dessas recordações. Nem tão-pouco a sua ausência.
Uma recordação diferente impõe-se em vez disso: John Paul, na Clareira, a agitar os braços, primeiro na sua direção, depois na direção de Lee Towson. John Paul com a sua tática de luta de menino rico, brandindo os punhos como se estivesse a entrar num ringue de boxe. Lee, selvagem e habituado a brigas, ainda com o avental da cozinha. Deu rapidamente conta de John Paul e deixou-o estendido no chão, a pestanejar com um ar ausente para os ramos das árvores acima da sua cabeça.
Hoje vai haver sarilhos. Há sempre sarilhos quando John Paul suspeita de que ela o anda a enganar.
Mas para que fique claro: ela não o enganou. Não dessa vez.
*
Annabel ergue-se e inspira. Cobre os olhos com a mão.
– Sabes onde está a Barbara? – pergunta Louise, indo direta ao assunto. Não há muito tempo: não tarda, as raparigas do outro quarto vão acordar.
Annabel parece baralhada.
– A Van Laar – diz Louise. E depois repete, mais baixo. – A do nosso grupo.
– Não sei – responde Annabel, e deixa-se cair para trás na cama.
E nessa altura, claro, soa o toque da alvorada nos altifalantes montados nas árvores em todo o campo, indicando que do outro lado da divisória de contraplacado, raparigas de oito, doze e treze anos começam a acordar com relutância, soltando pequenos sons, expirações e suspiros, e erguendo-se sobre os cotovelos.
Louise começa a andar de um lado para o outro.
Annabel, ainda na horizontal, observa-a, começando a dar-se conta do problema.
– Annabel – diz Louise. – Tens de me dizer a verdade. Voltaste a sair ontem à noite? Depois de toda a gente se ter ido deitar?
Annabel parece suster a respiração. Depois liberta o ar. Faz um aceno afirmativo. Louise repara que os seus olhos se enchem de lágrimas.
– Sim, voltei – responde.
Há na sua voz um tremor infantil. Poucas vezes na vida esteve em sarilhos, Louise está certa disso. É uma pessoa a quem, desde a nascença, foi explicado o seu valor neste mundo. A felicidade que traz aos outros. Agora está a chorar abertamente, e Louise faz um esforço para não revirar os olhos. De que poderá Annabel ter medo? Para ela, nada está em risco. Tem dezassete anos. A pior coisa que lhe poderia acontecer era ser expulsa, enviada para o cimo da colina, para os seus pais ricos, que, na verdade, são amigos dos donos do campo e que, naquele preciso momento, estão hospedados em casa deles, na propriedade. Já a pior coisa que poderia acontecer a Louise, uma adulta, pensa ela, censurando-se, a pior coisa que lhe poderia acontecer seria... Bem. Não tires já conclusões precipitadas, diz a si mesma. Mantém-te no presente.
Louise aproxima-se da cortina. Afasta-a muito ligeiramente. Ao fazê-lo, atrai a atenção de Tracy, que partilha o beliche com Barbara, uma rapariga discreta que está parada a meio da escada do beliche e que parece ter reparado no que se passa.
Louise solta a cortina.
– Ela desapareceu? – pergunta Annabel.
Louise manda-a calar novamente e recomenda:
– Não digas desapareceu. Diz que não está no beliche dela. Louise examina o pequeno quarto, à procura de indícios do que se passou na noite anterior. Reúne o que encontra num saco do lixo de papel castanho: uma garrafa de cerveja vazia que ela bebeu no regresso da Clareira; a ponta de um charro que fumou a dada altura; o saco de batatas fritas cheio de vomitado, em que pega com dois dedos rígidos.
– Há mais alguma coisa que não queiras que alguém descubra? – pergunta a Annabel, que responde abanando a cabeça.
Louise fecha o saco do lixo, dobra-o e espalma-o.
– Escuta. És capaz de ter de ficar a orientar as raparigas esta manhã. Ainda não sei bem. Mas se isso acontecer, vais ter de te livrar disto. Deita-o no sítio do lixo quando saíres para ir tomar o pequeno-almoço. Tem de desaparecer. Consegues?
Annabel acena afirmativamente, ainda verde.
– Por agora, fica aqui. Não saias durante um bocado. E não... – Hesita, à procura de palavras sérias mas que não a incriminem. Afinal, está a falar com uma criança. – Não fales de ontem à noite a ninguém. Deixa-me pôr as ideias em ordem.
Annabel fica em silêncio.
– Está bem? – pergunta Louise.
– Está bem.
Não tarda, vai-se abaixo, pensa Louise. De certeza que vai contar tudo o que aconteceu e tudo o que sabe a todas as figuras de autoridade. Vai chorar no ombro da mamã e do papá, que provavelmente nem compreenderam o poema em que basearam o nome que deram à filha; ela será consolada por eles, retomará as suas aulas de ballet e, no próximo ano, será encaminhada pela escola para Vassar, Radcliffe ou Wellesley e casará com o rapaz que os pais escolherem para ela – confessou já a Louise que eles já têm um em mente – e nunca mais voltará a pensar em Louise Donnadieu, nem no seu destino ou nos problemas que Louise terá durante o resto da vida para arranjar um emprego, uma casa, para sustentar a mãe, que desde há sete anos não consegue ou não quer trabalhar. Para sustentar o irmão mais novo que, com onze anos, não fez absoluta- mente nada para merecer a vida que lhe calhou na rifa.
À frente dela, Annabel vai dizer qualquer coisa. Recompõe-se.
Louise põe as mãos nas ancas. Respira. Vai com calma, recorda a si mesma.
Endireita os ombros. Afasta a cortina. Inicia o processo de simular desconhecimento e surpresa para o pequeno grupo de raparigas, que – engole a vergonha como um comprimido – a respeitam, a admiram e muitas vezes lhe pedem conselhos e proteção.
Dá uns passos para dentro do quarto delas. Finge esquadrinhar as camas. Franze o sobrolho simulando perplexidade.
– Onde está a Barbara? – pergunta jovialmente às raparigas.
Tracy
Dois Meses Antes
Junho de 1975
Três regras foram transmitidas aos jovens do campo à chegada. A primeira prendia-se com a comida nas cabanas, como devia ser consumida e acondicionada (de forma limpa e hermética).
A segunda dizia respeito a nadar, uma atividade que não devia, em circunstância alguma, ser realizada sem companhia.
A terceira, a mais importante, como indicava a forma como estava exposta em vários locais comuns, em letras maiúsculas, era SE TE PERDERES, SENTA-SE E GRITA.
Na altura, Tracy achou aquela advertência quase cómica. Mais tarde, nessa mesma noite, o aviso seria repetido na sessão de inauguração à volta da fogueira, e a sua lógica explicada. Mas a maneira como foi apresentada nesse momento, de forma categórica e sumária, por um monitor alto que articulava as palavras sem pontuação, nem emoção, fê-la desviar o olhar e reprimir um riso nervoso. se te perderes, senta-te e grita. Tentou imaginar. Sentar-se onde estava. Abrir a boca. Gritar. Perguntou-se que som se lhe escaparia da boca? Que palavra ou palavras? Socorro? Ajudem‐me? Ou, Deus a livrasse, Por favor, encontrem‐me? Era demasiado confrangedor para sequer imaginar.
*
O pai pagara-lhe para ela ir para ali.
O resultado, após uma semana de negociações que haviam ter- minado com um impasse de um fim de semana inteiro fechada no quarto, fora o seguinte: um pagamento em dinheiro vivo, cem dólares, mais precisamente, cinquenta por cento dos quais estariam à sua espera quando regressasse.
O que ela desejara fazer no verão era simples: passar o dia todo na sala da casa vitoriana de Saratoga Springs que a família arrendara todos os anos naquela estação durante uma década. Desejara baixar as persianas até meio, abrir parcialmente as janelas, apontar todas as ventoinhas da casa na sua direção e ficar deitada no sofá, levantando-se apenas para preparar petiscos elaborados. E queria ler; ler era o seu principal objetivo.
Esta fora a sua rotina durante cinco verões consecutivos. Desejara que o verão de 1975 não fosse diferente.
Em vez disso, o pai – divorciado da mãe há menos de um ano – conseguira, numa sucessão rápida, arranjar uma namorada, arrendar uma casa mais sofisticada e convencer-se de que Tracy não devia passar o verão sem nada para fazer. Pelo menos, fora isso que lhe dissera, na viagem de regresso da casa da mãe de Tracy em Long Island, em meados de junho. (Ela não conseguiu deixar de reparar que o pai esperara até estarem a meio caminho de Saratoga para revelar o seu plano.) O verdadeiro objetivo dele, pensou Tracy, era que ela não o incomodasse durante dois meses. Para ele e a referida namorada poderem ter a liberdade de fazer o que lhes apetecesse sem estarem sempre a tropeçar numa rapariga de doze anos mal-humorada. Porque teria então ele lutado para ficar com a custódia dela o verão todo, perguntou Tracy a si mesma, se era só para a despachar?
Nem se dera ao trabalho de a levar ele mesmo ao Campo Emerson. Em vez disso, transferira a tarefa para Donna Romano, a namorada, que para Tracy não passava ainda de um primeiro e último nome.
– É dia de corridas – dissera o pai, quando Tracy o encurralara no corredor e lhe implorara que fosse. – Tenho de ir de carro até Belmont. O Second Thought vai correr às duas.
O pai era filho de um jóquei, mas crescera demasiado para seguir as pisadas do pai. Em vez disso, tornara-se adestrador de cavalos, depois treinador e em seguida proprietário, mudando, a cada trabalho, as circunstâncias da vida deles. Quando Tracy nas- cera, viviam os três numa caravana no caminho de acesso da casa da avó materna. Agora moravam numa grande casa moderna com um portão prateado, em Hempstead, Nova Iorque. Bem, Tracy e a mãe é que lá viviam.
– Do que é que vamos falar? – perguntou ela, mas ele limitou-se a abanar a cabeça e a pousar duas mãos suplicantes nos ombros dela. Tracy reparou de repente que tinha os olhos ao nível dos dele: do seu próprio pai. Um surto de crescimento recente colocara-a perto do metro e oitenta e fizera com que o seu corpo se curvasse sempre que não estava em movimento.
– Ouvi dizer que é um sítio de primeira. Quero dizer, todo pipi – explicou o pai, repetindo a mesma descrição desconcertante que utilizara quando lhe dera a notícia. – Aposto que vais adorar.
Ela voltou-se para uma janela. Do outro lado, viu Donna Romano a ajustar o sutiã e a inspecionar o seu reflexo na janela do carro. Era um Stutz Blackhawk novo, com chão atapetado e um motor cujo ronco fazia lembrar a Tracy a voz do pai. «Topo de gama», dissera ele, quando a fora buscar a Hempstead. Tracy tinha a impressão de que tudo na vida do pai era novo. Casa arrendada, namorada, cachorro pequinês, carro. Tracy era a única coisa velha na sua órbita; e até ela estava a ser afastada.
Donna Romano, como se veio a descobrir, era uma fumadora compulsiva. Entre passas no cigarro, ia fazendo a Tracy perguntas sobre a sua vida, que tinha claramente estado a armazenar especificamente para aquela viagem. Quando não estava ocupada a responder-lhes, Tracy lançava olhares de relance a Donna Romano. Era extremamente bonita. Normalmente, isso teria sido suficiente para conquistar Tracy. Ela adorava mulheres bonitas. Adorava as raparigas mais populares da sua escola – venerava seria uma palavra mais apropriada, já que uma grande parte de si mesma as desprezava na realidade. Ainda assim, sentia um fascínio por elas, talvez devido ao facto de, fisicamente, serem o oposto dela, o que de certa maneira as tornava espécimes que desejaria examinar, demoradamente, ao microscópio. Enquanto a maioria das suas colegas de turma usavam o cabelo liso e comprido com risca ao meio, o de Tracy era volumoso, ruivo e indomável. Enquanto algumas colegas tinham sardas delicadas, as de Tracy eram tão acentuadas que um grupo de rapazes do sexto ano lhe tinha dado a alcunha de Liga‐os‐Pontos, ou LOP para abreviar. Devia usar óculos; tinha um par que nunca punha, o que fazia com que franzisse os olhos com frequência. O pai dissera-lhe uma vez sem pensar que ela tinha a constituição de uma ameixa sobre palitos, e a frase revelara-se ao mesmo tempo tão cruel e tão poética que a envolvera como uma couraça.
As estradas passaram de asfalto para gravilha e depois para terra batida. Casas decrépitas apareciam com poucos minutos de intervalo, com os relvados dianteiros adaptados a cemitérios de veículos enferrujados. Era inquietante, aquele contraste entre beleza natural e decomposição causada pelo homem, e Tracy começou a perguntar-se se estariam a ir na direção certa.
Mas então, por fim, surgiu um sinal. Reserva Van Laar, dizia. As instruções enviadas por correio indicavam que aquele era o sinal a seguir.
– Não percebo porque é que não põem o nome do campo no sinal – comentou Donna Romano.
Talvez para os tarados não o encontrarem, pensou Tracy. Sabia que aquela teria sido a resposta do pai. Ouvia com frequência, sem querer, a voz dele como uma espécie de presença narrativa que sublinhava a sua vida. Aquele ano, o primeiro do divórcio, fora o ano em que tinham estado mais tempo afastados.
A verdade era que em criança tinha sido a sombra do pai, amara-o sem reservas, seguindo-o para todo o lado, oferecendo cenouras, de mão aberta, aos focinhos aveludados dos cavalos favoritos dele. Embora preferisse morrer a admiti-lo, Tracy sentia profundamente a sua falta e passara grande parte do último ano escolar na expectativa de um verão na companhia do pai.
O caminho de terra batida bifurcava-se. Uma seta para a direita direcionava-as para Campo Emerson: Onde Nascem Amizades para a Vida. E então as árvores afastavam-se e revelavam um relvado com vários edifícios de madeira rústicos dispostos em fila. À sua frente estava um monitor de pé, atrás de uma mesa dobrável, da qual pendia um cartaz húmido que dizia, de forma pouco convincente, Bem‐vindos.
O monitor aproximou-se do Blackhawk com um dossier e entregou-o a Donna pela janela. Depois, transmitiu formalmente as Três Regras do Campo Emerson como um pregoeiro zeloso, incluindo a última, a mais importante, uma frase que ficaria a ecoar na cabeça de Tracy durante dias, durante semanas. Durante o resto da sua vida.
Se te perderes, senta‐te e grita.
Tracy teve dificuldade em imaginar a que ponto teria de estar perdida antes de a opção lhe parecer pertinente. A sua voz parecia ter vindo a decrescer de forma contínua desde a nascença, ao ponto de, aos doze anos, mal se conseguir fazer ouvir.
Muito perdida, acabou por decidir. Profundamente, irreversivelmente perdida.
– Vais ficar na Balsam – disse o rapaz, interrompendo-lhe os pensamentos. Estendeu um braço comprido para a direita. Donna Romano carregou no acelerador e o Blackhawk avançou.
(1) Balsamina (N. das T.)
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