Ouvi isto, desde sempre, fulgurosamente apregoado pela minha mãe, que decidiu estar desconfortavelmente inquieta nos antípodas da sua beleza renascentista, esculpida a cinzel em porcelana fina. Ela queimou soutiens, cobriu as suas longas pernas com roupas que transformavam instantaneamente qualquer saco de batata em alta costura, renunciou ao rouge e ao baton, prendeu as madeixas de ouro do cabelo num carrapito de velha. Libertou-se das cintas e dos espartilhos, mas enclausurou na solitária qualquer vestígio da sua feminilidade. Mais do que exigir igualdade, lutou pelo respeito que lhe era devido. Que é devido a todos os seres humanos, independentemente da raça, do credo e do sexo com que nasceram.

Foi feminista fervilhante no tempo da antiga senhora. Não foi fácil. Nunca o é para as mulheres. Muito menos para as incrivelmente bonitas. Mas depois o feminismo tramou-a, saiu-lhe o tiro pela culatra.

Nunca a minha mãe se serviu da sua beleza botticelliana.

Desprezou-a, viu-a sempre como um defeito, pior: uma deficiência, uma maldição que perseguia sempre, e que lhe dificultava o já de si árduo caminho de ser levada a sério.

Por mérito braçal, de jornadas de trabalho intermináveis em África — reza a lenda que Hergé se cruzou com o meu avô Manga-Manga no Congo e assim nasceu o imortal ‘Oliveira da Figueira’ —, a minha mãe cresceu numa gigantesca casa em Viseu no seu Rossio, com cortinas de brocado, móveis de madeiras perfumadas, cheios de torcidos, rococós e embutidos, tapetes da Pérsia e de Arraiolos, pratas e mármores, e um reboliço de criadas que se viam aflitas para lidar com os pioneiros electrodomésticos que vieram revolucionar a vida como hoje a conhecemos: frigoríficos, rádios e televisões.

A minha mãe tocava piano e falava francês. Na parte mais infeliz da sua vida, foi sendo expulsa de vários colégios católicos. Era uma miúda de África: apanhava cobras e largava-as aos pés das freiras, levando-as à loucura, e suportando depois castigos medievais que se seguiam com a coragem de um soldado.

Enquanto fazia todos os possíveis para ser excomungada (ou pelo menos regada em água benta), a minha mãe privou com a ‘fina flor do entulho’ da sociedade portuguesa. Sem brasões, sem linhagens reais, ou apelidos difíceis de pronunciar, a minha mãe estava a ser educada para cumprir a santíssima trindade: esposa exemplar, exímia dona-de-casa, excelsa figura maternal.

Mas não era esse o seu destino.

Teve sorte em ter um pai velho, um homem do início do século, mas mais jovem do que muitos que para aí andam no século XXI, na sua compreensão e humanismo. O meu avô foi pai pela primeira vez aos 48 anos — esteve ocupado a construir um império nas décadas anteriores —, e julgara ter estado a fazer o melhor pelo futuro da adorada primogénita, entregando a sua educação aos melhores e mais caros colégios da altura.

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Rapidamente concedeu que a fibra da filha era outra, e que o mundo era composto de mudança: se ela queria fazer diferente, tentar outro papel, restava-lhe a ele apoiar a sua marcha solitária, tratá-la exactamente da mesma forma que aos dois filhos homens.

Ser uma grande mulher não tem a ver com carreiras brilhantes, e feitos que mudam o curso do mundo.

No decurso desta história, a feminista desiludida de que vos falo, e que é por acaso minha mãe, deixou dois cursos superiores de Medicina e Farmácia a meio, para cuidar dos filhos. Não foi a mulher-bibelô que podia ter sido: era tão linda, que podia ter ‘casado bem’ (expressão que hoje ainda se usa tanto por aí). Rebelde com causas, casou com um artista, o meu pai, uma alma livre e por demais desprendida destas coisas de que se faz o dia-a-dia, como pagar contas e ter comida no prato e roupa lavada. A minha mãe foi, por isso, obrigada a mutar-se em mulher-amazona, criando dois filhos totalmente sozinha.

Fez um brilhante trabalho: devemos-lhe tudo o que somos, e a nossa fibra é a dela, corre-nos no sangue. Esta é a grandeza dessa mulher a que chamo mãe, que nunca se arrependeu da escolha que foi obrigada a fazer. Por amor. Pôs o feminismo na gaveta. Haverá alguma coisa mais poderosa do que uma escolha de amor?

Eu, desde pequena, que digo que quero ser mãe e dona-de-casa.

Digo isto e todos acham que estou a gozar.

A minha mãe tem razão: o feminismo lixou as mulheres, incluindo aquelas que, como eu, queriam ser mães e donas-de-casa, e que renunciariam sem hesitações ao seu lugar no exigente e canibal mercado de trabalho. O feminismo também devia ser isso.

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A minha mãe soube-me sempre capaz de feitos incríveis (todos nós somos: basta termos quem acredite e nos garanta que sim), confiou na (sua) genética e na força do cromossoma xis. Dobrou quase totalmente o meu âmago astrológico de caranguejo, de querer viver todos os segundos da minha vida para a família e para a construção e desconstrução de um ninho, desistiu a certa altura de tentar impedir-me de me embonecar toda, usar saltos altos e decotes grandes (e não nasci esculpida pelo mesmo mestre que ela),mas ainda trago algum ressentimento e muita incompreensão pela sua recusa em comprar-me uma máquina de costura quando era miúda e desejava a Singer mais do que a Barbie, e de ter esperado até aos meus 30 anos para me ensinar a fazer crochet (o meu e seu poderoso e altamente adictivo ansiolítico natural).

Fez tudo para matar a Fada do Lar que há em mim. Não conseguiu totalmente, mas o feminismo também já me lixou a mim também.

O destino trocou-me as voltas. Parece que corre na família este desaire.

É certo que ao menos vivo o sonho de ser mãe — e tenho o privilégio de ser mãe a multiplicar por quatro (muito perto daquele sonho de infância cor-de-rosa). Só que trabalho que me desunho (e por acaso desunho mesmo; parti há instantes uma unha a escrever este texto, que já vai longuíssimo), dentro e fora de casa, e às vezes não há como evitar: falto às reuniões da escola (nem sequer sou a encarregada de educação, já para reduzir as minhas falhas e ansiedade a níveis suportáveis), e já houve dias da Mãe e festas de Natal em que não apareci. Quase nunca fico com as crianças em casa quando têm febre e só querem a mãe, e por vezes chego tarde a casa, e cansada, depois de as rotinas de amor já terem sido executadas magistralmente sem eu lá estar para, pelo menos, assistir.

Mas já não me consumo com esta inevitabilidade de não conseguir estar em dois sítios ao mesmo tempo e de grande parte das vezes ter de fazer a escolha errada: a escolha do trabalho em vez da família. Sinto uma picada de dor fininha, mas já não me flagelo pelas minhas ausências, que tento que sejam as mínimas e as indispensáveis.

Tenho uma família muito grande para os parâmetros actuais, e não quero que nada lhes falte. Por isso não paro, estou sempre inquieta, ou não fosse, ao que dizem, neta do ‘Oliveira da Figueira’ do Tintim.

A minha mãe fez de mim uma líder.

Estou (por agora) incansável. Atrevo-me até a dizer invencível.

Mas tenho um trunfo que a minha mãe não teve: eu não faço esta viagem sozinha, não travo esta batalha de ser uma mulher e ter sucesso sozinha.

Ao meu lado (e não atrás, não é uma mera inversão do género do provérbio tristonho do ‘Atrás de um grande homem está uma grande mulher’) tenho um homem que não ‘ajuda lá em casa’ (outra frase feita do feminismo que entalou a grande maioria das mulheres).

Tenho ao meu lado um marido esculpido a cinzel (tem o nariz mais perfeito do mundo — quem dera que os nossos filhos tenham o teu nariz) que faz, que faz inclusive mais do que eu, que ando sempre de um lado para o outro a sirigaitar em tantos palcos, arenas e ringues.

Sou uma grande mulher por causa deste grande homem, que me facilita tudo, e nada me cobra. Construo com ele a família numerosa com que sempre sonhei (até tenho dois filhos loiros e uma tem olhos azuis; é tudo como nas revistas), e que me elevou ao ponto alto de onde escrevo estas linhas. Ele fica na sombra porque quer — não gosta mesmo de holofotes.

Para mim ele é uma sombra fresca, é a minha sombra, inseparável, é o meu refúgio de paz. Este homem que tive a sorte de encontrar é único no mundo; é a generosidade revestida de pele e ossos. Eu tenho um homem que me deixa ser uma mulher de sucesso, sem culpas, sem acertos de contas, sem se sentir emasculado ou diminuído.

Vivo com um feminista ferrenho. Este é o homem que casou comigo e que, para espanto de todos, adoptou o meu último apelido no seu nome, em último lugar, e depois fez aplicar a mesma regra no nome dos nossos filhos, na simples constatação de que as mulheres também podem passar o seu nome pelas gerações; não é território só dos homens.

Não minto também se vos disser que não sei há quanto tempo não ponho roupa a lavar, ou no estendal, que há anos que não tenho nada a ver com o caixote dos gatos, e que o cão também nem se lembra do que é ir comigo à rua, ou que mesmo as minhas adoradas orquídeas, aquelas que coleccionava mesmo antes de ser mãe, é ele quem cuida delas (deixo-o ser desarrumado à vontade, acho que já não refilo tanto com a bagunça: pelo menos faço um esforço para não me tirar do sério). Nunca me falou com maus modos (e todos temos dias maus — eu não posso dizer o mesmo, infelizmente já fui parva com quem só me fez bem ao longo de quase dez anos) e só muito de vez em quando os nossos quatro filhos o tiram do sério.

Sei que não inverteremos nunca os papéis. Ele é das pessoas mais brilhantes e inteligentes que conheço, mas não tem absolutamente nada a provar a ninguém e o feminismo não o pôs entre a espada e a parede. Eu visto as calças (na verdade esta também é uma imagem parva porque eu quase nunca visto calças) e ele, que também trabalha que se farta a partir de casa, na profissão mais solitária do mundo, a de tradutor e revisor, cuida da família, esse território outrora exclusivo das mulheres.

Sejamos justos: o feminismo afinal não me tramou assim tanto.

Agora tenho duas gigantescas missões — garantir que as três filhas se sentem, como eu, capazes de ser e fazer o que bem lhes passar pela moleirinha, mas, mais importante ainda, educar o meu filho a ser tão feminista quanto o pai.

Nota final muito importante: na empresa onde trabalho no ofício cada vez mais difícil da comunicação e da assessoria de imprensa, há quatro colaboradores com quatro filhos. Há pelo menos um com três, e dezenas com o casalinho ‘piroso’. Neste momento estão três bebés para nascer até ao final do ano: um verdadeiro baby boom. Somos uma empresa líder de mercado, posição que conquistámos e garantimos, pela excelência dos serviços prestados pelos melhores profissionais. Eu e os meus colegas temos um dos trabalhos mais exigentes e stressantes à face da terra, e ainda assim esta empresa regista uma taxa de natalidade muitíssimo superior à da média nacional. Alguma coisa corre verdadeiramente bem por aqui. O que é essencial quando falamos de igualdade e oportunidades. Devo também ao meu patrão e à segurança social portuguesa a possibilidade de, por duas vezes, ter podido tirar oito meses de licença de maternidade, uma pausa longa e importante no ritmo frenético, e que me permitiu ter a certeza que nasci mesmo para ser mãe e dona-de-casa.

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