I

Era um dia diferente de todos os outros, apercebi-me assim que toquei na chave do carro. O nevoeiro acariciava- -me e quase me dava a sensação de que me observava, etéreo, enquanto gotas minúsculas me humedeciam o casaco. Não havia um motivo preciso para que aquele dia parecesse diferente, era apenas uma sensação, dessas que, quanto mais pensamos, mais tentamos racionalizar e mais nos afastam da lógica.

Lembrava-me apenas de ter sonhado de forma mais «profunda» do que era habitual, de tal modo imerso na atmosfera onírica que sentia que já não precisava de acordar. Como se a vida pudesse prescindir daquelas relações externas que, na véspera, me pareciam indispensáveis até na escolha do fato ou do casaco a vestir, para que me achassem mais determinado no fecho de um negócio ou para aumentar as minhas capacidades de sedução. Naquele dia queria, a todo o custo, concluir uma venda que há muitos meses me fazia andar com os nervos em franja e que, por fim, poderia encerrar. Se conseguisse, tudo ficaria bem, com aquela pipa de massa a minha vida levaria outro rumo, o caminho do futuro tornar-se-ia mais claro, mais fácil, mais calmo.

A razão principal é que poderia, finalmente, comprar aquela mansarda no centro com vista sobre a cidade que me dava a volta à cabeça: poderia observar as pessoas a caminhar como formiguinhas disciplinadas percorrendo as ruas do centro, lutando entre si pelas suas pequenas compras; poderia olhar para o horizonte com os modos irreverentes de um rei que vê de cima o que os outros, orgulhosos por poderem consumir, só podem ver de baixo. E poderia receber no terraço, organizar jantares com os amigos de sempre e com os que haveria de conhecer ao frequentar sítios cada vez mais caros, luxuosos e exclusivos.

Estava convencido de que tudo seria mais simples e mais tranquilo.

Sempre pensei que o meu ajuste de contas com a vida passaria pelo dinheiro, pelo sucesso e pelo poder: tudo o que, desde criança, só conhecia porque me faltava. Aprendi muito cedo que a ausência é uma presença muito opressiva: se sabes que podias ter uma coisa, se sabes que os outros têm mais possibilidades de serem felizes, então também sabes que, de algum modo, estás a materializar uma ausência na tua cabeça. No preciso momento em que te apercebes dela, começas involuntariamente a vivê-la e então tens dois caminhos: conformares-te com a tua condição e aceitá-la, ou ires à luta e esforçares-te por ser alguém.

Lembro-me do momento exato em que escolhi o segundo caminho: tinha doze anos e a minha mãe estava a chorar porque tinha sido despedida de mais uma empresa em crise que tinha de reduzir o pessoal. Não foi uma novidade para mim, nem vê-la chorar, nem saber que iria ficar sem trabalho. Nova foi a sensação que experimentei: por algum motivo estranho, daquela vez senti que estava só. Não sei se foi porque desapareciam as minhas esperanças de me inscrever no colégio privado, se porque me estava a tornar um homem, mas, a partir desse momento, alguma coisa mudou: já não era filho, filho de um pai que nunca conheci e de uma mãe presente e atenciosa, mas demasiado frágil e insegura para não ser destruída por uma sociedade sedenta de dinheiro.

A partir daquele dia fui simplesmente o Christian. Já não estava «com o mundo», mas «no mundo»: tudo podia acontecer, mas nenhuma corda imaginária me poderia salvar nos meus saltos no vazio. O risco do vazio era para mim o símbolo da nova vida que me esperava, talvez me pudesse despedaçar, mas talvez fosse a minha salvação, o caminho para o sucesso.

Pedro Mexia junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de outubro, pelas 21h00.

Poeta e crítico literário, escolheu para a conversa no clube de leitura o livro "A Terra Devastada", de T. S. Eliot.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Pedro Mexia, da poesia às traduções

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972, e licenciou‑se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público e também faz traduções; atualmente colabora com o semanário Expresso. Além disso, é um dos membros do "Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer" (SIC Notícias) e mantém, com Inês Meneses, o programa PBX. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca.

T.S. Eliot e "A Terra Devastada"

A estreia de T. S. Eliot na poesia deu-se em 1915, na revista Poetry, de Chicago, onde saiu um dos seus mais famosos poemas, The Love Song of J. Alfred Prufrock. Este e outros poemas constituíram, em 1917, o seu primeiro livro

Em 1922 surgiu o poema The Waste Land — "A Terra Devastada", na tradução em português —, considerado um dos mais belos e mais importantes poemas do Modernismo.  O tema de The Waste Land é a decadência e fragmentação da cultura ocidental, concebida imaginativamente por analogia com o fim de um ciclo de fertilidade natural. O poema divide-se em cinco partes, que não obedecem a uma sequência lógica, e estende-se por 433 versos. A justaposição de símbolos, imagens, ritmos, citações e sequências temporais, contribuem para a dimensão épica do poema e reforçam a sua coerência artística.

Muitos acham que o sucesso é como uma pirâmide, uma subida em direção a um cume ideal que todos podem ver, mas que poucos conseguem atingir. Na verdade, o sucesso é uma corrente, não se desenvolve em altura, mas em comprimento; os elos mais frágeis estão no início, depois as uniões vão-se tornando cada vez mais fortes, inoxidáveis, mas as bases das quais dependem, essas que facilmente esquecemos porque estão escondidas, são as que suportam a estrutura. É por isso que tudo pode desabar precisamente quando nos sentimos realizados e a lógica nos diz que é impossível retroceder.

Naquele dia, ao sair de casa, encontrei o meu Porsche no lugar do costume. Aquele automóvel era para mim um símbolo que devia polir e cuidar com amor, falava com ele muitas vezes e naquela manhã imaginava o quão ansioso estaria por me acompanhar à reunião que há tanto aguardava.

Estava particularmente curioso sobre Mr. Carter.

Tinha ouvido a sua voz várias vezes através do telefone, mas não conseguia imaginar verdadeiramente quem se esconderia por detrás daquele tom calmo e seguro. Nas redes sociais não havia qualquer vestígio dele; alguns artigos em jornais locais, ainda acessíveis online, mencionavam- -no como um benemérito da comunidade, mas não havia uma só foto do filantropo milionário. Quem me falara dele fora um conhecido que sabia muito de negócios, um desses que trocavam de iate a cada cinco anos porque se cansavam da cor e que viviam um ano em Malibu e o seguinte nas Caraíbas: um desses que se encontram por acaso numa festa e que, depois de lhes perdermos o rasto por um tempo, voltamos a encontrar rejuvenescidos na outra ponta do mundo.

Sabia que ia encontrar um texano perito em negócios, um tubarão capaz de chupar cada presa até ao osso só para poupar uns cêntimos. É assim que funciona: quantos mais milhões estas pessoas têm, mais avarentas se tornam. Já não olhava para esta atitude com desconfiança, parecia-me perfeitamente normal. Era assim que devia ser: quanto mais avarento fosse Mr. Carter, mais eu me sentiria no lugar certo à hora certa. Para mim os negócios não eram apenas uma necessidade, mas sim um exercício de equilíbrio, um jogo de xadrez que tinha de vencer a todo o custo.

Imaginava um Mr. Carter indiferente e pronto a desacreditar a casa que eu vendia e que considerava como se fosse minha, apenas para a comprar ao melhor preço e depois a tornar ainda mais luxuosa, a revender e investir o lucro em ações: teria de usar a minha dialética da melhor forma, sobre isso não tinha dúvidas.

Eram quase oito e meia, a hora da reunião. Tinha finalmente chegado ao café onde tomaria o pequeno-almoço com aquele homem.

O céu matutino pintava todas as suas cores nas minhas pupilas e prendia-me a atenção como um íman faz com o ferro, fazendo-me perceber, pela primeira vez, como era imenso o seu azul. Por um lado, aquilo intrigava-me e fazia-me sentir bem, como se o céu limpo estivesse ali para me encorajar. Por outro lado, incomodava-me, porque aquelas sensações me distraíam quando deveria estar especialmente concentrado: sabia que o destino me podia reservar uma partida de mau gosto que, a qualquer momento, me levaria a perder a jogada. Certamente não podia dizer a Mr. Carter o quanto as cores do céu eram nítidas naquele dia, ele acharia que eu era maluco, um pária da sociedade. Afinal quem é que se põe a olhar para o céu? Estamos habituados a ver o céu, mas não a contemplá-lo: só queremos saber se vai chover ou fazer sol.

Livro: "O homem que queria ser amado e o gato que se apaixonou por ele"

Autor: Thomas Leoncini

Editora: ASA

Data de Lançamento: 3 de outubro de 2023

Preço: € 15,50

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Naquele dia, porém, recolhi todos os matizes das suas cores que me pareciam particularmente vivas, refulgentes, cheias de força e de energia. Senti-me saciado com aquelas tonalidades luminosas que me tornavam a pele cintilante e senti que, de alguma forma difícil de explicar, também a minha predisposição para ser convincente se tornava mais brilhante.

Sorri ao ver uma nuvem desfazer-se perseguindo o Sol e olhei fixamente aquela enorme bola de fogo com vagar: apesar de tudo, sentia ainda um desejo indomável de beijar todas as manhãs quem o desejasse.

Sentia-me estranho, admito.

Sabia que aquele era um dia muito importante para mim, mas, ao mesmo tempo, não conseguia desviar a atenção daquela visão. Um espetáculo que poderia ter admirado 16 muitas outras vezes de qualquer janela do mundo, desde que estivesse para lá virado.

De repente, senti uma mão no ombro: o coração disparou-me no peito, virei-me bruscamente e vi um homem alto e robusto com um chapéu de cowboy na cabeça.

«Olá», exclamou com um forte sotaque norte-americano. «Aposto que é o Christian!»

Aquele ligeiro fio de voz que consegui produzir foi suficiente para que ele percebesse que tinha ganhado a aposta.

«Sou o James Carter, muito prazer. Peço imensa desculpa pelo atraso, mas o meu carro decidiu fazer birra logo hoje. O motor foi-se abaixo a menos de cinquenta quilómetros daqui e só voltou a trabalhar passada meia hora.»

Havia qualquer coisa nas suas palavras que não batia certo. Porque pedia desculpa pelo atraso? Eram oito e meia.

Olhei para o relógio. O relógio que jurara a mim mesmo nunca tirar: um presente da minha mãe com grande valor sentimental; deu-mo quando eu tinha dezasseis anos e disse-me que era o preferido do meu pai, que eu nunca conhecera, pois partiu para a guerra quando sonhava ainda com uma vida normal e os meus olhos nunca puderam olhar para os seus senão através de fotografias.

O relógio marcava nove horas e quinze minutos.

Como era possível? Recordava-me perfeitamente de ter estacionado o carro às oito e vinte e sete.

O meu rosto devia estar com uma cor estranha porque o texano olhou para mim e perguntou: «Sente-se bem?»

«Sim, desculpe, está tudo em ordem. É só que dormi pouco esta noite e ainda estou meio ensonado», justifiquei-me, apercebendo-me imediatamente da má impressão que tinha causado, agravada por esta frase fora do contexto, como se fosse para mim um incómodo reunir-me com ele depois de uma noite sem dormir e de uma manhã passada a insultá-lo por me obrigar a levantar tão cedo.

A resposta de Mr. Carter foi imediata: «Não se preocupe, nada melhor do que um bom café para acordar. Vamos!»

E abriu caminho para o café onde eu pedi dois capuchinos.

Convenci-me de que me deveria libertar de tudo o que me perturbara nos últimos minutos – naquele momento precisava que a minha melhor versão viesse à tona o mais depressa possível. Aquela reunião era demasiado importante. Mr. Carter parecia estar perfeitamente à vontade, seria capaz de reconhecer aquele sotaque a quilómetros, tinha um tom de voz muito alto, embora falasse serenamente.

Foi-me entretendo com a descrição das suas ambições, exigências e opiniões sobre o mundo.

O que mais me agradou nele foi a imparcialidade com que se exprimia, dizendo tudo o que pensava sem se esconder atrás de um véu artificial, como se tivesse aberto a arca da sua psique: em poucos minutos expôs-se sem qualquer receio. Também falámos da sua família: contou-me que tinha cinco filhos e uma mulher que amava muito e com quem estava casado havia quarenta anos.

De repente, tirou o chapéu, sacudiu a farta cabeleira branca e, apoiando uma mão no meu braço, confidenciou-me: «Amigo, não é que eu sonhasse desde pequeno com ter cinco filhos e uma casa maravilhosa no campo cheia de animais e de todo o tipo de flores. O meu inconsciente permitia-se imaginar tudo isto simplesmente porque sabia que um dia a minha vida ia ser assim.»

Aquela sua segurança deixou-me perplexo. «Acha que existe um destino, um motivo ou um fio condutor que nos acompanha ao longo da vida?», perguntei-lhe sem conseguir esconder uma subtil ironia.

«Claro», respondeu. «A vida apresenta-nos circunstâncias boas e más para que possamos encontrar o que precisamos, para provocar em nós a reação correta: porque é dessas coisas que necessitamos nesse preciso momento.» Aguardou alguns segundos e depois continuou: «Digamos que… muitas pessoas não chegam a perceber esta mensagem e deixam-se levar pela insatisfação, pela tristeza, pelo tédio e pela vitimização.»

Aquela resposta não me convenceu.

Com efeito, o seu raciocínio podia ser vantajoso, mas parecia-me banal e um pouco básico. Interpretei-o como uma estratégia pessoal, certamente respeitável, mas nada mais do que uma tentativa para tentar acreditar em alguma coisa numa existência que se apresentava incerta, numa vida em que tudo é possível, mas em que não se tem certeza de nada.

Decidi mudar de assunto para não me desviar dos meus objetivos, mas Mr. Carter fitou os meus olhos com dureza e, de forma quase acusatória, disse: «Infelizmente, muitas pessoas apercebem-se demasiado tarde de que receberam mensagens que a vida queria que encontrassem muito antes. São espelhos, refletem-nos a nós mesmos e, se as percebermos, podemos reconhecer-nos, já não precisamos de identificar-nos com os outros, porque nos tornamos livres para nos aceitarmos na nossa imensa completude. Não se preocupe, Christian, não se preocupe. Chegará o dia em que vai perceber que o nosso encontro não foi um acaso, que eu vim até aqui para lhe transmitir uma mensagem e você para me transmitir outra a mim.»

Tive a impressão de que o meu cliente, porque deveria ser esse o seu papel, me estava a roubar o palco; deveria ser eu a falar durante hora e meia e a explicar-lhe porque devia comprar a casa que lhe propunha. Nem sequer tinha conseguido atirar com aquelas frases retóricas e sensacionalistas que precisamos de dizer para convencermos as pessoas a comprar o nosso produto.

Na verdade, na noite anterior senti uma grande autoconfiança, achei que poderia falar horas a fio e preparei inúmeros discursos e dezenas de folhas com informação para mostrar a Mr. Carter, mas, naquele dia, não cheguei sequer a abrir a pasta.

Claramente esta atitude não parecia ser um problema para o meu interlocutor; de facto, mostrava-se disposto a falar de tudo menos daquela casa, cheguei a pensar que fosse um louco com quem estivesse a perder o meu tempo. Uma manhã desperdiçada que haveria de me deixar desiludido por muitos dias, semanas, talvez meses.

A aposta era alta e eu estava a perdê-la, apercebia-me disso. Estava quase a resignar-me.

«Sei perfeitamente em que está a pensar, senhor Christian!», disse Mr. Carter após aclarar a voz. «O senhor acha que eu sou louco, um homem com vontade de falar e de desperdiçar o tempo de uma pessoa cheia de desejos e projetos relacionados com esta reunião. Não é verdade?»

Não tive forças para responder à pergunta e fiz um aceno com a testa que, na verdade, não creio que tivesse qualquer significado.

«Aí está! O que eu disse há pouco vem agora à tona», continuou o texano. «Não percebeu de que a casa foi um mero pretexto do destino para nos juntar, porque tínhamos mensagens a transmitir um ao outro. Vá, dê-me o contrato.»

Permaneci imóvel a olhar para um canto da parede do café, acreditando que se tratava de uma piada de mau gosto, nada adequada às circunstâncias.

Estava convencido de que ele não percebia a importância que aquele dia tinha para mim e de que aquele homem, que aos meus olhos se tinha transformado de repente num péssimo exemplo de um brincalhão à procura de vítimas para os seus disparates, estava a gozar comigo.

Queria perceber até onde iria, até onde levaria o seu número de moralista solitário à procura de otários para enganar: agarrei na pasta que se abriu com um estalido, vasculhei por entre as primeiras folhas e as várias fotografias, peguei no contrato e pousei-o na mesa, voltando-o na sua direção.

Mr. Carter retirou uma caneta do bolso e, em menos de um segundo, sem sequer ler o texto, assinou. Depois, com um gesto repentino, tirou do bolso do casaco um cheque bancário e entregou-mo.

«Parece-lhe bem esse valor? Já o endossei a si.»

Fiquei estupefacto. O valor era quase o dobro do que tinha estipulado como objetivo.

Deu-me vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo, sentia uma pedra às voltas no peito a mexer-me com as emoções e a brincar com a minha respiração como se fosse um ioiô.

Era tudo inverosímil, por que motivo tinha assinado sem sequer discutir o negócio por uns minutos? Depois, olhando-me diretamente nos olhos, o texano disse: «Está feliz agora? Acha que conseguiu o que queria?»

A minha resposta foi imediata: «Mas nem sequer falámos, não quis saber pormenores, nem sequer quis entrar na casa para verificar, por si mesmo, o estado do imóvel...»

«Digamos que já me tinha informado o suficiente para decidir exatamente o que fazer. A nossa reunião foi inútil para efeitos da venda da casa, mas serviu-me para perceber outras coisas certamente mais importantes, era uma parte do meu percurso pessoal», confessou.

O meu semblante tornou-se mais descontraído e respirei fundo para tentar relaxar.

«Agradeço-lhe imenso pela confiança. Não se preocupe que não se vai arrepender, vai ficar muito bem instalado.»

Na verdade, o cliente não parecia preocupado com isso. «Tenho a certeza. Queria apenas dizer-lhe que em breve chegará o momento em que irá perceber que, apesar do cheque bem recheado que lhe entreguei, as coisas belas da vida encontram-se noutras paragens, não no dinheiro a rodos, mas nas criações em que o homem não teve intervenção, que todos podem admirar e em que todos se podem rever. A razão pela qual existimos não é o mundo feito pelos homens, mas aquele que foi criado antes da sua chegada.»

Fez uma pausa e depois continuou.

«Desejo que seja feliz, senhor Christian, mas, para que isso aconteça, lembre-se de que não deve acreditar que será através do meu dinheiro. De outro modo a sua felicidade não será mais do que uma estrela-cadente: quando a vir diante de si já esta se terá afundado na imensa escuridão da noite. Idealizará assim a felicidade como uma memória, pensará que foi feliz ao ver aquela estrela luminosa e que esperava vê-la mover-se para formular um desejo. Mas só exprimiu esse desejo depois de ela ter desaparecido. A felicidade só se encontra no presente, aprendendo a apreciar este presente vivo. O passado é um presente desaparecido, o futuro é um presente imaginado, que se pode alterar radicalmente até com uma ligeira rajada de vento.» Depois insistiu: «O presente vivo, senhor Christian, siga o presente vivo.»

«Como consegue acreditar tão cegamente nessas coisas? Logo o senhor, que me parece tão ligado ao dinheiro…»

«Senhor Christian, como avalia as coisas deste mundo?»

«Bem, quer dizer… olhe em redor. Acha que algumas das pessoas sentadas à nossa volta diriam algo assim?»

«Refere-se às pessoas deste tempo, não deste mundo. O mundo fica, o tempo desaparece. As pessoas deste tempo foram treinadas para se esquecerem de si mesmas e acham que são felizes em nome do desempenho. Senhor Christian, tem a certeza de que é capaz de conformar-se como essas pessoas?»

Olhei para ele, perplexo. «Sou uma delas, se quero viver tenho de me adaptar…»

«Na verdade, fala-me de se adaptar, mas, se essa fosse a sua essência, não precisaria de se adaptar. Nunca nos adaptamos ao essencial. O essencial só se pode viver, não se pode sequer pensar no essencial, vive-se e nada mais. Consegue pensar na respiração como um conceito? Ou respira sem sequer se aperceber?»

«Onde estudou estas coisas, Mr. Carter?»

«Acha que o essencial pode ser estudado? O que sabe sobre mim?»

«Serei sincero…», comecei.

«Seja», insistiu ele.

«Sei que é norte-americano, do Texas, que é muito rico e que se dedica à beneficência.»

«Portanto não sabe nada sobre mim, nada do que disse faz parte da essência do que sou: no mundo das coisas essenciais não tenho casas, não tenho uma pátria nem a beneficência me distingue. Sou o James, eu mesmo, estou aqui consigo, sentado a olhá-lo nos olhos.»

«Mas o senhor também é o que as circunstâncias da vida fizeram de si, não o pode negar.» «

Sim, claro», explicou o homem, «desde que não me converta nas próprias experiências: as experiências não podem determinar o essencial, como parece acreditar. Identificarmo-nos com o tempo ao ponto de esquecermos as origens do mundo, do nosso mundo, é um dos males mais comuns.»

«O senhor é muito rico, observa tudo de uma posição privilegiada, parece mais fácil falar da sua perspetiva…»

«Sou rico desde que comecei a ver o mundo deste ponto de vista: primeiro tornei-me rico e só depois ganhei dinheiro, tornamo-nos o que somos no nosso mundo interior, o resto vai-se ajustando.»

«Vem de uma família rica?»

«Cresci num orfanato.»

«A sério? É órfão?»

«Prefiro dizer que cresci num orfanato, se lhe dissesse que era um órfão seria vítima da identificação com essa ideia e acabaria por trocá-la por uma parte essencial de mim. A essência está noutro lugar.»

Apertei vigorosamente a mão de Mr. Carter, levantámo-nos e paguei o pequeno-almoço.

Aquele homem tão estranho e, ao mesmo tempo, tão fascinante, dirigiu-se ao jipe cinzento que o esperava na berma da estrada, enquanto eu, satisfeito com o negócio, mas muito confuso com aquela conversa, fui na direção oposta, recordando-me de ter deixado o carro numa rua secundária próxima do café.