Prólogo
A imagem formou‐se no ecrã, mostrando um homem de capuz, óculos escuros a taparem‐lhe os olhos e um lenço a cobrir‐lhe as feições do rosto. A referência do link no topo da imagem indicava o sinal da aplicação Facebook Live, confirmando que se tratava de um livestream. O encapuzado abriu a porta de um automóvel estacionado no passeio e instalou‐se no lugar do condutor; transmitia‐se a si próprio em direto a partir do que parecia ser um smartphone.
O desconhecido encarou a câmara e respirou fundo, fitando os espectadores que assistiam a tudo através do Facebook Live. Nos bancos traseiros amontoavam‐se armas semiautomáticas e caixas de munições.
“A festa vai começar.”
A imagem tornou‐se turbulenta, sacudindo‐se de um lado para o outro; ora mostrava o assento, ora o teto, ora o tabliê. Por fim estabilizou ao alto, deixando ver o volante, o painel de bordo e a paisagem revelada pelo vidro dianteiro, incluindo a rua, as casas e as árvores nos passeios. Claramente o smartphone acabara de ser fixado no topo do capuz do homem.
O carro arrancou, começando a movimentar‐se pela rua. Uma canção numa língua eslava irrompeu no interior, sem dúvida proveniente do sistema de som da viatura.
Od Bihaća do Petrovca sela, do Petrovca sela
Srpska zemlja napadnuta cela, napadnuta cela
Karadžiću vodi Srbe svoje, vodi Srbe svoje
Nek se vidi, nikog se ne boje, nikog se ne boje
O percurso durou apenas alguns minutos, sempre ao ritmo da mesma canção.
Joj da vide hrvatske Ustaše, hrvatske Ustaše
Ne dirajte vi ognjište naše, vi ognjište naše
A certa altura apareceu no passeio um longo muro branco, escurecido pela humidade e rasgado a meio por um portão que dava acesso a um enorme edifício. A cúpula dourada e o minarete, juntamente com os grupos de pessoas de aspeto paquistanês, afegão, malaio ou de outras regiões da Ásia que para o edifício convergiam, tornavam claro que se tratava de uma mesquita.
O automóvel estacionou na berma, a canção calou‐se e o motor também. O relógio digital no tabliê assinalava as 13h40. A imagem rodou, viu‐se a rua e a seguir os bancos traseiros com as armas e as munições, os braços estendidos do homem a remexerem o material bélico; o condutor tinha‐se apeado e pelos vistos selecionava as armas. Escolheu uma caçadeira de canos serrados, a expressão kebab remover esculpida na coronha, e carregou‐a com balas. A seguir pegou numa espingarda semiautomática AR-15 e pendurou‐a a tiracolo. Depois armou a caçadeira. Tudo com muita calma.
Já devidamente equipado, fechou a porta do carro e começou a caminhar. Junto ao portão estavam quatro jovens asiáticos à conversa, três de jeans e um de kaftan branco. Os jovens olharam‐no com uma certa surpresa; não era evidentemente normal um desconhecido de capuz e smartphone fixado sobre a cabeça entrar no recinto da mesquita com uma caçadeira de canos serrados nas mãos e uma AR-15 pendurada ao ombro.
Um dos jovens, o de kaftan, ergueu a mão hesitante.
“Olá, irmão.”
O recém‐chegado apontou‐lhe a caçadeira e disparou. Ato contínuo, e quase como se estivesse num jogo de vídeo, virou a arma para os restantes, todos paralisados de surpresa, e disparou sucessivamente até ficarem os quatro estendidos no chão, a terra molhada de sangue. Eclodiram gritos e a imagem mostrou alguns homens, mulheres e crianças a correrem desvairados em várias direções, em busca de abrigo. Apontou ao acaso para eles, sem discriminar mulheres e crianças, e voltou a abrir fogo. Derrubou assim várias pessoas até as balas se esgotarem.
Atuando sempre de forma calma e metódica, o intruso encaminhou‐se então para a mesquita, ao mesmo tempo que ia recarregando a caçadeira com munições. Múltiplos sapatos amontoavam‐se à porta. Entrou no edifício e deparou‐se com dezenas e dezenas de fiéis, provavelmente até centenas de pessoas, a maior parte sentada no grande tapete azul‐turquesa a meio das suas orações, os mais próximos da porta com uma expressão inquisitiva nos olhares; pelos vistos não tinham ainda percebido o que se estava realmente a passar.
Não perdeu tempo. Apontou para o homem mais próximo e disparou. Voltou a caçadeira para um segundo homem e disparou. Depois para um terceiro e disparou. Desencadeou‐se um verdadeiro pandemónio no interior da mesquita. A multidão abriu alas, tentando escapulir‐se por qualquer passagem ou abrigo por onde se pudesse esgueirar como água a deslizar pelas escapatórias, mas o intruso não parava de disparar e os crentes que não conseguiam fugir tombavam em sucessão. Dir‐se‐ia mesmo um videojogo.
A dado momento, a caçadeira disparou em seco. As munições haviam‐se esgotado. O atacante largou a arma e pegou na AR-15 que trazia a tiracolo, esta com o número 14 esculpido na coronha, e apontou‐a genericamente à multidão, uma luz estroboscópica a piscar no cano. Voltou a abrir fogo, mais pessoas tombaram no chão, os gritos recrudesceram, a confusão tornou‐se generalizada e o pânico total. As detonações soavam diferentes das da caçadeira de canos serrados e a sequência de tiros também; a caçadeira disparava tiro a tiro, a semiautomática largava rajadas curtas. Mas a letalidade era a mesma e os corpos iam‐se amontoando no interior da mesquita.
Depois de abater mais de uma dezena de homens, alguns atingidos por oito ou nove balas das rajadas, o cartucho das munições saltou da arma e caiu sobre o tapete azul‐turquesa, forçando o atacante a interromper a matança. Encaixou outro cartucho na semiautomática, mas o salão principal das orações tinha‐se entretanto esvaziado. Avançou por isso para o salão contíguo, a ala das mulheres e crianças, e recomeçou a disparar. Elas caíam em sucessão, aqui uma idosa, ali uma rapariga, a seguir um bebé, depois uma adolescente. A certa altura o atirador já nem apontava, disparava para a massa de corpos comprimidos uns nos outros, os das pessoas que não tinham conseguido fugir, até estarem todas estendidas no chão no meio de poças de sangue.
Recarregou mais uma vez a AR-15 e voltou ao principal salão das orações. Só havia aí homens caídos, uns mortos e outros feridos; os restantes já tinham escapado. Ao passar pelos corpos, ia disparando um tiro na cabeça de cada um; na dúvida, o coup de grâce era a única maneira de garantir que morriam mesmo. Por fim, regressou à porta de entrada, sempre a desferir o tiro de misericórdia na testa de todos os corpos estendidos ao longo do caminho.
Chegou à saída do edifício religioso e consultou o relógio. Os ponteiros indicavam as 13h47. Tinham‐se passado sete minutos desde que estacionara o automóvel e apenas cinco desde que abrira fogo pela primeira vez. Já não havia ninguém de pé. Era hora de se retirar. Encaminhou‐se para o portão. Ao aproximar‐se dos corpos dos quatro rapazes que abatera no início do ataque, cruzou‐se com uma mulher deitada no chão; estava encharcada de sangue, mas permanecia viva e mostrava‐se consciente. O encapuzado parou e inclinou‐se, como se quisesse ouvir o que ela tinha para dizer.
“Não!”, implorou a mulher, o rosto contraindo‐se num esgar de horror. “Por favor, não!”
Apontou‐lhe a arma semiautomática. “Tenho filhos, tenho...”
Meteu‐lhe uma bala na testa e ela ficou imediatamente imóvel, os pés a tremerem no estertor final. O atacante retomou a marcha, passou o portão, entrou no automóvel e arrancou a grande velocidade.
O som da canção eslava voltou a encher o interior da viatura.
Iz Krajine krenuli su vuci, krenuli su vuci
Čuvajte se Ustaše i Turci, Ustaše i Turci
Karadžiću vodi Srbe svoje, vodi Srbe svoje
Nek se vidi, nikog se ne boje, nikog se ne boje
O condutor respirou fundo.
“As armas funcionaram bem”, observou em voz alta, como se apresentasse um relatório, claramente a falar para os espectadores que tudo acompanhavam em direto pela emissão do Facebook Live. “Pena aquele cartucho que caiu no chão a meio do combate, hem? Quanto ao resto, rapazes, nem tive mesmo tempo para apontar. Caramba, havia tantos alvos...”
A viagem para o destino seguinte foi rápida. O relógio no tabliê assinalava as 13h52 quando estacionou o automóvel no passeio ao lado de um edifício branco, pequeno e de aspeto rudimentar, uma espécie de pavilhão prefabricado. Vários asiáticos encaminhavam‐se para o edifício, uns em trajos ocidentais e outros nas vestes tradicionais muçulmanas. Mais alvos.
Sempre a transmitir tudo em direto pelo Facebook Live, o homem repetiu o ritual que já havia cumprido na ação anterior. Saiu do carro, voltou‐se para os bancos traseiros, pegou na mesma espingarda semiautomática AR-15 que tinha acabado de utilizar e numa nova caçadeira de canos serrados, encheu‐as de munições e, enfim preparado, enfrentou as pessoas que se dirigiam para o pequeno pavilhão branco e abriu fogo com a caçadeira, derrubando os alvos mais próximos.
A caçadeira de repente deixou de disparar, talvez por ter encravado ou, se calhar, porque as munições se haviam esgotado, e o atacante atirou‐a ao chão. Quando preparava a AR-15 para retomar o ataque, contudo, um dos muçulmanos, um homem de kaftan, lançou um objeto grande na direção do agressor, obrigando‐o a desviar‐se. O muçulmano apanhou a caçadeira largada no chão e apontou‐a ao atacante.
Assustado, o encapuzado meteu‐se de imediato no carro, pois não sabia se a arma se desencravaria e se poderia ser alvejado, e arrancou prontamente dali. Ainda ouviu o vidro traseiro do automóvel partir‐se, atingido pelo muçulmano que reagira, mas logo a seguir a viatura fez uma curva e depressa ficou fora da linha de tiro.
Ao fim de alguns segundos, o sinal do Facebook Live foi interrompido. Acabara‐se a transmissão em direto por streaming. Mas a gravação continuava. O carro prosseguiu para fora da malha urbana, penetrou numa zona de floresta e meteu inesperadamente por um caminho de cabras, abandonando a estrada principal e pondo‐se assim ao abrigo de uma rápida deteção pelas autoridades.
Numa zona protegida por árvores e rochas gigantes, a viatura imobilizou‐se. A imagem, até aí estável, voltou a balouçar caoticamente de um lado para o outro, mostrando uma sucessão rápida de objetos, o volante, o teto, os assentos, o tabliê, até por fim se imobilizar no rosto do atacante; este pelos vistos desmontara o smartphone do capuz e encarava agora a microcâmara do aparelho.
Com a imagem fixa nele, o homem retirou o capuz, a seguir soltou o lenço que lhe cobria o rosto e tirou os óculos escuros que lhe ocultavam os olhos verdes. Enfim com as feições descobertas e o rosto revelado ao mundo, o assassino em massa esboçou o mais maravilhoso dos sorrisos.
Era Tomás Noronha.
I
O verão acabara apenas dois dias antes e as folhas já haviam começado a tombar das árvores, estendendo um suave tapete avermelhado pelos passeios de Ryazan; dir‐se‐ia relva em brasa. Os primeiros sinais do outono não pareciam, no entanto, interessar a Dimitri Chernyshev. Sentado no seu gabinete da esquadra do bairro de Dashkovo‐Pesochnya, o tenente da polícia russa alheara‐se da paisagem para lá da janela e mantinha os olhos azuis presos ao ecrã do computador.
Desde a sua juventude, quando frequentara o liceu número 1535 de Moscovo, que Dimitri se sentia fascinado com as promessas do universo digital. Fora na época da União Soviética. A verdade é que a ditadura comunista, centralizada e obcecada com a vigilância da população ao ponto de se tornar paranoica, se atrasara em relação ao Ocidente no desenvolvimento destas tecnologias. Sim, claro, no Instituto de Eletrotecnologia de Kiev havia sido desenvolvida na década de 1950 uma máquina de cálculo eletrónico designada MESM. Depois disso, foram concebidos os computadores Strela, Mir, Minsk, BESM, Argon, e ainda o Micro-80 e o Radio-86RK, entre outros.
O facto, todavia, é que o país se revelara incapaz de competir com o ritmo de desenvolvimento, e sobretudo a qualidade, dos computadores produzidos pela indústria ocidental. Para esconder retoricamente as suas insuficiências, resolvera demonizar esta tecnologia. No seu afã de a desvalorizar, chegara mesmo a descrever os computadores como um produto pequeno‐burguês do capitalismo decadente.
Balelas, como era evidente. Aquela propaganda para saloios jamais iludira Dimitri ou quem quer que se interessasse pelas tecnologias do futuro. Nessa época, aliás como agora, o rapaz não manifestava o menor interesse em ideologia, nem no que dizia o regime. Papagueava a doutrina porque a isso era obrigado, todos naquele tempo tinham de trautear a mesma canção, mas o que os lábios falavam a cabeça não pensava nem o coração sentia. O que lhe interessava mesmo eram os computadores e as possibilidades infinitas que eles abriam ao futuro. O sonho de Dimitri sempre fora o de entrar na Academia Soviética das Ciências e lidar com máquinas que pensassem e até que fossem capazes de falar, como às vezes via nos filmes de ficção científica.
A fantasia desses filmes começara a tornar‐se realidade quando, nos seus tempos de estudante, foi instalado o Elektronika BK-0010 no liceu número 1535. O primeiro computador que viu ao vivo! Ah, que emoção! Teve, porém, de esperar pela queda do comunismo para deitar as mãos a um precioso Agat, na verdade uma simples imitação do Apple II americano, com a diferença de que se estava sempre a avariar. Mas essas avarias nem o incomodavam; constituíam excelentes pretextos para abrir a máquina e estudá‐la por dentro como se lhe buscasse a alma.
“Chá?”
Levantou os olhos. Ekaterina, a nova secretária da esquadra, sorria‐lhe com uma chaleira na mão, uma coluna de vapor a fumegar pelo cano. Havia já um ano que Dimitri não tinha namorada e a presença da nova contratação feminina da esquadra não o deixava indiferente. A rapariga era agradável, com o seu cabelo aloirado nas pontas e os grandes olhos castanhos a brilharem de vida. Além do mais, aproximava‐se com frequência dele, o que não lhe parecia acidental e abria mil possibilidades; era só uma questão de lhe dar conversa e ver onde a cantilena o levaria.
O tenente pegou na chávena que tinha pousada ao canto da secretária e estendeu‐lha.
“Só um bocadinho, por favor.”
A secretária verteu o chá para a chávena dele.
“Há mais descobertas sobre Volgodonsk?”
Comentários