PRELÚDIO

HOJE, 10:52, PARIS

“Kate?”

Kate olha fixamente através do vidro de uma montra cheia de almofadas e toalhas de mesa e cortinas, todas em tons de cinzento e chocolate e verde-musgo, uma paleta que vinha substituir a de tons pastel da semana anterior. Assim mudara a estação.

Vira-se ao reparar numa mulher que para ao seu lado na estreita lasca de passeio na Rue Jacob. Quem é esta mulher?

“Meu Deus, Kate? És tu?” A voz é-lhe familiar. Mas a voz não chega.

Kate esqueceu-se do que era ao certo aquilo que procurava sem grande convicção. Era qualquer coisa em tecido. Cortinas para a casa de banho das visitas? Qualquer coisa frívola.

Aperta o cinto da gabardine, num gesto de autoproteção. Tinha chovido de manhã cedo, a caminho da escola, a neblina a erguer-se do Sena, os saltos duros das botas de cabedal a bater contra a calçada molhada. Ainda traz o impermeável leve, o Herald Tribune dobrado a espreitar do bolso, as palavras cruzadas resolvidas no café ao lado da escola, onde toma o pequeno-almoço quase todos os dias com outras mães expatriadas.

Esta mulher não é uma delas.

Os óculos de sol desta mulher cobrem-lhe metade da testa e grande parte das bochechas e toda a área dos olhos; não há maneira de identificar com toda a certeza quem se esconde atrás de todo aquele plástico negro e logótipos dourados. O seu cabelo curto cor de avelã está preso num apanhado muito apertado, seguro por uma fita de seda. É alta e está em boa forma, mas cheia no peito e nas ancas; voluptuosa. A sua pele brilha com um bronzeado de aparência natural e saudável, como a de quem passa muito tempo ao ar livre, a jogar ténis ou a fazer jardinagem. Não é uma daquelas frituras muito escuras por que tantas mulheres francesas optam, bronzeados produzidos pela radiação ultravioleta de lâmpadas fluorescentes em cápsulas tipo caixão.

As roupas desta mulher, apesar de não se tratar mesmo de calças de montar e de casaco de competição, fazem lembrar roupas de equitação. Kate reconhece o casaco de padrão escocês da montra de uma boutique horrivelmente cara ali perto, uma nova loja que veio substituir uma estimada livraria, troca que os locais que mais se manifestam dizem assinalar o fim do Faubourg Saint-Germain que conheciam e adoravam. Mas o apreço pela livraria era sobretudo abstrato e a loja estava geralmente vazia, enquanto a nova boutique costuma estar à pinha, não só com donas de casa texanas, homens de negócio japoneses e bandidos russos, que pagam em dinheiro – com maços de notas frescas e lisas, dinheiro acabadinho de lavar – as pilhas de camisas e écharpes e malas, mas também com os residentes locais ricos. Não os há pobres.

Esta mulher? Está a sorrir, com uma boca cheia de dentes perfeitamente alinhados e brilhantes de tão brancos. É um sorriso familiar, ligado a uma voz familiar; mas Kate ainda precisa de lhe ver os olhos para confirmar a sua pior suspeita.

Há carros novinhos em folha do Sudeste Asiático cujo preço de retalho é inferior ao do casaco de padrão escocês desta mulher. Também Kate está bem vestida, num estilo mais sóbrio preferido por mulheres como ela. Esta mulher opera de acordo com um conjunto de princípios diferente.

Esta mulher é americana, mas fala sem nenhum sotaque regional. Podia ser de qualquer lado. Podia ser qualquer pessoa.

“Sou eu”, diz a mulher, retirando por fim os óculos de sol.

Luísa Sobral vem ao É Desta Que Leio Isto. Quer ler "Apenas Miúdos", de Patti Smith? Junte-se à conversa

Luísa Sobral junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 14 de setembro, pelas 21h.

Habituada a recomendar leituras nas suas redes sociais, traz um livro para o clube É Desta Que Leio Isto — e não deixa a música de fora: "Apenas Miúdos", de Patti Smith.

"Apenas Miúdos", de Patti Smith

Este é o primeiro livro de Patti Smith em prosa. É um livro de memórias — que começa no Verão em que Coltrane morreu, do Verão do amor livre e de todos os motins, do Verão em que conheceu a figura central deste livro — o lendário fotógrafo americano Robert Mapplethorpe. Mas é também um retrato de época — dos dias do Chelsea Hotel e de Nova Iorque no fim dos anos 1960 — e uma comovente história de juventude e amizade.

Just Kids é uma fábula em que encontramos poesia, rock’n’roll, sexo e arte que começa numa história de amor e acaba numa elegia.

Sobre Luísa Sobral:

Luísa Sobral é considerada uma das cantoras-compositoras mais importantes da nova geração de músicos portugueses. Estreou-se em 2011 com ‘The Cherry on My Cake’. Seguem-se ‘There’s A Flower In My Bedroom’ (2013), com convidados como Jamie Cullum, António Zambujo e Mário Laginha, ‘Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa’ (2014), destinado ao público infantil, e ‘Luísa’ (2016), gravado em Los Angeles. ‘Rosa’, o quinto álbum de originais, chegou em 2018.

"A sua faceta de compositora vai-se destacando ao longo dos anos, chegando a compor para artistas como Ana Moura, António Zambujo, Gisela João, Sara Correia, Mayra Andrade, entre muitos outros. Em 2017, assina ‘Amar Pelos Dois’, que entrega ao irmão, Salvador Sobral, para interpretar. A parceria fraterna revela-se um estrondoso sucesso: Portugal conquista a sua primeira vitória de sempre na Eurovisão", pode ler-se na sua biografia.

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Kate dá instintivamente um passo atrás, tropeçando contra a pedra cinzenta coberta de fuligem da parte inferior do edifício. O metal da sua carteira produz um retinido alarmante ao bater contra o vidro da montra.

Kate fica boquiaberta, sem emitir um som.

O seu primeiro pensamento vai para as crianças, um estado de pleno pânico surge de repente. A essência da parentalidade: pânico imediato pelos filhos, sempre. Esta foi a única parte do plano que Dexter nunca considerou com seriedade: o terror agravado – a ansiedade irreprimível – de quando há filhos envolvidos.

Esta mulher estava a esconder-se atrás de uns óculos de sol, tinha um penteado e uma cor de cabelo novos, a sua pele estava mais escura do que antes e engordara uns cinco quilos. Está diferente. Ainda assim, Kate estava perplexa por não a ter reconhecido à primeira vista, à primeira sílaba. Kate sabe que não a reconheceu porque não quis.

“Meu Deus!”, conseguiu deitar da boca para fora.

A mente de Kate dá voltas; precipita-se rua abaixo e dobra a esquina para entrar por uma porta vermelha pesada e atravessar a passagem sempre fresca sob o pórtico que envolve o pátio até ao chão de mármore do átrio, sobe pelo elevador com grades de latão, chega ao alegre hall amarelo com um desenho do século XVIII numa moldura dourada.

Esta mulher está de braços abertos, um convite para um grande abraço à americana.

Apressa-se pelo corredor até chegar ao fundo, ao escritório em madeira com vista panorâmica para a Torre Eiffel. Usa a chave de latão ornada para abrir a última gaveta da secretária antiga.

E porque não um abraço? São amigas de longa data, afinal. Mais ou menos. Se alguém estiver a ver, poderá parecer suspeito se estas duas pessoas não se abraçarem. Ou talvez parecesse suspeito se o fizessem.

Não demorou muito até que desse por si a pensar que está a ser observada. E que sempre esteve, o tempo todo. Tinha sido apenas há uns meses que Kate fora finalmente capaz de imaginar que estava a viver uma vida completamente livre de vigilância.

E dentro da gaveta da secretária: o cofre de aço de reforço duplo.

“Que surpresa”, diz Kate, ao mesmo tempo verdade e mentira.

E dentro do cofre: os quatro passaportes com identidades diferentes para a família. E o maço de notas grosso preso por um elástico, um sortido de altas denominações de euros, libras britânicas e dólares americanos, notas novas e limpas, a sua própria versão de dinheiro lavado.

“É tão bom ver-te.”

E, embrulhada num pano de camurça azul-claro, a Beretta 92FS que comprou a um chulo escocês em Amsterdão.

PARTE I

1

DOIS ANOS ANTES, WASHINGTON, D.C.

“Luxemburgo?”

“Sim.”

“Luxemburgo?”

“Isso mesmo.”

Katherine não sabia como reagir. Então, decidiu-se pela resposta

por defeito, pelo desvio via ignorância. “Onde é o Luxemburgo?” Assim que fez esta pergunta dissimulada, arrependeu-se da decisão.

“É na Europa Ocidental.”

“Ou seja, é na Alemanha?” Desviou o olhar de Dexter, por vergonha do buraco que estava a cavar para si mesma. “Na Suíça?” Dexter olhou para ela com um ar perplexo, claramente a tentar – a custo – não dizer nada de errado. “É um país em si mesmo”, disse. “É um grão-ducado”, acrescentou, sem relevância. “Um grão-ducado.”

Ele acenou.

“Estás a gozar.”

“É o único grão-ducado do mundo.”

Ela não disse nada.

“Faz fronteira com França, Bélgica e Alemanha”, continuou Dexter, sem que lhe fosse pedido. “São os países que o rodeiam.”

“Não.” Abanou a cabeça. “Esse país não existe. Estás a falar da – sei lá – Alsácia. Ou da Lorena. Estás a falar da Alsácia-Lorena.”

“Isso são sítios em França. O Luxemburgo é uma... hum... nação diferente.”

“E o que faz dela um grão-ducado?”

“É regida por um grão-duque.”

Ela redirecionou a sua atenção para a tábua de cortar, com a cebola meio picada, pousada sobre o balcão que ameaçava separar- -se inteiramente do armário de cozinha empenado que o supor- tava, desconjuntado por alguma força primordial – água, gravidade, ou ambas – fazendo assim com que a cozinha passasse a linha do aceitavelmente gasta para o inaceitavelmente desconchavada, para além de pouco higiénica e até inegavelmente perigosa, forçando-os por fim a fazer uma renovação completa que, mesmo depois de excluírem todas as melhorias desnecessárias e todos os caprichos estéticos, continuaria a custar 40 mil dólares que eles não tinham.

Como solução provisória, Dexter tinha prendido os cantos do balcão com grampos para impedir que a placa de madeira se desintegrasse dos armários. Isso tinha sido dois meses antes. Entre- tanto, os grampos mal colocados tinham levado Katherine a estilhaçar um copo de vinho e, uma semana depois, enquanto cortava uma manga, a bater com a mão no grampo, fazendo com que a faca escorregasse e a lâmina deslizasse silenciosamente pela carne da sua palma esquerda, banhando a manga e a tábua de sangue. Ficou à frente do lava-louça, com um pano de cozinha a pressionar a ferida, o sangue a pingar no tapete surrado, a espalhar-se pelas fibras de algodão criando o mesmo padrão daquele dia no Waldorf, em que ela devia ter fechado os olhos, mas não o fez.

“E o que é um grão-duque?” Limpou as lágrimas da cebola dos olhos.

“Um homem que se encarrega de um grão-ducado.”

“Estás a inventar isto tudo.”

Livro: "Os Expatriados

Autor: Chris Pavone

Editora: Lua de Papel

Data de Lançamento: 29 de agosto de 2023

Preço: € 18,50

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“Não estou.” Dexter mostrava um sorriso muito tímido, como se pudesse mesmo estar a passar-lhe a perna. Mas não, este sorriso era demasiado tímido para isso; este era o sorriso de Dexter a fingir que lhe está a passar a perna, quando na verdade não podia estar a falar mais a sério. Um sorriso falso fingido.

“Ok”, disse ela, “vou cair na tua conversa: porque é que haveríamos de nos mudar para o Luxemburgo?”

“Para fazer muito dinheiro e para viajar pela Europa a toda a hora.” E eis o seu sorriso cheio e desprendido. “Como sempre sonhámos.” O olhar aberto de um homem que não esconde segredos e que não admite a possibilidade de outras pessoas o fazerem. Era isso que Katherine valorizava acima de tudo no seu marido.

“Vais fazer muito dinheiro? No Luxemburgo?”

“Sim.”

“Como?”

“Estão com falta de homens muito atraentes. Então vão pagar-me um balúrdio por ser incrivelmente bem-parecido e extraordinariamente sexy.”

Esta era a piada deles; já o tinha sido durante uma década. Dexter não era nem especialmente atraente, nem particularmente sexy. Era um clássico nerd dos computadores, desengonçado e desajeitado. Não era, na verdade, malparecido; os seus traços eram simples, uma amálgama banal de cabelo ruivo, queixo pontiagudo, bochechas rosadas e olhos cor de avelã. Com a ajuda de um corte de cabelo decente, de melhores noções de comunicação e talvez de psicoterapia, poderia vir a tornar-se francamente bonito. Mas ele projetava seriedade e inteligência, não fisicalidade ou sexualidade.

Foi isso que originalmente atraiu Katherine: um homem que não tinha nada de irónico, malicioso, aborrecido, porreiro, calculado. Dexter era franco, fácil de ler, fiável e simpático. Os homens no seu mundo profissional eram manipuladores, presunçosos, impiedosos e egoístas. Dexter era o seu antídoto. Um homem regrado, despretensioso, infalivelmente honesto e de aparência simples.

Já há muito se conformara com o seu aspeto genérico e com a sua falta de sofisticação. Então, enfatizava o seu lado nerd com a moda padrão: óculos de massa, roupas amarrotadas, desleixadas e que parecem não ter sido propriamente escolhidas, cabelo de quem acabou de se levantar. E fazia piadas sobre a sua aparência. “Vou estar em sítios públicos”, continuou. “Às vezes, quando estiver cansado, acho que me vou sentar. E vou apenas, sabes, ser bonito.” Soltou uma gargalhada, apreciando a sua própria graça. “O Luxemburgo é a capital mundial dos bancos privados.”

“E?”

“Consegui um contrato lucrativo de um desses bancos privados.”

“Qual é o lucro?”

“300 mil euros por ano. Quase meio milhão de dólares, com a taxa de câmbio de hoje. Mais despesas. Mais bónus. O total pode acabar por chegar aos três quartos de um milhão de dólares.”

Era, sem dúvida, muito dinheiro. Mais do que ela imaginava que Dexter pudesse algum dia vir a ganhar. Apesar de ter estado envolvido na web desde praticamente o seu início, nunca teve a força ou a visão para se tornar rico. Ficara quase sempre de braços cruzados, enquanto os seus amigos e colegas angariavam capital e corriam riscos, abriam falência ou recebiam ipos, e acabavam a voar em jatos privados. Mas Dexter não.

“E mais para a frente”, continuou, “quem sabe? E” – esticou as mãos, gesticulando o seu golpe de misericórdia – “nem sequer vou ter de trabalhar assim tanto.” Ambos tinham em tempos sido ambiciosos. Mas depois de dez anos juntos e de cinco com filhos, apenas Dexter mantinha um nadinha de ambição. E a maioria do que restava era a ambição de trabalhar menos.

Ou pensava ela. Agora, aparentemente, também ambicionava ficar rico. Na Europa.

“Como é que sabes?” perguntou ela.

“Sei qual é a dimensão da operação, a sua complexidade, o tipo de transações. As necessidades de segurança deles não são tão exigentes quanto aquilo com que eu lido agora. Para além disso, são europeus. Toda a gente sabe que os europeus não trabalham assim tanto.”

Dexter nunca ficou rico, mas ganhava bem. E Katherine também tinha consistentemente subido de escalão. Juntos, fizeram um quarto de milhão de dólares no ano anterior. Mas, com o empréstimo, as intermináveis grandes reparações que faziam à casinha velha na periferia alegadamente emergente da supostamente rejuvenescida Columbia Heights, a escola privada – a baixa de D.C. era perigosa, em temos de escolas públicas – e os dois carros, nunca tinham dinheiro nenhum. O que tinham era algemas de ouro. Não, de ouro não: as algemas eram, no máximo, de bronze; talvez de alumínio. E a cozinha estava a desintegrar-se.

“Então vamos ser ricos”, disse Katherine, “e vamos poder viajar para todo o lado, e tu vais estar comigo e com os miúdos? Ou vais estar sempre fora?”

Ao longo dos dois meses anteriores, Dexter tinha viajado muito mais do que o normal; estava a perder muito da vida familiar. Então, naquele momento, as suas viagens de trabalho eram um tema sensível. Acabara de regressar de uns dias em Espanha, uma viagem de última hora que implicou que ela cancelasse os seus planos sociais, que eram poucos e distanciados uns dos outros, não eram para cancelar sem uma boa razão. Ela não tinha grande vida social, nem amigos com fartura. Mas era melhor do que nada.

A dada altura, tinham sido as viagens de trabalho de Katherine a representar um problema sério. Mas, pouco depois de Jake ter nascido, ela cortara quase inteiramente com as viagens e reduzira drasticamente as suas horas de trabalho. Mesmo sob este regime mais ou menos novo, raramente conseguia chegar a casa antes das sete. Passar tempo a sério com as crianças era aos fins de semana, entre idas ao supermercado, limpezas, aulas de acrobática e tudo o resto.

“Não muito”, disse, de forma pouco conclusiva ou específica. A evasão não escapou a Katherine.

“Para onde?”

“Londres. Zurique. Talvez os Balcãs. Provavelmente uma vez por mês. Duas.”

“Os Balcãs?”

“Sarajevo, talvez. Belgrado.”

Katherine sabia que a Sérvia era um dos últimos sítios que Dexter quereria visitar.

“O banco tem interesses lá.” Mostrou um ligeiro encolher de ombros. “De qualquer forma, viajar não vai ser a parte determinante do trabalho. Viver na Europa, sim.”

“Gostas do Luxemburgo?” perguntou.

“Só estive lá duas ou três vezes. Não tenho uma ideia muito clara do sítio.”

“Tens alguma ideia? Porque eu claramente nem sabia bem em que continente ficava.” Quando Katherine começou esta mentira, sabia que tinha de a levar até ao fim. Era esse o segredo de man- ter mentiras: não tentar escondê-las. Sempre fora para si preocupantemente fácil mentir ao marido.

“Sei que é um país rico”, disse Dexter. “O PIB per capita mais alto do mundo, em alguns anos.”

“Isso não pode ser verdade”, disse, apesar de saber que era. “Isso tem de ser um país que produza petróleo. Talvez os Emirados, ou o Qatar, ou o Kuwait. Não um sítio que eu até há cinco minutos pensava que era um estado na Alemanha.”

Ele encolheu os ombros. “Ok. Que mais?”

“É... hum... é pequeno.”

“Pequeno como?”

“No país inteiro vive meio milhão de pessoas. É mais ou menos do tamanho de Rhode Island. Mas Rhode Island é maior, acho eu. Um bocadinho.”

“E a cidade? Há uma cidade, certo?”

“Há uma capital. Também se chama Luxemburgo. Vivem lá 80 mil pessoas.”

“80 mil? Isso não é uma cidade. Isso – não sei – isso é uma cidade universitária.”

“Mas é uma belíssima cidade universitária. No meio da Europa. Onde alguém me vai pagar muito dinheiro. Portanto, não é uma cidade universitária normal, tipo Amherst. E é uma cidade universitária onde não vais precisar de trabalhar.”

Katherine congelou a meio de picar a cebola, com a reviravolta deste plano que ela antecipara dez minutos antes, assim que ele proferiu a questão “O que achas de irmos viver para o Luxem- burgo?”. A reviravolta que significava que ela tinha de se despedir, definitivamente. Naquele primeiro clarão de reconhecimento, fora tomada por um alívio profundo, o alívio de uma solução inesperada para um problema delicado. Ela ia ter de se despedir. Não era uma decisão sua; não tinha escolha.

Nunca tinha admitido ao marido – mal o admitira a si própria – que queria despedir-se. E agora nunca teria de o admitir.

“Então o que é que eu ia fazer?” perguntou. “No Luxemburgo? Que, já agora, ainda não estou convencida de que existe.”

Ele sorriu.

“Tens de admitir”, disse ela, “parece inventado.”

“Vais viver uma vida de lazer.”

“Agora a sério.”

“É a sério. Vais aprender a jogar ténis. Planear as nossas viagens. Tratar de uma casa nova. Aprender línguas. Ter um blogue.”

“E quando me aborrecer?”

“Se te aborreceres? Podes arranjar um trabalho.”

“A fazer o quê?”

“Washington não é o único sítio no mundo onde as pessoas escrevem documentos de orientação.”

Katherine devolveu o olhar à sua cebola mutilada e recomeçou a picar, numa tentativa de sublimar o elefante que acabara de entrar na conversa. “Touché.”

“A propósito”, continuou Dexter, “o Luxemburgo é uma das três capitais da União Europeia, em conjunto com Bruxelas e Estrasburgo.” Aquilo parecia um anúncio de televisão do raio do país. “Imagino que haja montes de ONGs a quem dava jeito ter uma americana entendida nas suas folhas de pagamento bem financiadas.” Misturado com um agente de recrutamento. Um daqueles tipos dos recursos humanos que é consistentemente alegre, com pregas nas calças de caqui e moedas brilhantes nos mocassins.

“E quando é que isto iria acontecer?” Katherine afastava as deliberações de si mesma, das suas perspetivas, do seu futuro. Escondendo-se.

“Bem.” Suspirou, um suspiro muito pesado, um mau ator que sobrestima as suas capacidades. “Aí é que está o problema.”

Não prosseguiu. Este era um dos poucos péssimos hábitos de Dexter: levá-la a fazer-lhe perguntas, em vez de fornecer as res- postas que sabia que ela queria. “Bem?”

“Tão cedo quanto possível”, admitiu, como que sob coação, cimentando as más opiniões, o atirar da fruta podre.

“O que é que isso quer dizer?”

“Estaríamos a viver lá pelo fim do mês. E eu provavelmente vou precisar de ir lá uma ou duas vezes sozinho, antes disso. Tipo segunda-feira.”

Katherine ficou boquiaberta. Não só isto vinha do nada, como vinha a máxima velocidade. Dava voltas na mente, numa tentativa de calcular como poderia fazer para se despedir em tão pouco tempo. Seria difícil. Levantaria suspeitas.

“Eu sei”, disse Dexter, “é muito pouco tempo. Mas dinheiro assim? Vem com sacrifícios. E este sacrifício? Não é assim tão mau: é termos de nos mudar para a Europa o mais rápido possível. E repara.” Levou a mão ao bolso do casaco e desdobrou uma folha de papel de tamanho ofício, esticando-a sobre o balcão. Parecia ser uma folha de cálculo, com o título ORÇAMENTO PARA O LUXEMBURGO no topo.

“É, na verdade, uma boa altura”, continuou Dexter, na defensiva, continuando a não explicar porque é que havia tanta pressa. Katherine não viria a compreender a razão da pressa até muito, muito mais tarde. “Porque ainda vamos estar nas férias de verão e conseguimos chegar ao Luxemburgo a tempo de as crianças entrarem numa escola nova no início do período.”

“E essa escola seria...?”

“Uma escola privada de língua inglesa.” Dexter tinha uma resposta rápida pronta para tudo. Tinha feito uma folha de cálculo, por amor de Deus. Que romântico. “Paga pelo cliente.”

“É uma boa escola?”

“Tenho de assumir que a capital mundial dos bancos privados, com os maiores rendimentos do planeta, vai ter uma escola decente. Ou duas.”

“Não precisas de ser sarcástico. Estou só a fazer algumas perguntas menores sobre a educação dos nossos filhos e sobre o sítio onde vamos viver. Sabes, ninharias.”

“Desculpa.”

Katherine deixou Dexter sofrer a sua raiva durante alguns segundos antes de recomeçar. “Íamos viver no Luxemburgo durante quanto tempo?”

“O contrato seria de um ano. Renovável por mais um, com um aumento.”

Passou os olhos pela folha de cálculo, encontrou a última linha, poupanças líquidas de quase 200 mil por ano – euros? Dólares? Seja o que for. “E depois?” perguntou, animada com aquela última linha. Há muito que se tinha conformado com a ideia de viver falida para sempre. Mas agora começava a parecer que o para sempre era, afinal, finito.

“Quem sabe.”

“É uma resposta bastante fraca.”

Ele passou à volta do balcão de cozinha deteriorado e envolveu-a com os braços, por trás, mudando completamente o registo da conversa. “É isto, Kat”, disse, o hálito quente contra o seu pescoço. “É diferente do que imaginámos, mas é isto.”

Era, na verdade, exatamente aquilo com que tinham sonhado: começar uma vida nova no estrangeiro. Ambos sentiam que tinham perdido experiências importantes, ambos encurralados em circunstâncias que eram exclusivas de uma juventude despreocupada. Agora, no fim dos trintas, ainda ansiavam pelo que tinham perdido; ainda acreditavam ser possível. Ou jamais se tinham permitido pensar que era impossível.

“Nós conseguimos”, disse baixinho, ao seu pescoço.

Ela pousou a faca. Um adeus às armas. Não era o primeiro. Tinham discutido a ideia a sério, de noite, depois de uns copos de vinho. Ou tão a sério quanto conseguiam, tarde, tocados. Concordaram que mesmo não sabendo se seria difícil chegar a outro país, seria sem dúvida fácil sair de Washington.

“Mas o Luxemburgo?” perguntou. As terras estrangeiras que imaginaram eram sítios como Provença ou Umbria, Londres ou Paris, talvez Praga ou Budapeste ou até Istambul. Sítios românticos; sítios onde eles – sítios onde todas as pessoas – queriam ir. O Luxemburgo não constava nesta lista, nem na lista de ninguém. Ninguém sonha viver no Luxemburgo.

“E por acaso sabes”, perguntou, “que língua é que se fala no Luxemburgo?”

“Chama-se luxemburguês. É um dialeto alemão, com francês à mistura.”

“Isso não pode ser verdade.”

Ele beijou-lhe o pescoço. “É. Mas também falam alemão normal, francês e inglês. É um sítio muito internacional. Ninguém vai ter de aprender luxemburguês.”

“A minha língua é o espanhol. Fiz um ano de francês. Mas falo espanhol.”

“Não te preocupes. A língua não vai ser um problema.”

Beijou-a novamente, deslizando a mão pela sua barriga, para baixo da linha da cintura da saia, que começou a arregaçar às mãos cheias. As crianças tinham ido brincar com amigos.

“Confia em mim.”