Capítulo I
Os Filhos de Nihil
circa 40 000 a. C.
Nihil.
Nihil foi, é e será. Nihil ri e nada mais.
Do etéreo riso de Nihil floresce tudo.
No meio desse tudo, flutuam pontos de consciência.
Alguns desses pontos são filhos de humanos.
Alguns desses filhos são filhos de Nihil.
O primeiro filho de Nihil foi um Neandertal. As nossas cordas vocais não seriam capazes de pronunciar o seu nome, mas este soava a algo semelhante a «Jo-haan». De modo a simplificar, daqui em diante o nome será João.
O seu pai era um homem próspero, dono incontestável de um território que se expandia para lá da linha do horizonte. Para João, no entanto, essa linha era difusa. Conseguia ver claramente apenas aquilo que lhe era próximo, o que o tornava incapaz de caçar apesar de toda a sua força. Via-se obrigado a passar os dias a construir ferramentas, melhorando a sua arte imperfeita, criando pedras mais afiadas e cola mais forte.
Um dia, João talhou a pedra mais afiada que algum homem até então talhara. Era bela. A lâmina estava polida e o gume direito. João, orgulhoso, apreciou a sua criação, saboreando a lâmina com os dedos. Saboreando aquela mesma lâmina que um animal selvagem um dia iria saborear. Ele, infelizmente, não estaria lá para o ver. Não seria ele a lançar a lança. Tinha criado a mais perfeita lâmina para outra pessoa usar.
Nesse momento, um ensurdecedor «Porquê?» reverberou pelos cantos do seu crânio, esmagando as fundações de toda e qualquer conclusão a que alguma vez tinha chegado. Sempre que tentava responder a esse «Porquê?», o mesmo «Porquê?» retornava, fazendo ricochete numa qualquer parede escondida dentro da sua mente. Ele continuava a responder, mas o «Porquê?» voltava sempre, como se estivesse a atirar uma pedra contra uma árvore. «Porquê?» «Eu criei-a para a minha família caçar com melhores lanças.» «Porquê?» «Para que caçar seja mais fácil.» «Porquê?» «Para que possamos ter mais comida.» «Porquê?» «Para que possamos comer!» «Porquê?» «Para que possamos viver.» «Porquê?» Pausa. Este último «Porquê?» atingiu-o na cara e derrubou-o. Não conseguia responder de volta. Havia várias coisas que podia dizer, mas nenhuma delas lhe parecia uma resposta. Entretanto, tinha-se cortado com a sua lâmina perfeita e sangrava abundantemente, mas não notou: estava a ouvir o riso.
João não tinha nem medo nem preguiça de pensar, pelo que não desistiu. Uma gota de sangue caiu-lhe no pé. Agarrou o dedo e continuou ferozmente a batalhar no «Porquê?». O riso de Nihil acariciava-o, mas ele resistia, tentando responder o melhor que conseguia àquele «Porquê?» flutuante, àquele mosquito de três toneladas que não desaparecia.
«Para poder desfrutar dos bons momentos e ser feliz.» «Porquê?» «Porque sabe bem, não preciso de uma razão.» «Porquê?» «Porque sabe bem, eu quero sentir-me bem.» «Porquê?» «É melhor do que me sentir mal.» «Porquê?» «Porque sim, é assim que as coisas funcionam.» «Porquê?»
Parou para pensar. O pai tinha-lhe contado que tudo existia porque assim o havia desejado o Ancião. No início, este Ancião era apenas uma pedra, mais pequena do que todas as outras que viriam a existir. Esta pedra era imune à passagem do tempo. Não ganhava musgo nem era erodida pelo vento ou pela chuva, pois não havia nem vento nem chuva. O Ancião existia satisfeito.
Mas num momento amaldiçoado, o Ancião ficou aborrecido. O modo como as coisas sempre tinham sido já não o satisfazia. A sua pacífica e suave existência parecia -lhe agora um monótono desperdício. Enraivecido, o Ancião criou as rochas. Esmagou-as umas contra as outras, fazendo-as lascar e projectar faíscas: deste modo o Ancião criou a lâmina e o fogo.
Tudo o que existia eram rochas flamejantes esmagando-se umas às outras e o Ancião estava satisfeito, até ficar de novo aborrecido. As fagulhas já não o entretinham, as colisões soavam todas ao mesmo. De novo enraivecido, fez com que as rochas parassem de colidir e se agregassem, restaurando a paz. Alguns conglomerados de rochas continuaram a arder, e assim o Ancião criou o Sol e as estrelas.
Nada de interessante acontecia. O Ancião conhecia todas as rochas, tinha-se aquecido à beira de todos os fogos. Estando desta vez calmo, escolheu o maior conglomerado de rochas, beijou-o e criou o musgo.
Ordenou que o sol dançasse à volta do musgo, criando assim a noite e o dia. O tempo passou e o verde cobriu todas as rochas. O musgo apaixonou -se pelo sol e passou a chorar sempre que este desaparecia, criando o orvalho. Durante o dia, o orvalho ascendia de encontro ao sol, mas não o conseguia alcançar. O orvalho perdido juntou-se, criando assim as nuvens. As nuvens choravam ao lembrar-se de que nunca chegariam ao sol e as suas lágrimas criaram a chuva, que criou os rios, que criaram os lagos e o mar.
O musgo cresceu para criar as plantas, que cresceram para criar as árvores. O Ancião estava satisfeito a observar tudo o que tinha criado, vendo-o crescer. E tudo cresceu, cada vez mais depressa, as plantas ficando mais largas e as árvores mais altas. O musgo começou a crescer nas árvores, as árvores cobriram as plantas. O verde estrangulava-se, mas fazia-o lentamente.
Demorou até ao Ancião ficar de novo aborrecido, mas o dia eventualmente chegou. Fartou-se do verde, começou a odiá-lo, a odiar como crescia em tudo. Do seu ódio, brotou o primeiro relâmpago através das nuvens de orvalho. O relâmpago atingiu o solo e explodiu, pegando fogo às árvores e criando os animais, que fugiram em todas as direcções. O fogo queimou e os animais comeram, reduzindo o número de plantas. O Ancião conseguia de novo apreciar as rochas.
Mas os animais multiplicaram-se e as plantas começaram a desaparecer. Ao tornarem-se raras, o Ancião começou a apreciá-las e a odiar os animais. Deste ódio brotou então o vento, trazendo consigo doenças, tanto do corpo como da mente. Alguns dos animais doentes começaram a comer outros animais em vez de plantas, sendo que o cúmulo da doença por fim criou os humanos, que predavam tudo o que viam, incluindo a si mesmos. Destruíram rochas e domaram o fogo. Onde quer que chegassem, a paisagem mudava. Entre outras coisas, os humanos herdaram a pior doença, a doença que afligia o próprio Ancião: o tédio.
Graças a este tédio, os humanos tornaram-se incapazes de sentir satisfação. Por sua vez, o Ancião ficou enfim satisfeito, deixando de criar, desfrutando da luta contínua dos humanos contra o aborrecimento e contra tudo o resto na existência.
Isto era aquilo em que o pai de João acreditava e o que toda a sua família também acreditava. Foi em tempos também aquilo em que João acreditou, mas já não. Este mito do Ancião, como ele agora o via, não ajudava em nada a explicar o porquê de as coisas serem como eram. O «Porquê?» continuava a ecoar. A única maneira de obter alguma explicação residia em aceitar a existência deste Ancião como uma causa fundamental. Para aceitar assim coisas sem questionar, mais valia aceitar que tudo existia como existia e ficar -se por aí. Não fazia sentido adicionar algo para depois explicar tudo o resto. A criação de tudo o que existe ou de uma pedra mais pequena do que todas as outras: eram o mesmo problema.
Apaziguar a dor existencial do Ancião não lhe trazia qualquer consolação. Por muito que tentasse, não encontrava nada que lhe trouxesse consolação. Não conseguia imaginar nenhuma teoria que embutisse significado à sua existência. Significado, ele precisava de significado... «Porquê?»
O que era este significado? O que é que possivelmente poderia ter significado? Ter criado esta lâmina, esta lâmina perfeita que o tinha cortado, parecia significante, mas era? «Porquê?» A pedra iria eventualmente rachar, a lâmina iria ficar romba. Mesmo que ficasse afiada para sempre, teria significado, faria diferença? Se ele morresse agora ou vivesse para sempre, faria diferença? Algo sem significado não ganha significado por ser multiplicado. «Porquê?» «Porquê?»
Parecia ser tudo uma questão de objectivos, aquilo que ajudava a alcançar o objectivo era chamado de bom e tinha significado e o oposto era chamado de mau e não tinha significado. «Porquê?» Com que objectivo? Qualquer objectivo. «Porquê?» Não havia objectivos melhores que outros. «Porquê?» Eram todos igualmente perfeitos e desprovidos de qualquer sentido. «Porquê?» Porque não havia nenhuma maneira de os avaliar, nenhuma maneira de escolher. «Porquê?» Porque não havia nenhum objectivo inicial. «Porquê?» Não interessava porquê. Não interessava. Não existia nenhum objectivo para guiar as suas escolhas. Ele não o conseguia descobrir e era irrelevante se existia algum objectivo escondido à espera de ser encontrado: a partir do momento que não o conseguia encontrar, e bem tinha tentado, era o mesmo que não existir objectivo algum.
O «Porquê?» tornou-se um riso e o riso tornou-se ensurdecedor. Nihil era um trovão ludibriante dentro da sua mente. Tal como o riso do seu pai o consolava, assim o fazia o riso de Nihil. Fazia-o sentir-se seguro e apreciado. Nihil ria-se, mas não dele. Nihil ria-se de todo o universo: Nihil ria-se da existência em si.
Ele sorriu, e foi um sorriso de Nihil na face de um filho de Nihil. Um sorriso como a primeira estrela, que viria a partilhar o céu com um oceano de futuras estrelas.
Se tivesse morrido ali, não se teria importado. Se toda a sua família tivesse morrido, não se teria importado. Se todo o mundo decidisse tornar-se pó, chamas e dor, não se teria importado.
Era imune a tudo porque era insignificante: um insignificante insignificante à procura daquilo que não existe. Mas agora já não estava à procura, era apenas um insignificante insignificante. Saber isso fazia toda a diferença.
E a sua pedra, a sua mais afiada de todas as pedras. Bela e insignificante, não porque nunca a iria usar, mas insignificante per se, como tudo. Não fazia qualquer diferença que ele não pudesse caçar: o melhor caçador de todos os tempos foi uma folha mascada por um débil herbívoro. Tudo era, tão prazerosamente, insignificante.
Chupou o sangue meio seco do seu dedo e soube-lhe bem. Aquele corte viria a tornar -se uma cicatriz, uma cicatriz que ele iria apreciar o resto da sua vida. Iria acariciá-la quando desejasse ouvir o riso de Nihil. O doce e morno riso de Nihil, que sabia a pedras do céu.
«O que estás a fazer?», perguntou uma voz atrás dele. Era uma das suas irmãs, a única proveniente da mesma mãe. «É a tua vez de cuidar do fogo! Temos lâminas suficientes para caçar durante uma manada de invernos, vai fazer alguma coisa útil!»
Ele amava a irmã, mas todos os seus músculos se contraíram e a sua mente afogou -se em agonia por ter sido de tal modo interrompido. Tinha-o perdido, já não o conseguia ouvir. O seu corte começou a arder.
«Não como esta lâmina. Ainda temos madeira suficiente para alimentar o fogo?»
A conversa continuou, mas não é de interesse para o nosso conto. O seu discurso, aqui representado em português, teria soado ao leitor como uma mistura entre agudas vocalizações símias e o mais virtuoso canto.
Várias vezes durante a sua vida, João, o primeiro filho de Nihil, ouviria o riso. Muitas vezes também estaria completamente alheio a ele. João tentava lembrar-se sempre da insignificância, a omnipresente insignificância, mas não era capaz. Tinha uma mente débil que facilmente se perdia na ilusão, que facilmente se deslumbrava com as ninharias da vida.
Teve filhos com uma escrava que havia sido roubada a outra tribo. Tentou ensiná-los a ouvir Nihil, mas todos morreram excepto um. O que sobrou vivia de acordo com os ensinamentos do seu pai, rindo-se de absolutamente tudo. Era um rapaz robusto, que cresceu para se tornar um homem ainda mais robusto, fazendo regularmente aquilo que nenhuma criatura que temesse a morte faria. Teve sorte em sobreviver, elevando-se a líder da tribo assim que o seu avô morreu.
Este novo líder, que herdara o nome do seu pai, vestia as mais curiosas roupas e fazia as mais estranhas coisas. Podia passar a manhã a pavonear -se, vestindo um casaco feito de cabelo humano, e, de seguida, passar a tarde a caçar pássaros usando uma lança. O mais estranho era conseguir apanhar sempre um punhado deles, depois entregue aos escravos para fazerem mais um belo casaco, com o qual se pavonearia na manhã seguinte.
Por entre este circo de aparente insanidade, conseguia manter uma tribo em crescimento, raptando um grande número de mulheres das tribos vizinhas. Os vizinhos, como seria de esperar, não ficavam muito satisfeitos com isso, mas nenhum se atrevia a lutar com João, este segundo João, ouvinte do grandioso Nihil.
Ele amava profundamente o pai, que fora envelhecido pelo tempo e passava agora os dias dentro de uma caverna, esculpindo as suas pedras afiadas. Era obrigado a talhar a menos de um palmo de distância da sua cara, sendo incapaz de ver correctamente as pedras se estivessem mais longe. Isto tornava o processo moroso, tendo de embater as pedras levemente de modo a evitar estilhaços nos olhos. As lâminas que fazia, no entanto, eram tão ou mais afiadas que aquelas que fizera quando era mais novo. Eram as únicas pedras que o seu filho usava, superiores a todas as outras.
Ninguém para além dos dois Joões conseguia ouvir o riso de Nihil. O pai era velho demais e não tinha interesse em ensinar de novo, dedicando todo o seu tempo a afiar pedras e falando quase exclusivamente com o filho. O João mais novo considerava todos os outros incapazes de compreender a doce insignificância. Tinha inúmeros filhos e mulheres, mas ensinava-lhes apenas os mitos antigos e fingia acreditar neles. Tudo isso mudou quando o seu pai morreu.
A cegueira do primeiro filho de Nihil apenas piorou, forçando-o a esculpir as suas pedras cada vez mais perto da cara. O martelar de pedra em pedra não podia tornar-se mais ligeiro sem se tornar inútil, pelo que apesar da sua grande perícia, a tarefa tornou-se perigosa. Eventualmente, uma lasca tomou posse do seu olho esquerdo, infectando-o e cegando-o. O olho direito continuou a funcionar, pelo que ele continuou a lascar até estilhaços beijarem também o seu olho direito, concluindo, por fim, a sua cegueira.
A escuridão consegue distorcer o riso de Nihil. Aquilo que era antes um harmonioso e reconfortante riso transformou-se num grunhido. A sua mente tornara-se romba e não o conseguia domar. O que antes fora doce era agora dolorosamente amargo. Nihil tornara-se frio.
Cego, continuou a talhar, confiando apenas no colidir de pedras para silenciar o riso. Por muito que o seu filho implorasse, ele não tinha coragem de parar. Um a um, esmagou os próprios dedos, perdendo a capacidade de segurar numa pedra. No primeiro dia em que não conseguiu afiar, morreu. Morreu sozinho. Ou quase sozinho, pois Nihil estava lá, a rir -se.
***
A morte do pai foi dura para o segundo e agora único João. Ele ordenou que o cadáver fosse esfolado e a sua pele curada de modo a fazer um novo casaco, o único que usaria. A caverna onde o seu pai tanto viveu como morreu foi declarada inacessível. Ele passaria horas a matar qualquer criatura que lá encontrasse, do musgo ao mais pequeno insecto. João reuniu todas as pedras do seu pai no meio da caverna, dividindo-as em dois montes: um com as pedras bem afiadas e outro com as pedras que o pai fizera nos últimos dias da sua vida. João continuou a usar as pedras bem-talhadas para caçar, eram muitas e iriam durar. Mas as pedras inúteis eram as que ele mais amava. Por vezes, falava com elas.
Nihil perdeu todos os seus ouvintes no mesmo dia, pois João, o novo e vivo João, também não o conseguia ouvir. A dor e a raiva eram demasiado intensas. Também o era o riso de Nihil, demasiado intenso para ser discernível. Nihil requer ouvintes calmos e com a mente límpida: a mente de João estava ensopada em ácido.
Durante os meses que se seguiram, João declarou guerra a todas as tribos vizinhas. Declarou guerra quando um vizinho matou um veado que ele considerava seu. Declarou guerra porque uma das mulheres que tinha raptado não lhe estava a dar filhos. Uma a uma, todas as tribos vizinhas foram ou escravizadas ou extintas. Muitos dos seus filhos morreram no processo.
Por fim, já não havia ninguém a quem declarar guerra. Talvez João tivesse agido de modo diferente se soubesse que aquelas eram as únicas tribos Neandertais para além da sua. Muito provavelmente, teria feito exactamente o mesmo.
Afogado na sua raiva, João acabou por criar a maior tribo Neandertal que alguma vez existira. Antes do mar de guerras, eles eram vinte e três indivíduos. Agora, eram cento e noventa e seis. João, infelizmente, não sabia contar. Tudo o que sabia é que eram muitos, muitos mais do que alguma vez tinham sido.
Desta situação brotava um problema: tinham nove vezes mais escravos do que membros legítimos da tribo. A predisposição de João a rápida e implacável violência tinha impedido um número de rebeliões, mas o seu corpo começava a recordar demasiadas batalhas.
Depois de uma luta especialmente dura com três homens que tentaram usar uma mulher que ele considerava sua (considerava todas as mulheres suas), coxeou para a caverna do seu pai e colapsou no chão. Contemplou a pilha de pedras inúteis que o pai tinha feito nos seus últimos dias. Algumas eram apenas pedras esmurradas, sem qualquer padrão ou indício de lâmina. Pelo menos metade delas tinha manchas de sangue. Uma montanha de coisas inúteis pelas quais o seu pai tinha quebrado todos os seus dedos. Cada um deles. Um atrás do outro. Esmagados entre duas pedras. O seu pai usava sempre pedras, apesar de existirem pequenos martelos mais apropriados para o trabalho. «Martelos são para aqueles sem perícia», costumava dizer. Aqueles sem perícia, como ele nos seus últimos dias: sem perícia, sem visão, sem mãos. Não havia nenhum motivo para ele continuar a fazer pedras afiadas, nenhum motivo para ele destruir o seu corpo, nenhum motivo para morrer. Nenhum motivo. Nihil sorriu. Nenhum motivo. Nihil inalou. Nenhum... Nihil começou a cantar docemente. Pedras inúteis, pedras repugnantes, sanguessugas da alma do seu pai. Ele detestava-as a todas e amava-as mais do que tudo. Ele sentia Nihil por entre elas, como uma serpente ou um colossal verme, deslizando pelos espaços vazios, saboreando o sangue seco do seu pai, rindo-se... O que tinha ele para mostrar? O seu pai tinha pedras, ele tinha mulheres e escravos. Um dia, o verme de Nihil iria deslizar por entre as suas costelas, mergulhar nas suas cavidades oculares. Tinha um exército de futuros homens mortos, de futuro pó. Eram tal e qual aquelas pedras. Aquelas insignificantes pedras. Não tinham qualquer propósito. Entretenimento para um corpo e mente que lentamente morriam. Algo para fazer. Algo para sossegar o desassossego. Algo... Era tudo o que eram, tudo o que tudo era... Algo... Nada... Nihil... Rindo... Cantando... Sorrindo... Disformes pedras para passar o tempo... E ali estava: o abraço de Nihil. Abafado durante tantos meses, morto com o seu pai. Morto, mas renascido. Madeira seca no fogo da sua mente, fazendo-o sorrir olhando para pedras inúteis. Inúteis e preciosas pedras. A alma do seu pai num monte de rochas. Um altar a Nihil que o aquecia como um fogo. As pedras arrepiavam-se ao ritmo da canção, ao ritmo do seu riso. Os seus ossos arrepiavam-se também, a sua mente mais afiada que qualquer pedra que o seu pai fizera. Tudo estava alinhado, tudo estava no ritmo, tudo era insignificante: belo. Ele sorriu, fechou os olhos e dormiu durante horas.
Quando acordou, era quase noite. Apressou-se para encontrar a sua tribo, a sua enorme tribo. Encontrou-a a cozinhar os restos da caçada do dia anterior, contando histórias. Pouco a pouco, as diferenças de dialecto desvaneciam-se. A sua linguagem não era tão poderosa como as futuras linguagens humanas viriam a ser. Tinha muito menos palavras e era mais abstracta e simbólica. Não havia propriamente gramática. Eles diziam palavras relacionadas, por vezes repetidamente e numa sequência diferente, até o ouvinte perceber ou fingir perceber. Os gestos e a entoação eram mais expressivos em si do que todas as palavras combinadas.
Para obter a atenção da tribo, João não aclarou a voz e proferiu algo como: «Se pudessem todos fazer silêncio e dar-me a vossa atenção, por favor. Obrigado. A vossa atenção! Por favor!» Não, de modo algum. Ele gritou, mais alto que o ruído acumulado de aproximadamente duzentas pessoas a falar.
João pediu que o seguissem, e assim o fizeram. Guiou-os até à caverna do seu pai. Era grande, a maior das redondezas, pelo que todos cabiam lá dentro. Acenderam-se fogos e todos olharam em volta com grande curiosidade. Aqueles que já lá tinham estado tinham-no feito há muitos anos. A maioria nunca lá estivera. João não permitia a entrada de ninguém desde que o seu pai decidira ocupá-la.
Quando todos se acalmaram, João sentou -se ao lado do monte de rochas inúteis e pediu que se sentassem. Depois falou.
Falou durante horas. Falou sobre Nihil.
Tentou que todos vissem e sentissem aquilo que ele via e sentia. Tentou que todos fossem capazes de ouvir o riso.
Alguns dos seus ouvintes adormeceram, alguns deram-lhe toda a sua atenção. Nenhum percebeu o que ele queria dizer. No fim, completamente exausto de tanto falar, sentiu-se em paz. A sua tribo estava a grossura de uma asa de borboleta mais perto de Nihil.
Começou a reunir a tribo na caverna todas as noites.
Pouco a pouco, João melhorou a sua maneira de explicar, tentando ensinar como o seu pai o tinha ensinado. Pouco a pouco, criou mais palavras e deu -lhes significado. A primeira metade dos encontros era dedicada somente à linguagem, para que os seus ouvintes conseguissem compreender o que era dito com cada som específico, com cada gesto. Aqueles que compreendiam tentavam explicar aos outros. Ao tentar explicar, sentiam que também lhes faltavam palavras e, como tal, criavam-nas. A tribo tornou -se assim uma jorrante fonte de linguagem.
Passado algum tempo, todos criavam palavras. Num só dia, perto de cem palavras poderiam nascer. Cada palavra necessitava de outras palavras para ser definida. Quase todas as novas palavras eram esquecidas ao fim de uma semana, mas algumas permaneciam: as úteis, as belas. Ninguém criava mais palavras do que João.
Antes caçador e pavoneante, João passava agora a maior parte do seu dia a pensar, a criar palavras: a criar significado fonético para explicar a insignificância existencial. Passava horas a olhar para as pedras inúteis do seu pai. Eram todas diferentes, todas peculiares... Tal e qual palavras.
Começou a imaginar que cada pedra era uma palavra específica. Às pedras mais redondas eram atribuídas palavras com sons mais redondos, como «Uh» e «Oh». As mais aguçadas representavam palavras mais agressivas, com «É» e «I». Tudo era bastante subjectivo, mas assim o é a linguagem em si.
Começou a pegar em pedras e a tentar defini-las. Colocava-as no chão e rodeava -as de outras pedras, pedras que estavam de alguma maneira relacionadas. Olhava para elas e provava-as e mordia-as e atirava-as contra a parede quando ficava frustrado. Algumas partiam-se, anunciando a morte de uma palavra e o nascimento de duas.
Um novo ritual emergiu nos encontros da tribo. Quando definia uma nova palavra, ou explicava uma já existente, mostrava a pedra correspondente. A pedra era passada de mão em mão para que todos a pudessem ver e sentir e provar. A pedra era então deixada no exterior da caverna durante o dia, para que todos a pudessem estudar e compreender.
Quando já um bom número de membros da tribo compreendia o significado de pedras individuais, começou a deixar na entrada um conjunto de pedras. Representavam uma ideia que ele considerava importante. Uma ideia necessária para ficarem mais próximos do riso de Nihil.
Continuou a ensinar, independentemente do dia ou da altura do ano. Quando, devido à falta de mantimentos, era necessário deslocarem-se para um novo local, a tribo transportava consigo cada uma das centenas de pedras. Quando uma pedra importante era perdida ou danificada, João tinha a tarefa de a replicar, tentando ao máximo captar todos os detalhes da pedra anterior. A maior parte das vezes, João tinha de talhar uma dúzia de pedras até ficar satisfeito com o resultado. Só replicava uma pedra quando a anterior se danificava. Só existia uma palavra -de -pedra por cada palavra. Todas as palavras-de-pedra pertenciam a João.
João, o criador, o líder, o professor, o guardião de palavras-de-pedra. Não houve qualquer rebelião depois do primeiro encontro na caverna. Ninguém se atrevia e ninguém queria desafiar a liderança de João. As palavras uniam a tribo: todos as usavam, todos as tentavam definir. Alguns começaram a compreender aquilo que João queria dizer. Começaram, em momentos particularmente límpidos, a ouvir o riso. Começaram a discutir com João, consolidando ideias. Começaram a argumentar usando as palavras-de-pedra, mostrando-as, colocando-as no chão, gesticulando freneticamente enquanto as seguravam.
Os encontros da tribo já não consistiam em João a falar e os outros a ouvir. Eram discussões sobre ideias, por vezes até mesmo intensos debates. Em certas ocasiões, as palavras-de-pedra acabaram por quebrar crânios que continham opiniões contrárias, mas tais ocorrências eram raras e João conseguia, normalmente, que os encontros fossem discussões moderadamente calmas.
Todas estas mudanças foram ocorrendo ao longo de vários anos. A tribo crescia e prosperava. João ficava velho. Os duzentos eram agora quinhentos e, desses quinhentos, quase todos conseguiam compreender algumas palavras-de-pedra e expressar, quase correctamente, a sua opinião.
A tribo tinha de estar em constante movimento: alimentar quinhentas cabeças requeria os recursos de uma vasta área. Uma vez por ano, uma vez apenas, retornavam à caverna onde tudo começara. A caverna que era agora reverenciada como um santuário.
Os líderes de uma tribo Neandertal abandonavam o cargo ou eram mortos no instante em que já não conseguissem lutar. João era
velho, coxeava e começava a perder a visão, mas não abandonara o seu cargo e ninguém o queria matar. O seu sucessor já tinha sido escolhido, um dos seus filhos: não o mais forte, mas o mais sábio, aquele que melhor dominava as palavras-de-pedra. Este filho amava e venerava o seu pai. Ninguém tinha pressa em ver João morrer além de João em si, que estava a ficar cansado.
Quase todos os membros da tribo tinham em algum momento ouvido o riso de Nihil. Aceitavam no. Valorizavam-no. Riam com ele. O acto de rir em si, em tempos raro, era agora comum. Era, no entanto, difícil manter o contacto com Nihil durante longos períodos. Havia sempre algo para fazer, algo para caçar, algo para colher. Nihil é límpido para uma mente aborrecida. O aborrecimento era um luxo provisório.
João era velho e não conseguia caçar. Graças às várias lutas da sua juventude, andar era doloroso. Era transportado numa maca de madeira sempre que a tribo se deslocava. Passava os dias rodeado de pedras, tal e qual o pai. Estudava-as, definia-as, lutava com palavras e formas e sons. Ouvia Nihil todos os dias, a bela canção de Nihil. Tentava encontrar as palavras que pertenciam àquela canção, mas não conseguia. Tentava encontrar uma frase que explicasse Nihil, mas não conseguia. As palavras-de-pedra fracassavam. Ele fracassava.
Tinha escolhido uma palavra-de-pedra para representar Nihil, o nada, a insignificância. Era a mais romba e amorfa de todas as pedras, a última que o seu pai tinha talhado. Há anos que a tentava definir com o auxílio de outras pedras, mas ou nenhuma pedra pertencia a seu lado ou, então, todas pertenciam. Era fundamentalmente diferente. Superior ou inferior? Não sabia dizer.
Esta palavra-de-pedra era o desafio que tentava resolver há já metade da sua vida. Tinha conseguido explicar Nihil à maior parte da tribo. Por vezes compreendiam, outras vezes sentiam, mas a ideia acabava sempre por se desvanecer. Conseguiam ouvir num momento o riso e no seguinte estar a perseguir um coelho com todo o seu ímpeto, como se apanhá-lo tivesse todo o significado do mundo. Por vezes, ele próprio se encontrava imerso num qualquer problema, como se fosse extremamente importante, como se fosse fundamentalmente significante. Mas sabia que não era.
Se ao menos conseguisse encontrar uma frase que definisse aquela palavra-de-pedra... Talvez então ficasse finalmente cravado na sua mente, talvez então ele nunca o esquecesse: poderia passar o resto da sua vida a rir com Nihil, dançando ao ritmo da sua canção.
Mas a pedra não aceitava ser definida. Poderia colocá-la num canto sem nenhuma outra palavra-de-pedra a seu lado, mas seria isto defini-la? Quando lhe perguntassem qual o significado, deveria ficar em silêncio até que compreendessem? Já o tinha tentado, já tinha tentado muitas coisas, mas tudo o que conseguia era deixar uma impressão momentânea na mente do ouvinte. Eram ideias de pó e o mundo era ventoso.
Um detalhe tornava o dilema realmente belo: quando ouvia claramente o riso, quando estava realmente próximo de Nihil, compreendia que tentar defini-lo era tão insignificante como tudo o resto. A canção de Nihil não precisava de ouvintes. Compreender a insignificância da existência era em si insignificante. A canção seria cantada e Nihil iria rir independentemente das suas acções. Tudo, realmente tudo, era insignificante.
Insignificante até a sua mente se esquecer disso e o riso de Nihil ser de novo abafado. Depois voltava a dedicar todo o seu tempo e esforço a tentar defini -lo, atirando palavras-de-pedra, agarrando e apertando a pedra de Nihil até os seus dedos ficarem dormentes. Era um ciclo. Um ciclo de turbulento e ilusório significado seguido de um mar adormecido de insignificância.
Já não tinha qualquer função prática na tribo que não a de presidir os encontros diários. O seu sucessor era agora responsável por tomar todas as decisões, uma responsabilidade que João lhe tinha dado de modo a dedicar todo o seu tempo a lutar contra os seus pensamentos. Este filho, cujo nome soava a algo semelhante a Hank, era bom a manter a tribo organizada. Ele sabia onde e quando caçar e sabia quando era tempo de se deslocarem. Hank era um filho sábio e tentava não pensar demasiado em Nihil. Quando o riso de Nihil aparecia sem ser convidado, como tendia a fazer em mentes sábias, encontrava rapidamente algo com que se distrair de modo a silenciá-lo. Ele receava o riso, conseguindo ver como este corroía o seu pai. Não tinha, como tal, a energética imprudência que o segundo João costumava ter, mas essa energia não era agora necessária para governar a tribo.
Um dia, um grupo de doze caçadores retornou, trazendo consigo três veados. Pouco depois, outro grupo apareceu, e a seguir outro. Todos traziam algo, o que começava a ser raro. A tribo tornara-se grande demais, esgotando pouco a pouco os recursos à sua volta.
Os caçadores estavam felizes e dançavam, celebrando. Outros juntaram-se e passado algum tempo uma grande porção da tribo estava emaranhada em dança, com os caçadores no meio, cantando (maioritariamente gritando) sobre a grande caçada.
João observava, sem capacidade nem vontade de dançar. Observou-os enrodilhados e a grunhir de entusiasmo. Observou-os a copular, como era costume durante e depois das danças.
A mente de João era um lago sem brisa ao lado de mar tempestuoso. Quanto mais alto gritavam, mais calma ficava a sua mente. O riso de Nihil brotava do seu coração, subia-lhe pela garganta e acariciava-lhe o escalpe. Por entre o frenesim exterior, ele murmurava por entre os lábios algo semelhante a uma canção de embalar.
Estava rodeado de palavras-de-pedra, como era costume, e acariciava lentamente todas as que conseguia alcançar. Por fim, acariciou a que estava mais próxima dele, a que estava deitada no seu colo: a pedra de Nihil, a pedra do nada. Era redonda, mais redonda que todas as outras. O seu pai já não tinha forças quando a tentou esculpir. As manchas de sangue tinham há muito desaparecido, mas João ainda se lembrava onde todas elas costumavam estar.
Esta calma, esta união com Nihil: era assim que desejava ser sempre. Era por isto que se esforçava por defini -lo, que se esforçava para que fosse simples de recordar. Queria alcançar este estado no instante que proferisse uma palavra. Uma só palavra, uma palavra que podia apenas ser o silêncio. Como podia uma palavra ser o silêncio? E como poderia pronunciar este silêncio absoluto? O seu coração nunca parava de bater, os seus pulmões respiravam, o seu estômago grunhia, as entranhas contorciam-se. O seu corpo negava-lhe silêncio.
Pegou na rocha de Nihil, na pedra do nada, no seu coração.
Por perto havia uma rocha. Segurou Nihil na sua mão.
Colocou a pedra em cima da rocha e de joelhos ficou a sorrir.
À sua volta a tribo dançava, cantava e saltava: granizo de lava
Tornando-se frio ao toque do mar.
Esmagou a pedra entre a rocha e a testa
E deu-lhe vontade de rir.
Esmagou-a mais uma vez
E o seu interior começou a fluir.
Esmagando e sorrindo,
Cantando e rindo! A sua mente dançando
Entre dor e prazer:
Como criança partindo o que mais quer ter.
Finalmente parou e ficou em silêncio.
Finalmente em completo silêncio,
Com Nihil para sempre dentro de si.
***
Cento e vinte e sete gerações passaram desde a morte do segundo João, e Nihil, prazeroso Nihil, estava enraizado na cultura da tribo.
Durante todo esse tempo, a tribo em si não tinha nome e, como tal, não tinha nem palavra nem palavra-de-pedra. Sendo a única tribo que existia, não havia necessidade. Quando mencionavam todos os membros da tribo, usavam a palavra que significa «pessoas». O dia chegou, no entanto, em que descobriram que não eram as únicas pessoas. Quando tal aconteceu, decidiram chamar-se Nil.
Sapiens: a grande mudança, a grande disrupção. Rebanhos deles vinham de este, rodeados por lobos que não os atacavam e que os ajudavam a caçar. Usavam inúmeras ferramentas; eram estreitos, mas tinham uma voz grossa; caçavam em grupos de uma centena de homens. Sapiens: a morte esguia.
No início, os encontros entre os Nil e as tribos de Sapiens eram raros. Duas vezes por ano, talvez, quando os Nil caçavam na fronteira este do seu território. Os filhos de Nihil tinham curiosidade em ver e tocar naquelas estranhas criaturas que saltavam como coelhos e atiravam coisas a longas distâncias. Os Sapiens não tinham tanta curiosidade. Tinham, maioritariamente, medo.
Os seus corpos eram diferentes, mas a maior disparidade entre eles residia na concepção do mundo. Os Sapiens tinham uma floresta de Deuses. Existia um para quase todas as coisas com que se deparavam diariamente. Existia um Deus dos rios e um Deus dos riachos. O irado Deus do granizo e a temperamental Deusa da chuva. Todos os animais e plantas tinham ou representavam um Deus.
As suas crenças eram nubladas quanto à origem desses Deuses. Defendiam que alguns Deuses sempre existiram, não tendo um início, mas depois havia uma árvore genealógica bem definida para todos os outros. O Sol era um Deus e a Lua uma Deusa, sendo que deles descendiam todos os outros, exceptuando o Deus da morte: que sempre existira e que detestava todos os novos Deuses e criaturas. Sempre que a Lua e o Sol se encontravam, uma pequena noite anunciava o nascimento de um novo Deus.
Nenhum Sapiens em particular conhecia todos os Deuses e não tinha interesse em conhecer. Faziam certas coisas e evitavam outras, de modo a não enraivecer este ou aquele Deus, mas esse era o expoente máximo da sua preocupação. Não perdiam tempo a discuti-los, não questionavam a sua veracidade. As suas mentes focavam-se no físico, não no metafísico.
Os filhos de Nihil, por outro lado, passavam cada vez mais tempo a pensar. Não pensavam sobre novos métodos de caça ou ferramentas, mas sim sobre Nihil e todas as questões relacionadas. Um grande Neandertal não era o melhor caçador ou o melhor lutador. Um grande Neandertal era um bom pensador, aquele com as ideias mais afiadas e os argumentos mais convincentes. Os encontros da tribo continuavam vivos e eram agora uma batalha de mentes. Não uma batalha feroz, mas calma e distanciada.
Alguns acreditavam que Nihil era uma bênção, outros uma maldição. Uns poucos acreditavam que existia algo escondido por detrás de Nihil, algum significado à espera de ser encontrado. Outros defendiam que não interessava de qualquer maneira. Todos, no entanto, sentiam a insignificância intrínseca da existência consciente. Viviam porque morrer era igualmente insignificante. Viviam a sua vida na terceira pessoa, rindo-se até quando choravam.
A grande dádiva dos Joões, a ideia de Nihil, tinha moldado a tribo ao longo do tempo. Cada geração estava um pouco menos interessada naquilo que a rodeava e mais interessada nas questões que habitavam o seu ser. Acasalavam menos, o que reduzia o número de crianças que nascia. A tribo já não estava em crescimento, diminuindo ocasionalmente. As ferramentas usadas eram as mesmas há séculos, pois ninguém lhes prestava atenção desde que funcionassem.
Caçavam, colhiam, faziam fogos e roupas somente para poder passar o resto do tempo a pensar. Pensar, a única coisa que ainda lhes trazia uma ligeira ilusão de sentido.
Quando inevitavelmente Neandertais e Sapiens deram por si a perseguir a mesma manada de veados, os Neandertais decidiram contemplar os Sapiens a caçar. Quando os Sapiens mataram o primeiro grupo de caçadores Nil, a tribo reuniu-se para emocionalmente discutir a efemeridade da vida.
A tribo deixou de percorrer as zonas mais a este do seu território, evitando conflitos desnecessários que roubavam horas de discussão e contemplação. Quando os Sapiens começaram a expandir o seu território para oeste, os Nil contraíram de novo as suas fronteiras. Mas chegou o dia em que o seu território se tornou pequeno demais para os alimentar. Quando a procura por comida começou a nublar-lhes o pensamento, os Nil deixaram de ser permissivos. Um Neandertal era uma criatura assustadora quando forçada a combater. Os Sapiens eram mais altos, mas os Neandertais eram mais pesados e mais fortes. Conseguiram defender o seu território, rindo-se enquanto lutavam, provando que o seu desdém pela vida era algo assustador em combate.
Os Nil criaram uma palavra para os Sapiens, antecedente directa da palavra «Elfo», que com o tempo perderia o significado original e ganharia um significado mitológico.
Estes Elfos eram por vezes avistados nos bosques a este. Eram velozes, sabiam desaparecer por entre as árvores e usavam projécteis, algo que os Neandertais tinham dificuldade em fazer. Eram também apelativos aos olhos dos Nil, que consideravam bela a fragilidade dos seus corpos esguios.
Os Sapiens, por sua vez, começaram a chamar aos Neandertais «Anões». Eram mais baixos, destemidos, fortes e, aos olhos dos Sapiens, tinham uma estranha sabedoria, uma estranha e poética compreensão da vida.
Como dois grupos, podiam ser considerados inimigos: disputavam um espaço comum e não colaboravam. Mas enquanto indivíduos, este não era sempre o caso. Encontros nos bosques entre Elfos e Anões tornaram-se cada vez mais frequentes. No início, os Sapiens fugiam e escondiam-se quando viam um Neandertal, mas com o tempo alguns Elfos tornaram-se curiosos e perceberam que os Anões não eram violentos a não ser que fossem provocados.
Estes encontros entre espécies humanas eram imprevisíveis. Por vezes, os Elfos pregavam partidas aos Anões, atirando-lhes pedras e fugindo. Outras vezes, davam -se bem e tentavam comunicar.
Existia um laço especial entre homens Neandertais e mulheres Sapiens. Mulheres Neandertais, no entanto, não estavam muito interessadas em homens Sapiens. A natureza favorecia estas inclinações. Mulheres Sapiens conseguiam ter filhos de homens Neandertais, mas mulheres Neandertais não conseguiam ter filhos de homens Sapiens nem tão pouco de híbridos Sapiens-Neandertal. Isto viria a provar-se desastroso para o fado do povo Nil.
O acasalamento entre Anões e Elfos tornou-se mais frequente, apesar de permanecer envolto em secretismo. Doenças espalharam-se para ambos os lados, ceifando vidas.
Passadas algumas gerações, um número considerável de híbridos existia. Eram sempre filhos de mães Sapiens e, como tal, cresciam em tribos de Sapiens. Estes híbridos tinham sangue de filhos de Nihil, mas nunca aprenderiam a ouvir o seu riso nem a mais doce de todas as canções.
A tribo Nil diminuía. As novas doenças tiveram um grande impacto e não nasciam crianças suficientes para compensar os que morriam. Todos na tribo tinham consciência do que estava a acontecer: sabiam que estavam a desvanecer-se, a desaparecer como povo. Mas não se importavam. Não se podiam importar, pois Nihil ria e cantava e dançava nas folhas e nos rios.
Nutriam um grande amor entre eles, cuidando dos feridos e dos mais velhos. Tinham uma disposição bondosa e a sua filosofia não a conseguia alterar. Não viam, no entanto, sentido em trazer novos seres para uma vida sem sentido. Quando acontecia, acontecia, era insignificante de qualquer maneira, mas esforçarem-se por manter a tribo viva parecia-lhes absurdo.
E assim foram desaparecendo, rindo e cantando. De duzentos a vinte, de vinte a dez. Tentaram ensinar aos Elfos amigáveis a insignificância de tudo, mas os Elfos e os Anões não conseguiam comunicar satisfatoriamente. Os Neandertais gesticulavam e dançavam e tentavam ensinar aos Sapiens palavras, mas em vão. Os Sapiens eram entretidos pelas suas tentativas, mas não aprendiam nada.
Assim se deu a morte do último macho Neandertal. O ponto de não retorno, o fim da linha de puro-sangue Nil. As três mulheres que sobraram passavam a maior parte do tempo numa caverna. A mesma caverna onde o primeiro João tinha talhado as suas pedras. Não eram boas a caçar, dado que nunca tinham praticado, pelo que comiam maioritariamente raízes e bagas e o bicho ocasional que conseguiam apanhar. Esta não era a melhor dieta para um Neandertal, pelo que se tornaram fracas.
Talvez os Sapiens as tivessem matado se as tivessem encontrado. Talvez as tivessem acolhido na sua tribo. Talvez as tivessem deixado em paz. Nunca saberemos, pois nunca as encontraram. Uma a uma, morreram na caverna. A última viveu sozinha durante vários anos, sendo consideravelmente mais nova que as outras duas. Nihil ri e canta mais intensamente quando se está sozinho, e ela estava realmente sozinha. Foi a última do seu povo e aquela que ouviu Nihil mais distintamente. Não existia nada à sua volta para a distrair.
No momento em que compreendeu que estava prestes a morrer, deitou-se no chão da caverna. Estava rodeada pelas palavras-de-pedra que sobravam. A mais importante de todas as pedras, a pedra de Nihil, permanecia no interior da caveira do segundo João. A sua cabeça repousava ao lado dela. Olhou para a pedra por entre as cavidades oculares do seu antepassado. Nihil começou a cantar.
Ela apreciou a mais bela de todas as canções. Tão reconfortante, tão calma, ressoando acordes que não seriam ouvidos de novo durante milénios.
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