II
Não há vestígios, nas cartas de Poussin, de obrigações devidas aos pais. Nunca se arrependeu de se ter afastado deles. Voluntariamente transplantado para Roma, perdeu todo o desejo de regressar, dir-se-ia mesmo de recordar.
Paul Desjardins (Poussin)
O senhor Profitendieu tinha pressa de regressar a casa e pensava que o seu colega Molinier, que o acompanhava ao longo do Bulevar Saint-Germain, caminhava muito devagar. Albéric Profitendieu vivera no tribunal um dia particularmente sobrecarregado: preocupava-se por sentir um certo peso do lado direito; o cansaço, nele, incidia sobre o fígado, que tinha um tanto delicado. Sonhava com o banho que tomaria; nada o repousava melhor das preocupações do dia a dia do que um bom banho; assim, não merendara nesse dia, considerando que não é prudente entrar na água, mesmo tépida, com o estômago cheio. Vendo bem, talvez não passasse de um preconceito; mas os preconceitos são os pilares da civilização.
Oscar Molinier estugava tanto quanto podia o passo e esforçava-se por acompanhar Profitendieu, mas era muito mais baixo do que ele e de menor desenvolvimento femoral; além disso, com o coração um pouco envolvido em gordura, cansava-se facilmente. Profitendieu, bem conservado para os seus cinquenta e cinco anos, de estômago vazio e andar leve, de boa vontade abdicaria da sua companhia; mas tinha o sentido das conveniências; o colega era mais velho, mais avançado na carreira: devia-lhe respeito. Além disso, culpabilizava-se pela sua fortuna que, depois da morte dos sogros, era considerável, enquanto o senhor Molinier apenas possuía como bens o ordenado de presidente do tribunal, remuneração irrisória e incompatível com a elevada posição que ocupava com tanto mais dignidade quanto ela encobria a sua mediocridade. Profitendieu dissimulava a impaciência; voltava-se para Molinier, via-o limpar o suor; entretanto, o que Molinier dizia interessava-o deveras; mas o seu ponto de vista não era o mesmo e a discussão acalorava-se.
— Mande vigiar a casa — dizia Molinier. — Reúna os relatos do porteiro e da falsa criada, tudo isso está certo. Mas não se esqueça de que, por muito que aprofunde as investigações, o caso escapar-lhe-á… O que pretendo dizer é que corre o risco de o levar bem mais longe do que pensava inicialmente.
— Estas preocupações nada têm que ver com a justiça.
— Vejamos! Vejamos, meu caro; ambos sabemos o que deveria ser a justiça, e o que ela é. Fazemos o melhor, é óbvio; mas por melhor que façamos, atingimos sempre uma aproximação. O caso que hoje o ocupa é particularmente delicado; entre quinze acusados, ou que, a uma palavra sua, o poderão vir a ser, encontram-se nove menores. E alguns desses jovens, como sabe, são filhos de boas famílias. Assim sendo, considero qualquer ordem de captura um erro imperdoável. Os jornais partidários vão apoderar-se do caso e o senhor dará oportunidade a toda a espécie de chantagens, de difamações. Por mais que se esforce, usando da maior prudência, não evitará que nomes dignos sejam condenados… Não me compete dar-lhe conselhos, e bem sabe que me seria mais grato recebê-los de si, em quem sempre reconheci e apreciei o raciocínio, a lucidez, a retidão… Mas, no seu lugar, agiria do seguinte modo: procuraria pôr termo a este abominável escândalo, identificando quatro ou cinco instigadores… Sim, sei que não é fácil apanhá-los; mas que diabo, é o nosso ofício. Selaria o apartamento, teatro dessas orgias, e trataria de prevenir os pais desses jovens desavergonhados, suave, secreta e simplesmente, de forma a evitar recidivas. Ah! Por exemplo, mande prender as mulheres! Com isso, concordo de boa vontade; julgo que estamos perante criaturas de uma insondável perversidade e de cuja presença urge limpar a sociedade. Mas, mais uma vez, não toque nos jovens; limite-se a amedrontá-los, arrume o caso com o rótulo «tendo agido sem discernimento» e deixe-os por muito tempo surpreendidos por se terem ficado pelo susto. Lembre-se de que três deles nem sequer têm catorze anos e de que os pais os consideram com certeza anjos de pureza e inocência. Mas, na verdade, caro amigo, aqui entre nós, será que nessa idade já pensávamos em mulheres?
Detivera-se, mais ofegante pela eloquência do que pela caminhada, e obrigava Profitendieu, preso pela manga, a deter-se também…
— Ou, se pensávamos em mulheres — retomava ele —, era de maneira ideal, mística, religiosa, se assim se pode dizer. Estes jovens de hoje, repare, estes jovens não têm ideais… A propósito, como vão os seus filhos? Não me referia aos seus filhos, bem entendido. Sei que neste caso, sob a sua vigilância e graças à educação que lhes deu, não são de temer tais desvios.
De facto, até então, Profitendieu não podia senão orgulhar-se dos filhos; mas não tinha ilusões: a melhor educação do mundo não prevalece sobre os maus instintos; graças a Deus, os filhos não possuíam maus instintos, tal como decerto acontecia com os de Molinier; sendo assim, evitavam eles próprios as más companhias e as más leituras. Na verdade, de que serve proibir aquilo que não somos capazes de impedir? Os livros proibidos, a criança lê-os às ocultas. Para ele, o sistema a adotar é muito simples: não defendia a leitura de maus livros, mas arranjava maneira de os filhos não terem vontade de os ler. Quanto ao caso em questão, iria refletir e prometia, de qualquer modo, nada fazer sem prevenir Molinier. Simplesmente, continuaria a exercer uma discreta vigilância e, uma vez que o mal já durava há três meses, bem podia prolongar-se por mais alguns dias ou mesmo semanas. Além disso, as férias encarregar-se-iam de dispersar os delinquentes. Adeus.
Profitendieu pôde, finalmente, estugar o passo.
Mal chegou a casa, correu para o quarto de banho e abriu as torneiras da banheira. Antoine, atento ao regresso do amo, arranjou maneira de se cruzar com ele no corredor.
Este fiel servidor estava naquela casa há quinze anos; vira crescer as crianças. Assistira a muitas coisas; desconfiava de inúmeras outras, mas fingia não se aperceber de nada do que pretendiam ocultar-lhe. Bernard não deixava de sentir afeição por Antoine. Não quisera partir sem lhe dizer adeus. E talvez lhe agradasse, por despeito para com a família, envolver um simples criado na confidência desta partida que os parentes mais próximos ignoravam; mas, em abono de Bernard, importa recordar que nenhum dos seus se encontrava em casa. De resto, Bernard não poderia ter-se despedido deles, sem que procurassem retê-lo. Temia as explicações. A Antoine podia dizer simplesmente: «Vou-me embora.» Porém, ao fazê-lo, estendeu-lhe a mão de forma tão solene que o velho criado se surpreendeu.
— O senhor Bernard não vem jantar?
— Nem dormir, Antoine. — E como o outro se mostrasse indeciso, sem saber muito bem o que deveria concluir, nem se deveria interrogá-lo de novo, Bernard repetiu mais intencionalmente: — Vou-me embora. — E, depois, acrescentou: — Deixei uma carta na mesa do… — Não sendo capaz de dizer «do meu pai», emendou: — …na mesa do escritório. Adeus.
Apertando a mão de Antoine, sentia-se comovido como se se despedisse ao mesmo tempo do passado; repetiu rapidamente a palavra «Adeus» e partiu, antes de soltar um profundo soluço que lhe apertava a garganta.
Antoine pensava que talvez fosse uma irresponsabilidade deixá-lo partir assim, mas como poderia retê-lo?
Que a partida de Bernard constituiria para a família um acontecimento inesperado, monstruoso, Antoine sentia-o bem, mas o seu papel de perfeito servidor obrigava-o a não parecer surpreender-se. Não lhe competia saber o que o senhor Profitendieu não sabia. Poderia ter-lhe simplesmente perguntado: «O senhor já sabe que o senhor Bernard se foi embora?» Mas perderia, assim, toda a vantagem, o que não lhe agradava nada. Se aguardava o amo com tanta impaciência, era para deixar escapar, num tom neutro, deferente, e como um simples recado que Bernard o encarregara de transmitir, esta frase que tão demoradamente preparara:
— Antes de partir, o senhor Bernard deixou uma carta no escritório.
Frase tão simples que se arriscava a passar despercebida; procurara, em vão, algo de mais forte, sem encontrar nada que ao mesmo tempo parecesse natural. Mas como nunca acontecia que Bernard se ausentasse, o senhor Profitendieu, que Antoine observava de soslaio, não pôde reprimir um sobressalto:
— Como? Antes de… — Recompôs-se de imediato; não devia deixar transparecer a sua surpresa diante de um subalterno; o sentimento da sua superioridade nunca o abandonava. Terminou num tom calmo, verdadeiramente magistral: — Está bem. — E, dirigindo-se para o seu gabinete, perguntou: — Onde disseste que se encontrava a carta?
— Em cima da mesa, senhor.
Profitendieu, mal entrou no escritório, avistou, de facto, um sobrescrito pousado de maneira bem evidente em frente da poltrona em que costumava sentar-se para escrever; mas Antoine não estava disposto a desistir tão depressa, e o senhor Profitendieu ainda não lera duas linhas da carta, quando ouviu bater à porta.
— Esqueci-me de dizer que há duas pessoas que esperam pelo senhor na sala.
— Que pessoas?
— Não sei.
— Estão juntas?
— Não me parece.
— Que pretendem de mim?
— Não sei. Gostariam de falar com o senhor.
Profitendieu sentiu que perdia a paciência.
— Já disse e repeti que não quero que venham incomodar-me em casa, sobretudo a esta hora; tenho os meus dias e horas de receção no tribunal… Porque as deixaste entrar?
— Afirmaram ambas ter algo de urgente a dizer ao senhor.
— Chegaram há muito tempo?
— Há quase uma hora.
Profitendieu deu alguns passos pelo gabinete e passou uma mão pela testa; com a outra, segurava na carta de Bernard. Antoine continuava à porta, digno, impassível. Por fim, teve a alegria de ver o juiz perder a calma e ouviu-o, pela primeira vez na vida, bater com o pé e resmungar:
— Que me deixem em paz! Que me deixem em paz! Diz-lhes que estou ocupado. Que voltem noutro dia.
Antoine ainda mal saíra e já Profitendieu corria para a porta:
— Antoine! Antoine!… Depois, vai fechar as torneiras da banheira. Estava mesmo necessitado de um banho! Aproximou-se da janela e leu:
«Senhor,
Compreendi, em consequência de uma descoberta que fiz por acaso esta tarde, que devo cessar de o considerar meu pai, o que representa para mim um enorme alívio. Sentindo tão pouco amor por si, considerei-me, durante muito tempo, um filho desnaturado; prefiro saber que não sou seu filho. Talvez pense que lhe devo estar grato por me ter tratado como um dos seus filhos; mas, em primeiro lugar, sempre senti uma diferença de cuidados entre mim e eles e, além disso, conheço-o suficientemente bem para saber que tudo o que fez foi por horror ao escândalo, para ocultar uma situação que não o honrava — e, enfim, porque não poderia proceder de outro modo. Prefiro partir sem voltar a ver a minha mãe, porque receio enternecer-me ao despedir-me definitivamente, e também porque à minha frente poderia sentir-se numa situação falsa — o que me seria desagradável. Duvido de que a sua afeição por mim seja muito profunda; como vivi quase sempre num internato, não teve oportunidade de me conhecer e, como a minha presença lhe recordava constantemente uma parte da sua vida que gostaria de esquecer, creio que me verá partir com alívio e prazer. Diga-lhe, se tiver coragem para tal, que não a critico por ter feito de mim um bastardo; e que, pelo contrário, prefiro ser bastardo a ser seu filho. (Peço desculpa por falar assim; não é minha intenção insultá-lo; mas o que lhe digo permitir-lhe-á desprezar-me, o que o aliviará.)
Se pretender que guarde segredo quanto às secretas razões que me levaram a abandonar o seu lar, peço-lhe que não procure obrigar-me a regressar. A decisão que tomei de o abandonar é irrevogável. Não sei quanto lhe custou a minha manutenção até hoje; podia aceitar viver à sua custa enquanto vivi na ignorância, mas escusado será dizer que, de futuro, prefiro nada receber de si. A ideia de lhe dever seja o que for é-me intolerável e creio que, se tivesse de recomeçar, preferiria morrer de fome a sentar-me à sua mesa. Felizmente, julgo recordar-me de ter ouvido a minha mãe dizer que, quando casou, era mais rica do que o senhor. Sinto-me, pois, à vontade para pensar que não vivi apenas à sua custa. Agradeço à minha mãe, perdoo-lhe tudo o resto, e peço-lhe que me esqueça. O senhor decerto descobrirá uma maneira de explicar a minha partida a quem possa surpreender-se. Permito-lhe que me culpe (mas bem sei que não espera o meu consentimento para o fazer).
Assino com o ridículo nome que é o seu, que gostaria de lhe devolver, e que me apressarei a desonrar,
Bernard Profitendieu.
P. S. Deixo em sua casa todos os meus haveres, que poderão servir ao Caloub, mais legitimamente, espero, para sua tranquilidade.»
O senhor Profitendieu aproximou-se, cambaleando, de uma poltrona. Gostaria de refletir, mas as ideias formavam um turbilhão confuso na sua cabeça. Além disso, sentia um pequeno aperto do lado direito, ali, debaixo das costelas; não a evitaria: era a crise de fígado. Haveria água de Vichy em casa? Se, ao menos, a mulher já tivesse chegado! Como iria preveni-la da fuga de Bernard? Devia mostrar-lhe a carta? É injusta esta carta, abominavelmente injusta. Acima de tudo, deveria indignar-se. Gostaria de considerar indignação a tristeza que sentia. Respira profundamente e, a cada expiração, exala um «Ah! Meu Deus!» breve e fraco como um suspiro. A dor que sente do lado direito confunde-se com a tristeza, confirma-a e localiza-a. Parece-lhe que sente desgosto no fígado. Deixa-se cair numa poltrona e relê a carta de Bernard. Encolhe tristemente os ombros. Sem dúvida que é cruel para ele, a carta; mas adivinha o despeito, o desafio, a jactância. Nunca nenhum dos outros filhos, dos seus verdadeiros filhos, seria capaz de escrever assim, nem ele próprio seria capaz de o fazer; sabe-o bem, pois não há nada nos filhos que não tenha, de resto, reconhecido em si mesmo. É verdade que sempre pensou que devia condenar o que pressentia em Bernard de diferente, de rude, de indomável; mas, se assim o diz, a verdade é que precisamente por isso sempre o amou mais do que aos outros.
Há alguns instantes, no compartimento do lado, ouviu Cécile que, tendo regressado do concerto, se sentou ao piano e repete obstinadamente a mesma frase de uma barcarola. Albéric Profitendieu não se contém. Entreabre a porta do salão e, numa voz queixosa, quase suplicante, pois a cólica hepática começava a fazê-lo sofrer cruelmente (para mais, sempre foi um pouco tímido para com ela):
— Minha querida Cécile, és capaz de ver se há água de Vichy em casa? E, se não houver, mandar alguém comprá-la? Depois, seria bom que parasses de tocar piano.
— Está doente?
— Não, não. Simplesmente, preciso de refletir um pouco até ao jantar e a tua música perturba-me. — E, por delicadeza, pois o sofrimento torna-o mais brando, acrescenta: — É bonito, o que estavas a tocar. O que é?
Mas sai sem ouvir a resposta. De resto, a filha, que sabe que ele não percebe nada de música e confunde Viens Poupoule com a marcha de Tannhäuser (pelo menos, é ela que o diz), não tenciona responder-lhe. O pai volta a abrir a porta:
— A tua mãe ainda não veio?
— Não, ainda não.
É absurdo. Ia chegar tão tarde, que não teria oportunidade de lhe falar antes do jantar. Que poderia inventar para explicar, provisoriamente, a ausência de Bernard? Não podia contar a verdade, confiar aos filhos o segredo do desvario passageiro da mãe. Ah! Estava tudo tão bem perdoado, esquecido, reparado. O nascimento do último filho havia selado a reconciliação. E, subitamente, este espectro de vingança que emerge do passado, este cadáver trazido pelas vagas…
Vejamos! Que se passa agora? A porta do gabinete abre-se de mansinho; introduz rapidamente a carta no bolso interior do casaco; o reposteiro ergue-se devagar. É Caloub.
— Papá, ouve… Que significa esta frase latina? Não compreendo nada…
— Já te disse que não entres sem bater. Além disso, não quero que venhas perturbar-me por tudo e por nada. Adquiriste o hábito de pedir auxílio e de descansar à custa dos outros, em vez de envidares um esforço pessoal. Ontem, foi o problema de geometria, hoje é uma… de quem é a frase latina?
Caloub estende o caderno:
— Ele não nos disse; mas olha, vê: tu reconheces. Foi-nos ditada, mas talvez tenha escrito mal. Gostaria de saber se, pelo menos, está correta…
O juiz Profitendieu pega no caderno, mas a dor atormenta-o demasiado. Repele suavemente o filho:
— Mais tarde. Vamos jantar. O Charles já chegou?
— Foi para o seu gabinete. (É no rés do chão que o advogado recebe a clientela.)
— Diz-lhe que o espero aqui. Vai depressa.
Um toque de campainha! Finalmente, é a senhora Profitendieu que chega. Desculpa-se pelo atraso; teve muitas visitas a fazer. Entristece-a encontrar o marido doente. Que poderão fazer por ele? É verdade que está com muito má cara. Não poderá comer. Terão de ir para a mesa sem ele. Depois do jantar, virá vê-lo, com os filhos.
— O Bernard?
— Ah! É verdade; o amigo… sabes, aquele com quem ia ao explicador de matemática, veio convidá-lo para jantar.
Profitendieu sentia-se melhor. De início, receara estar demasiado doente para poder falar. Todavia, teria de fornecer uma explicação para o desaparecimento de Bernard. Agora, sabia o que devia dizer, por muito doloroso que fosse. Sentia-se firme e resoluto. O seu único receio era que a mulher o interrompesse com choros e gritos, que se sentisse mal…
Uma hora mais tarde, entra a mulher com os três filhos: aproxima- -se. Profitendieu manda-a sentar junto de si, em frente da sua poltrona.
— Mantém a calma — diz-lhe em voz baixa, mas num tom imperioso —; e não digas uma palavra, ouves-me? Depois, conversaremos os dois. — E, enquanto fala, aperta uma das mãos da mulher entre as suas. — Então, meus filhos, sentem-se. Perturba-me vê-los assim, de pé à minha frente, como para um exame. Tenho uma coisa muito triste a dizer. O Bernard deixou-nos e não voltaremos a vê-lo… nos próximos tempos. Preciso de lhes dizer o que até agora ocultei, desejoso como estava de os ver amar o Bernard como um irmão, pois eu e a vossa mãe amávamo-lo como nosso filho. Mas não era nosso filho… e um tio dele, um irmão da sua verdadeira mãe, que no-lo confiara ao morrer… veio buscá-lo esta tarde.
Um penoso silêncio segue-se às suas palavras e ouve-se o fungar de Caloub. Todos aguardam, pensando que o pai vai continuar a falar. Mas este faz um gesto com a mão:
— Vão, meus filhos. Preciso de falar com a vossa mãe.
Depois de os filhos saírem, o juiz Profitendieu permanece muito tempo sem nada dizer. A mão que a senhora Profitendieu deixou entre as suas está como morta. Com a outra, leva o lenço aos olhos. Debruça- -se sobre a mesa e volta-se para o lado, para chorar. Através dos soluços que a abalam, Profitendieu ouve-a murmurar:
— Oh! Como foste cruel… Oh! Expulsaste-o…
Um pouco antes, Profitendieu decidira não lhe mostrar a carta de Bernard; mas, perante esta acusação tão injusta, apresenta-lha:
— Toma: lê.
— Não posso.
— Tens de ler.
Profitendieu esqueceu as dores. Segue-a com os olhos, ao longo da carta, linha após linha. Há pouco, ao falar, mal pôde conter as lágrimas; presentemente, a própria emoção abandona-o; olha para a mulher. Que pensará ela? Com a mesma voz queixosa, através dos mesmos soluços, ela ainda murmura:
— Oh! Porque lhe disseste… Não lhe devias ter dito.
— Mas bem vês que não lhe disse nada… Lê melhor a carta.
— Já li bem… Mas, então, como descobriu? Quem lhe disse?…
O quê? É nisso que ela pensa! Aí reside a sua tristeza! Este luto devia uni-los. Infelizmente, Profitendieu sente de forma confusa que o pensamento dos dois toma direções divergentes. E, enquanto ela se queixa, acusa, reivindica, ele tenta inclinar aquele espírito insubmisso para sentimentos mais piedosos.
— É esta a expiação — diz ele.
Levantou-se, por instintiva necessidade de dominar. Mantém-se hirto, alheio e despreocupado em relação à dor física, e apoia a mão no ombro de Marguerite, num gesto grave, terno e autoritário. Sabe bem que a mulher só muito parcialmente se arrependeu do que sempre quis considerar uma fraqueza passageira; agora, gostaria de lhe dizer que esta tristeza, esta provação, poderá contribuir para a sua salvação; mas procura em vão uma fórmula que o satisfaça e que seja lícito esperar que ela entenda. O ombro de Marguerite resiste à suave pressão da sua mão. Marguerite sabe que, insuportavelmente, nasce sempre um ensinamento moral das entranhas dos mais insignificantes acontecimentos da vida; Profitendieu interpreta e traduz tudo segundo os seus dogmas. Debruça- -se sobre ela. E começa a dizer-lhe o seguinte:
— Minha pobre querida, bem vês que nada de bom pode nascer do pecado. Não serviu de nada tentar ocultar a tua falta. Fiz tudo o que pude por essa criança, ai de mim! Tratei-o como se fosse meu filho. Deus vem agora mostrar-nos que foi um erro pretender…
Mas, nesta primeira frase, detém-se.
E Marguerite compreende decerto estas breves palavras tão carregadas de sentido, que devem ter penetrado no seu coração, pois soluços ainda mais violentos do que os primeiros dominam-na agora, a ela que há momentos cessara de chorar; em seguida, agacha-se, como que prestes a ajoelhar diante do marido, que se debruça sobre ela e a sustém. Que diz ela através das lágrimas? Aproxima-se dos seus lábios. E ouve-a:
— Bem vês… Bem vês… Ah! Porque me perdoaste…? Ah! Não devia ter voltado!
Profitendieu é obrigado a adivinhar-lhe as palavras. Marguerite cala-se. Também não consegue exprimir mais nada. Como dizer-lhe que se sentia prisioneira da virtude que o marido exige dela; que sufocava; que, presentemente, não era tanto a falta cometida que lamentava, era o arrependimento. Profitendieu apruma-se:
— Minha pobre querida — diz-lhe ele num tom digno e severo —, receio que estejas um pouco obstinada, esta noite. Já é tarde. Seria preferível deitarmo-nos.
Ajuda-a a erguer-se, acompanha-a até ao quarto, aflora-lhe a fronte com os lábios, regressa ao gabinete e afunda-se na poltrona. Coisa estranha, a crise de fígado amainou; mas sente-se quebrado. Segura a cabeça entre as mãos, demasiado triste para chorar. Não ouve bater, mas, ao ruído da porta que se abre, ergue a cabeça; é o filho Charles:
— Venho dar as boas-noites.
Charles aproxima-se. Compreendeu tudo. Pretende dá-lo a entender ao pai. Gostaria de lhe testemunhar a sua piedade, a sua ternura, a sua devoção, mas quem acreditaria num advogado? É o mais desajeitado possível a exprimir-se; ou talvez se torne desajeitado precisamente quando os seus sentimentos são sinceros. Beija o pai. A maneira insistente que tem de pousar, de apoiar a cabeça no ombro do pai e de prolongar este momento, convence-o de que o filho compreendeu. Compreendeu tão bem que, levantando um pouco a cabeça, pergunta, acanhadamente, como tudo o que faz — tem, na realidade, o coração tão atormentado que não pode impedir-se de perguntar:
— E o Caloub?
A pergunta é absurda, porque Bernard é tão diferente dos irmãos quanto em Caloub o ar de família é percetível. Profitendieu bate no ombro de Charles:
— Não; não; tranquiliza-te. É só o Bernard.
Então, Charles sentencia:
— Deus expulsa o intruso para…
Mas Profitendieu interrompe-o; precisa que lhe falem assim?
— Cala-te.
O pai e o filho nada mais têm a dizer-se. Deixemo-los. São quase onze horas. A senhora Profitendieu está no quarto, sentada numa cadeirinha de espaldar direito, pouco confortável. Não chora; não pensa em nada. Também ela gostaria de fugir, mas não o fará. Quando estava com o amante, o pai de Bernard, que não conheceremos, pensava: «Por mais que faças, serás sempre uma mulher honesta.» Temia a liberdade, o pecado, o bem-estar, o que a levou a regressar ao lar, arrependida, ao fim de seis meses. Outrora, os pais haviam tido razão ao dizer-lhe: «Nunca sabes o que queres.» Deixemo-la. Cécile já dorme. Caloub fixa, desesperado, a vela, que não durará o suficiente para lhe permitir terminar o livro de aventuras que o distrai da partida de Bernard. Quanto a mim, gostaria de saber o que Antoine contou à sua amiga cozinheira; mas não se pode ouvir tudo. É chegada a hora em que Bernard se vai encontrar com Olivier. Não sei onde jantou esta noite, não sei sequer se jantou. Passou sem ser visto pelo cubículo do porteiro; sobe a escada em surdina…
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