Turno da Noite
1
Ela chegou ao parque de estacionamento mais cedo do que o costume. A espessa e húmida escuridão de julho envolveu‐a assim que saiu do carro. Talvez fosse do calor e da humidade, mas a noite parecia mesmo negra e pesada. Sentindo‐se um pouco ofegante, Masako Katori ergueu o olhar para o céu daquela noite sem estrelas. A pele, fresca e seca no carro com ar condicionado, começou a ficar pegajosa. Misturado com os fumos dos escapes da estrada de Shin‐Oume, sentiu o cheiro vago a comida demasiado frita, o cheiro da fábrica de refeições embaladas onde ia trabalhar.
Quero ir para casa. No momento em que o cheiro a atingiu, as palavras formaram‐se na sua mente. Não sabia exatamente para que casa queria ir, mas não era, de certeza, para aquela de onde acabara de sair. Mas porquê? E para onde é que queria ir? Sentiu‐se perdida.
Da meia‐noite às cinco e trinta, sem intervalo, teria de estar de pé, em frente do tapete rolante, a fazer refeições embaladas. Para part‐time era bem pago, mas o trabalho dava‐lhe cabo das costas. Já lhe tinha acontecido, quando não se sentia bem, parar no parque de estacionamento e ficar a pensar na dureza do turno que tinha pela frente. Agora não era a mesma coisa, era diferente, uma espécie de sensação de inutilidade. Como sempre nesses momentos, acendeu um cigarro, mas percebeu que era para tapar o cheiro da fábrica.
A fábrica de refeições embaladas ficava no meio do distrito de Musashi‐Murayama, de frente para uma estrada que acompanhava o muro cinzento de uma grande fábrica de automóveis. De resto, a área estava entregue aos baldios poeirentos e a um aglomerado de pequenas oficinas de reparação automóvel. A terra era plana e o céu estendia‐se em todas as direções. O parque de estacionamento ficava a três minutos a pé do local de trabalho de Masako, atrás de uma outra fábrica, agora abandonada. Não passava de um terreno deserto que fora gradeado à pressa. Os espaços de estacionamento já tinham sido marcados por uma tira, mas há muito que o pó a tornara quase invisível. Os automóveis dos funcionários ficavam estacionados ao acaso, ao longo do parque. Era um local onde provavelmente ninguém repararia numa pessoa escondida entre as ervas ou atrás de um carro. O efeito geral era, de algum modo, sinistro, e Masako olhou em volta, nervosa, enquanto trancava o carro.
Ouviu o som de pneus e, por um instante, a erva alta de verão que rodeava o parque brilhou sob os faróis amarelos. Um Volkswagen Golf cabriolet verde, de capota descida, entrou no parque, e a sua colega mais roliça, Kuniko Jonouchi, fez‐lhe um aceno com a cabeça do lugar do condutor.
– Desculpa o atraso – disse, enfiando o carro no espaço ao lado do Corolla de um vermelho desvanecido de Masako. Conduzia de um modo que parecia descuidado e fez mais barulho do que era necessário para puxar o travão de mão e fechar a porta do carro. Tudo nela era ruidoso e colorido. Masako pisou o cigarro com a ponta da sapatilha.
– Belo carro – observou. O tema do automóvel de Kuniko era recorrente na fábrica.
– Achas? – disse Kuniko, pondo a língua de fora de prazer pelo comentário. – Mas fiquei enterrada em dívidas. – Masako soltou uma risada evasiva. O carro não parecia ser a única fonte das dívidas de Kuniko. Só tinha acessórios de marca e roupa que era nitidamente cara.
– Vamos lá – disse Masako. Algum tempo após o Ano Novo, ela começara a ouvir falar de um estranho que rondava a estrada entre o parque de estacionamento e a fábrica. E, depois, várias das trabalhadoras em part‐time tinham relatado ter sido arrastadas para as sombras e sofrido tentativas de abuso até acabarem por escapar; por isso, a empresa lançara recentemente um aviso para que as mulheres andassem em grupos. Avançaram na escuridão do verão, ao longo da estrada de terra mal iluminada. À direita, alinhados, existiam blocos de apartamentos e casas com grandes jardins. Não eram muito apelativos mas constituíam, pelo menos, um sinal de vida. À esquerda, para além de um fosso cheio de mato, jazia uma fileira de edifícios abandonados: uma fábrica de refeições embala‐ das mais antiga, um salão de bowling devoluto. As vítimas diziam que o atacante as arrastara para os edifícios desertos e, por isso, Masako manteve‐se cuidadosamente atenta enquanto ela e Kuniko caminhavam à pressa.
De um dos apartamentos, à direita, ouviram um homem e uma mulher a discutir em português; provavelmente trabalhavam na fábrica. Para além das donas de casa que trabalhavam em tempo parcial, a fábrica empregava muitos brasileiros, de etnia e descendência japonesa, muitos deles casais.
– Anda toda a gente a dizer que o tarado deve ser um brasileiro – disse Kuniko, franzindo o sobrolho para a escuridão. Masako continuou a andar sem responder. Queria lá saber de onde vinha o homem, pensou, não havia cura para o tipo de depressão que resultava de se trabalhar na fábrica. As mulheres teriam simplesmente que se proteger o melhor possível. – Dizem que é um homem alto e forte, que puxa as mulheres e as mantém presas sem dizer nada. – Algo no tom de voz de Kuniko traía uma ponta de nostalgia. Masako sentiu que Kuniko estava de alguma forma bloqueada, fechada, como uma nuvem densa a obscurecer as estrelas de noite. De trás delas veio o som do guinchar de uns travões de bicicleta e, quando se voltaram, nervosas, para olhar, encontraram uma mulher mais velha montada na sua bicicleta.
– Ah, são vocês as duas – disse ela. – Olá. – Era Yoshie Azuma, uma viúva de cinquenta e muitos anos, com dedos ágeis que a tornavam a operária mais rápida na linha. As outras mulheres tinham começado a chamar‐lhe «Capitã», num respeito invejoso.
– Ah, Capitã. Bom dia – cumprimentou Masako, parecendo aliviada. Kuniko não disse nada, mas deu um passo atrás.
– Não comecem vocês também a chamar‐me Capitã – disse Yoshie, mas parecia secretamente satisfeita com o nome. Saiu da bicicleta e começou a acompanhar o passo das outras duas. Era baixa e de estrutura sólida, de uma forma que parecia ser ideal para o trabalho físico. E, no entanto, o rosto tinha feições finas e pálidas, que pareciam flutuar, quase sedutoras, na escuridão. Era talvez esta contradição que a fazia sentir‐se infeliz, desafortunada.
– Imagino que sigam juntas por causa do alarido à volta do tarado – disse ela.
– Acertaste – disse Masako. – Kuniko ainda é suficientemente nova para estar em perigo. – Esta riu‐se. Tinha vinte e nove anos. Yoshie contornou uma poça de água que cintilava sob a luz fraca e voltou‐se para olhar Masako.
– Tu também ainda estás na corrida – disse. – Tens o quê, quarenta e três?
– Não sejas tonta – disse Masako, a abafar o riso. Ficou emba‐ raçada com o elogio, de uma forma que quase já não conhecia.
– Então, já estás toda seca, não? Fria e seca? – O tom de voz de Yoshie era provocador, mas pareceu a Masako que acertara em cheio. Sentia‐se, de facto, fria e seca, quase um réptil, a arrastar‐se.
– Não vens um bocadinho mais tarde do que é costume, hoje? – disse ela, para mudar de assunto.
– Oh, a avó tem estado difícil. – Yoshie franziu a testa e calou‐se. Tinha a sogra acamada em casa. Masako olhou em frente, decidindo evitar mais perguntas. Depois de passarem a fileira de edifícios abandonados à esquerda, aproximaram‐se dos vários camiões brancos que entregavam as refeições embaladas em lojas de conveniência por toda a cidade. Por trás dos camiões, erguia‐se a fábrica, brilhando, sombria, na luz fluorescente, como uma cidade sem noite.
Esperaram enquanto Yoshie enfiava a sua bicicleta num dos parqueamentos apropriados, ao lado da fábrica, e depois subiram as escadas cobertas de relva artificial que davam para um dos lados do edifício. À direita era o escritório e ao longo do corredor ficava a área de descanso dos operários e o vestiário. A fábrica era no rés‐ ‐do‐chão, por isso, depois de mudarem de roupa, desciam as escadas. Tinham de tirar os sapatos na carpete sintética vermelha, à entrada da fábrica. A luz fluorescente lavava a cor da carpete, o que tornava o corredor algo sinistro. Também a cor, no rosto das mulheres à sua volta, parecia deslavada, e, enquanto olhava as suas companheiras de infortúnio, Masako perguntou a si própria se também ela teria tão mau aspeto. Komada, a empertigada inspetora sanitária da empresa, estava parada em frente dos cubículos onde se arrumavam os sapatos e, à medida que cada mulher passava, esfregava‐lhe as costas com uma fita pegajosa para remover qualquer pó ou sujidade que pudesse ter trazido de fora.
Entraram na sala grande, com tapetes de tatami (1), que servia de sala de convívio dos empregados. Pequenos grupos de pessoas conversavam aqui e ali, trazendo já vestido o uniforme branco. Umas bebiam chá ou comiam qualquer coisa enquanto aguardavam o início do trabalho, outras tinham arranjado espaço a um canto para uma rápida sesta. Da quase uma centena de trabalhadores do turno da noite, cerca de um terço era constituído por brasileiros, sendo quase metade homens. E, por se estar a meio das férias de verão, o número de trabalhadores‐estudantes tinha aumentado; ainda assim, a esmagadora maioria ali era de trabalhadoras em part‐time, donas de casa nos seus quarenta ou cinquenta anos.
As três mulheres trocaram acenos de cabeça com amigas enquanto avançavam ao longo do vestiário, mas depois repararam em Yayoi Yamamoto sentada sozinha a um canto. Olhou para elas quando as sentiu aproximar, mas não sorriu e permaneceu caída no tatami.
– Bom dia – cumprimentou Masako, e por fim a outra sorriu por um momento. – Estás com um ar abatido. – Yayoi acenou com a cabeça fracamente e olhou‐as com um ar desanimado, mas não respondeu. Yayoi era a mulher mais atraente do turno da noite. O seu rosto era quase perfeito, de testa larga e com um bonito equilíbrio entre olhos e sobrancelhas. Tinha o nariz arrebitado e os lábios cheios. Também o corpo, embora pequeno, era perfeito. Dava tanto nas vistas, na fábrica, que uma série de mulheres tinha começado a maltratá‐la, embora outras fossem simpáticas para ela. Masako assumira o papel de sua protetora, talvez por as duas serem tão diferentes. Enquanto Masako fazia os possíveis para viver de acordo com a razão e o bom senso, Yayoi parecia arrastar um forte peso de bagagem emocional pelo mundo. Quase inconscientemente, agarrava‐se a velhas mágoas, desempenhando o papel da mulher bonita à mercê de sentimentos confusos e voláteis.
– O que é que se passa? – perguntou Yoshie, dando‐lhe uma palmada no ombro com a mão rude e vermelha. – Estás com má cara. – Yayoi até deu um pulo, sobressaltada, e Yoshie voltou‐se para Masako, que fez sinal às outras duas para irem andando e se sentou na frente de Yayoi.
– Estás doente? – perguntou.
– Não, não é nada.
– Tiveste outra discussão com o teu marido?
– Eu estaria mais feliz se ele ainda quisesse, pelo menos, discutir comigo – disse ela com um ar lúgubre, de olhos vermelhos e fixos num ponto por trás de Masako. Percebendo que teriam de começar a trabalhar em breve, Masako começou a apanhar o cabelo num carrapito.
– O que foi que aconteceu? – perguntou.
– Conto‐te mais tarde – disse Yayoi.
– Porque não agora? – insistiu Masako, olhando de relance o relógio na parede.
– Não, mais logo. É uma longa história. – Um olhar de raiva apareceu no rosto de Yayoi por um instante, depois desvaneceu‐se. Desistindo, Masako ergueu‐se.
– Está bem – disse ela. Apressou‐se a ir para o vestiário procurar o uniforme. Apenas nominalmente era uma sala, porque só uma cortina a separava da sala dos empregados. A parede estava atulhada de fileiras daqueles cabides resistentes que há nos saldos das lojas de roupa. Na secção dos empregados diurnos, os uniformes brancos, sujos, estavam pendurados em divisórias apertadas, mas o espaço reservado ao turno da noite era alegre, colorido pela roupa da rua.
– Vemos‐te lá em baixo – disse Yoshie, saindo da sala com Kuniko. Estava na hora de entrar. Segundo as regras, tinham de picar o ponto entre as 23h45 e a meia‐noite e depois esperar em baixo, à entrada da sala de produção.
Masako tirou o cabide da barra. Ali estava a bata branca com fecho à frente e um par de calças de trabalho com um elástico na cintura. Enfiou rapidamente a bata sobre os ombros e, reparando na posição dos homens na sala, tirou as calças e enfiou‐se nas de trabalho. Não havia vestiários separados e, embora trabalhasse ali há quase dois anos, ainda não se habituara a isso.
Depois de colocar uma rede preta sobre o cabelo que já apanhara com um elástico, cobriu a cabeça com o barrete de papel que todos usavam, mais parecido com uma touca de banho do que com um verdadeiro barrete. Alguém lhes chamara «gafanhotos» porque faziam lembrar um inseto. Agarrou num avental de plástico limpo e saiu do vestiário, mas deu com Yayoi ainda sentada no mesmo sítio onde a deixara. Como se não tivesse nada para fazer.
– Ei! É melhor despachares‐te – disse, mas, quando viu a lentidão com que a outra se levantou, ficou mais preocupada do que aborrecida. Quase todos os empregados tinham saído da sala; restavam apenas alguns homens brasileiros estendidos no tatami. Estavam encostados à parede, a fumar, com as pernas grossas esticadas para a frente.
– Bom dia – disse um, erguendo uma mão que ainda segurava numa beata. Masako acenou‐lhe, e fez um vago sorriso. A placa iden‐ tificadora que trazia no peito dizia «Kazuo Miyamori», mas Masako não pôde deixar de pensar que ele parecia estrangeiro, com a pele escura, o rosto marcado e a testa saliente. Imaginou que ele faria algum dos trabalhos mais físicos, como colocar o arroz na máquina automática. – Bom dia – repetiu ele, desta vez para Yayoi, embora esta estivesse demasiado distraída para o olhar. Ele pareceu desapontado, mas, de qualquer forma, era algo que acontecia com demasiada frequência naquele local de trabalho frio e pouco amigável.
Dirigiram‐se à casa de banho por um momento antes de enfiarem as máscaras e os aventais. As mãos foram fortemente esfregadas com escovas e depois desinfetadas. Picaram os cartões de ponto, enfiaram‐se nos sapatos de trabalho brancos e foram novamente vistos pela inspetora de saúde, que estava num lugar diferente, junto às escadas que desciam para a fábrica. Mais uma vez, Komada esfregou‐lhes as costas com o rolo de fita, enquanto observava cuidadosamente unhas e mãos.
– Não há cortes? – Até o mais pequeno arranhão num dedo tornava uma pessoa inelegível para qualquer trabalho em que tivesse de tocar em comida. Masako e Yayoi ergueram as mãos para a inspeção. Yayoi parecia prestes a desfalecer enquanto esperava pelo fim do exame.
– Estás bem? – perguntou Masako.
– Sim, acho que sim – respondeu Yayoi.
– Está tudo bem com os miúdos?
– Hum – respondeu ela vagamente. Masako voltou a olhá‐la, mas o chapéu e a máscara tapavam tudo exceto os olhos inquietos. Yayoi parecia alheada do olhar perscrutador de Masako.
O golpe de ar frio, cortante, misturado com cheiros de vários alimentos, fazia a descida para a fábrica parecer a entrada num enorme frigorífico. O frio paralisante do chão de cimento entrava pelos sapatos. Mesmo no verão, a fábrica era gelada.
Ao fundo das escadas, juntaram‐se aos outros trabalhadores que aguardavam a vez de entrar. Yoshie e Kuniko, que estavam mais à frente na fila, voltaram‐se para lhes fazer sinal. As quatro mulheres trabalhavam juntas e tentavam ajudar‐se umas às outras, senão o trabalho seria ainda mais duro.
A porta abriu‐se e os trabalhadores entraram. Voltaram a lavar‐se até aos cotovelos, e os aventais, que lhes chegavam aos tornozelos, foram desinfetados. Quando Yayoi e Masako acabaram de se lavar e se dirigiram à sala de produção, as outras mulheres já tinham iniciado os preparativos no tapete rolante.
– Despacha‐te! – vociferou Yoshie a Masako. – Nakayama está a chegar. – Nakayama era o capataz do turno da noite. Era novo, com pouco mais de trinta anos, e a sua língua viperina, juntamente com uma obsessão por quotas, tinha‐lhe assegurado o ódio dos trabalhadores.
– Desculpem! – disse Masako, agarrando numas luvas descar‐ táveis, numa toalha esterilizada, e trazendo um conjunto também para Yayoi. Enquanto enfiava as luvas, Yayoi olhou‐as como se acabasse de perceber que estava no trabalho.
– Vê se te recompões – disse‐lhe Masako.
– Obrigada – murmurou Yayoi. Enquanto tomavam os lugares na frente da linha, Yoshie mostrou‐lhes as instruções para o dia.
– Vamos começar com uns pratos de caril. Duzentos pratos de caril. Eu fico com o arroz e vocês com as caixas, está bem? – «Arroz» significava ficar à cabeça da linha como a orientadora de todo o processo, a pessoa que determinava a velocidade da linha. Yoshie, que era particularmente boa nisso, oferecia‐se sempre para o traba‐ lho do arroz, enquanto Masako ficava com a tarefa de lhe entregar os recipientes. Quando começou a preparar as caixas de plástico, voltou‐se para olhar para Yayoi. Fora demasiado lenta para conse‐ guir ficar com o trabalho mais fácil, que era colocar o caril. Kuniko, que conseguira uma dessas posições, olhou‐a e encolheu os ombros. Podiam tentar olhar por ela, parecia estar a dizer, mas se Yayoi nem aquilo conseguia fazer sozinha, o que poderiam elas fazer...?
– O que é que ela tem? – perguntou Yoshie, franzindo a testa em direção a Yayoi. – Está doente?
Masako abanou a cabeça mas não disse nada. De facto, Yayoi parecia estranhamente distraída. Masako observou‐a enquanto ela se afastava da linha, onde já não havia mais lugares, e se dirigia para a posição onde se alisava o arroz, trabalho particularmente difícil. Contendo a vontade de falar com mais aspereza, murmurou para Yayoi, que se aproximava:
– Isso é muito duro.
– Eu sei.
– Despachem‐se e comecem – latiu o capataz, avançando para elas. – O que raio estão para aí a fazer? – A pala do boné de trabalho escurecia‐lhe a expressão, mas os olhos, pequenos, brilhavam ameaçadores por detrás dos óculos.
– Adivinhem quem chegou – murmurou Yoshie.
– O parvalhão – sussurrou Masako, furiosa com o tom de voz de Nakayama. Detestava aquele capataz autoritário.
– Mandaram‐me nivelar o arroz – disse timidamente uma mulher que parecia ser nova ali. – O que é que tenho de fazer?
– Ficas aí e alisas o arroz depois de eu o deitar – disse Yoshie, num tom que, para ela, era amável. – Depois tens de o empurrar para o caril. Ela vai fazer exatamente a mesma coisa, por isso só tens que imi‐ tar – acrescentou, apontando para Yayoi, no outro lado da linha.
– Está bem – disse a recém‐chegada, com ar de quem não tinha percebido, e continuando a olhar para ela, apalermada. Yoshie, que não gostava de tempos mortos, carregou no interruptor que ligava o tapete rolante. À medida que este ganhava vida com um gemido, Masako reparou que ela tinha posto mais velocidade do que o normal. Talvez fosse por todos os outros parecerem nesse dia um pouco lentos que ela queria acelerar.
Masako começou a passar as embalagens com mão experiente. Um quadrado de arroz, perfeito, emergiu da boca do dispensador de arroz e caiu dentro da embalagem de Yoshie, que a seguir pesou rapidamente as porções na balança ao lado, enviando tudo ao longo da linha com um floreado.
À frente de Yoshie ficava uma fila, longa, de trabalhadores: um para alisar o arroz, um para juntar o molho de caril, um para fatiar a galinha, outro para a deitar por cima do caril. Depois, outra pessoa doseava os pickles num copo de medida, outra colocava a tampa de plástico, outra colava‐lhe uma colher e, finalmente, outra selava a caixa. Cada embalagem fazia o percurso linha abaixo, era reunida aos poucos até que, finalmente, a refeição de caril estivesse completa.
Era sempre assim que o turno começava. Masako olhou de relance o relógio de parede. Meia‐noite e cinco. Mais cinco horas e meia no chão de cimento frio. Só podia uma pessoa de cada vez ir à casa de banho, com alguém a vir substituí‐la na linha. Tinha que se avisar que se queria ir e depois esperar pela vez, o que podia demorar até duas horas. Elas tinham descoberto há muito que, para o trabalho ser mais suportável, tinham não só de olhar por si próprias mas também de trabalhar juntas, como equipa. Era o segredo para se durar num lugar daqueles sem dar cabo da saúde.
Passada uma hora de turno, começaram a ouvir sons de desespero da mulher nova. Quase imediatamente, a eficiência decaiu, na linha, e tiveram de abrandar o ritmo. Masako reparou que Yayoi, tentando ajudar, começara a esticar‐se para ficar com algumas das caixas da recém‐chegada, embora nesse dia mal fosse capaz de dar conta das suas. Os veteranos na linha sabiam que nivelar o arroz era um trabalho particularmente difícil, uma vez que, na altura em que saía da máquina, já se transformara num monte duro, por causa do frio. Era preciso fazer muita força nos pulsos e dedos para achatar os pequenos quadrados de arroz frio e compacto nos poucos segun‐ dos em que a caixa estava na frente da pessoa, e a posição meio inclinada era dolorosa para as costas. Depois de uma hora nisto, as dores iam desde a espinha até aos ombros, e tornava‐se difícil erguer os braços. Razão pela qual este trabalho era muitas vezes deixado a inocentes novatos – embora, naquele momento, Yayoi, que era tudo menos novata, estivesse a trabalhar arduamente, com um ar soturno mas resignado.
Por fim, terminaram os mil e duzentos almoços. As mulheres da linha limparam o tapete rolante e passaram rapidamente para outra linha, para a refeição seguinte: duas mil caixas de «Almoço de Campeões». O «Almoço de Campeões» tinha mais componentes do que as refeições de caril, por isso a linha era mais longa, complementada por uma série de brasileiros.
Yoshie e Masako, como de costume, ficaram nos pontos do arroz. Kuniko, que era sempre rápida a avaliar a situação, estava a reservar a tarefa simples de demolhar o porco frito para Yayoi. Tratava‐se de pegar em dois bocados de carne de porco, um em cada mão, passá‐los pelo molho e colocá‐los na caixa, com os lados que tinham molho voltados um para o outro. Era um bom posto, um pouco protegido da cadência frenética da linha, algo que até Yayoi podia fazer. Masako relaxou um pouco e concentrou‐se no seu próprio trabalho.
Mas, no momento em que tinham acabado esta parte e começavam a desfazer a linha, ouviu‐se um enorme estrondo. Algo de pesado tinha caído e toda a gente se voltou para olhar. Yayoi fora de encontro ao caldeirão cheio de molho e caíra de costas no chão. A pesada tampa de metal rolou para longe, com estrondo, e ficou debaixo do tapete rolante ao lado, enquanto um mar de molho castanho e viscoso se espalhava em redor. O chão da fábrica estava sempre escorregadio da gordura e da comida que saltava, mas os trabalhadores estavam habituados às condições de trabalho e aquele tipo de acidente quase nunca acontecia.
– O que raio estás tu a fazer?! – berrou Nakayama, aproximando‐se com a cara pálida de fúria. – Como é que foste derramar isto?
– Desculpe – disse Yayoi enquanto acorriam alguns homens com esfregonas. – Escorreguei. – Não fez qualquer movimento para se levantar, parecia pedrada, ali num lago de molho.
– Anda lá – disse Masako, inclinando‐se sobre ela. – Vais ficar ensopada. – Enquanto a ajudava a levantar, viu de relance uma grande nódoa negra na barriga de Yayoi, num ponto onde a camisa do uniforme estava puxada para cima. Seria esta a razão por que ela parecia tão distraída? A contusão era evidente na barriga branca, como uma marca de Caim. Masako deu um estalo de desaprovação com a língua, mas apressou‐se a endireitar o uni‐ forme de Yayoi para lhe tapar a nódoa negra. Não havia uniformes a mais, por isso, depois de um momento para se recompor, Yayoi foi forçada a continuar a trabalhar com as costas e as mangas cobertas de molho. O líquido espesso congelou rapidamente numa crosta castanha que não ensopava a roupa, embora o cheiro fosse avassalador.
Cinco e meia da manhã. Não haveria horas extraordinárias nesse dia, por isso os operários regressaram ao segundo andar. Depois de voltarem a vestir a roupa da rua, as quatro mulheres normalmente compravam umas bebidas nas máquinas da sala de convívio e sentavam‐se à conversa por uns vinte minutos, antes de partirem para casa.
– Tu hoje não estás em ti – disse Yoshie, voltando‐se para Yayoi. – Está tudo bem? – A idade e a fadiga eram evidentes no rosto de Yoshie, que uma dura noite de trabalho tornava banal. Yayoi sorveu um pouco do café do seu copo de papel e pensou uns momentos antes de responder.
– Tive uma discussão com o meu marido ontem à noite – disse por fim.
– Nada de novo, pois não? – riu Yoshie, lançando um rápido olhar cúmplice a Kuniko. Ela semicerrou os olhos, enquanto enfiava um fino cigarro de mentol na boca.
– Tu e o Kenji dão‐se bem, não dão? – perguntou, em tom neutro. – Ele está sempre a levar os miúdos a sair, não foi isso que disseste?
– Ultimamente, não – murmurou Yayoi. Masako não disse nada, mas estudou o rosto de Yayoi. Quando uma pessoa se sentava e ficava quieta uns minutos, o cansaço parecia avançar pelo corpo todo.
– A vida é longa e há sempre momentos piores, todos temos altos e baixos. – Yoshie, que era viúva, parecia ansiosa por aligeirar a discussão com o lugar‐comum, mas o tom de Yayoi tornou‐se áspero.
– Mas ele gastou as nossas economias todas – explodiu ela. As outras ficaram em silêncio, atónitas com esta confissão súbita.
Masako acendera um cigarro e, enquanto dava uma passa, quebrou o silêncio.
– Gastou‐as como?
– Em jogo – disse Yayoi. – Acho que ele joga bacará, ou qualquer coisa assim.
– Mas eu pensei que o teu marido era um tipo certinho. Por‐ que é que ele havia de se meter no jogo? – Yoshie parecia estupefacta.
– Não me perguntes – suspirou Yayoi, abanando a cabeça. – Acho que há um sítio qualquer onde ele vai jogar, mas não sei muito mais.
– Quanto é que tinham? – perguntou Kuniko, incapaz de ocultar a curiosidade.
– Uns cinco milhões – disse Yayoi, com a voz a desaparecer num sussurro. Kuniko engoliu em seco e, por momentos, quase parecia invejosa.
– Isso é terrível – murmurou.
– E ontem à noite bateu‐me. – Mostrando a fúria que Masako vira anteriormente, Yayoi levantou a T‐shirt e mostrou a nódoa negra. Yoshie e Kuniko trocaram um rápido olhar.
– Mas aposto que já está arrependido – disse Yoshie em tom conciliatório. – O meu marido e eu estávamos sempre a discutir, e ele era um bruto. Mas o teu não é, pois não?
– Agora não sei – disse Yayoi, esfregando a barriga.
*
Já havia luz na rua. O dia parecia estar a formar‐se nos moldes do anterior, quente e húmido. Yoshie e Yayoi, que iam trabalhar de bicicleta, despediram‐se na frente da fábrica enquanto Masako e Kuniko se dirigiam para o parque de estacionamento.
– Tem chovido pouco este ano – comentou Masako enquanto caminhavam.
– Provavelmente vai haver falta de água – disse Kuniko, erguendo o olhar para o céu de chumbo. A cara dela estava coberta de gordura da noite de trabalho.
– Se as coisas continuarem assim... – disse Masako.
– O que é que achas que a Yayoi vai fazer? – perguntou Kuniko, a sua voz interrompendo‐se num bocejo. Masako encolheu os ombros. – Se fosse eu, divorciava‐me. Ninguém estranhava, de certeza, depois de ele gastar as poupanças todas.
– Suponho que sim – murmurou Masako, mas ocorreu‐lhe que os filhos de Yayoi ainda eram pequenos, por isso não era tão simples como Kuniko fazia parecer. Estavam todas a ir para casa, mas talvez não fosse apenas Masako a não saber bem onde era a sua casa. Foram até ao parque de estacionamento em silêncio.
– Boa noite – disse Kuniko ao abrir a porta do carro.
– Noite – respondeu Masako, que nunca tinha a certeza de que fosse aquela a despedida mais correta, de manhã. Sentiu‐se cansada quando se deixou cair no seu carro, e protegeu os olhos da luz da manhã.
(1) Os tapetes de tatami, feitos de palha prensada, constituem o piso tradicional das casas no Japão. (N. da T.)
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