Tudo se joga entre três personagens, na intimidade de um quarto de hotel, primeiro através de Ian, um jornalista de 40 anos, “alcoólico, enfermo, racista, misógino e homofóbico”, e Cate, “uma rapariga burguesa” de 20 e poucos anos, “gaga e inocente”, presos numa “relação agonizante de violência psicológica, sexual e física”. A chegada de um soldado, a dado ponto da ação, impõe a explosão de violência (“Blasted”), iminente desde o primeiro momento.

A peça foi escrita em 1995, pela dramaturga britânica Sarah Kane (1971-1999), tendo por referência a recente Guerra dos Balcãs (1991-1995), quando o conflito começava a emergir no Kosovo, num clima que “podia perfeitamente passar-se agora, com a guerra na Ucrânia”, disse o encenador João Telmo à agência Lusa.

A ação passa-se longe da frente de combate, mas a guerra “acaba por corromper” a situação vivida pelo casal, expondo “a violação e a violência, no seu espetro mais ampliado”, sublinha o encenador.

Por isso, João Telmo procurou fixar o cenário “como se fosse um não-lugar”, acentuando “um lado muito assético”, num espaço todo espelhado, com adereços prateados, de modo a poder localizar-se “em qualquer sítio do mundo”, em qualquer altura.

O uso de espelhos, em três faces do palco e no chão, permite ao encenador acentuar “um lado muito ‘voyeurista'”, expondo os atores a 360 graus e acentuando a perspetiva deformada das figuras.

Os diálogos entre Ian e Cate são “labirínticos, malignos e tóxicos”, classifica João Telmo.

A dado momento, um soldado irrompe pelo quarto. Cate consegue fugir, mas o soldado acaba por se “apoderar psicológica e sexualmente de Ian”, enquanto fala das “atrocidades que concretizou e testemunhou desde a eclosão da guerra, até ao momento em que uma bomba explode, deixando o quarto de hotel em ruínas”, descreve o encenador.

“Ruínas” foi o título com que os Artistas Unidos estrearam a peça, em outubro de 2000, no Espaço A Capital/Teatro Paulo Claro, em Lisboa, numa encenação de Jorge Silva Melo e Paulo Claro, depois de uma primeira leitura pública, em maio desse ano.

“A violência gera violência”, escrevia então a companhia fundada por Silva Melo na apresentação da estreia portuguesa da obra. “Num mundo selvagem […], a obra de Sarah Kane é uma ferida aberta”.

João Telmo parte da mesma tradução de Pedro Marques, para levar “Blasted” de novo a cena.

Primeira peça de Sarah Kane, escrita ainda durante os anos de estudo na Universidade de Birmingham com o dramaturgo David Edgar, “Blasted” estreou-se em janeiro de 1995, no Royal Court Theatre, em Londres.

Na altura, a obra foi criticada pelo conteúdo violento. A sua importância, no entanto, foi depois reconhecida como denúncia da própria violência num espetro ampliado, tendo sido classificada pelo jornal britânico The Independent como “uma obra canónica” e “uma das 40 melhores peças de sempre”, a par de textos de autores como Harold Pinter, Samuel Beckett, Luigi Pirandello, Eugene O’Neill, sem esquecer Anton Tchekhov, nem Shakespeare, Eurípides e Sófocles.

“A escrita de Kane tem uma energia horrivelmente viva, e as atrocidades que retrata de forma deprimente, adquirem uma nova ressonância para cada geração que a descobre”, lê-se no texto assinado pelos críticos Paul Taylor e Holly Williams, no The Independent, em outubro do ano passado.

“O Teatro Completo de Sarah Kane” está publicado em Portugal, num volume editado pela Campo das Letras em 2004.

“Blasted”, com encenação de João Telmo, que também assina os figurinos, tem interpretações de Bernardo Lobo Faria, Graciano Dias e Margarida Bakker, cenografia de Anto´nio MV, desenho de luz de Ricardo Campos e música original e sonoplastia de Carlos Morgado.

A peça ficará em cena no Teatro da Trindade de 09 de março a 23 de abril, com sessões de quarta-feira a domingo, às 19:00. Após a récita de 26 de março, haverá uma conversa com o público.

Em maio do ano passado, esta encenação de “Blasted” teve duas apresentações no Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), no Porto.

“Blasted”, por João Telmo, é uma coprodução do Teatro da Trindade INATEL, com a Nova Companhia e o Teatro Municipal do Porto.