Alexander Payne não é estranho no mundo dos homens que caminham à procura de si mesmos. “About Schmidt” (2002) e “Nebraska” (2013) são dois exemplos — muito bons, sublinhe-se — de jornadas de descoberta, de reconstruções do eu acabado. A ordem é mais ou menos assim: um homem (sempre eles) dá por ele encravado a meio da vida. Uma iluminação (uma autocaravana, uma taluda do pai ou uma descoberta científica) dá-lhe alento e o objetivo que não tinha. E parte.

“Pequena grande vida”, ou “Downsizing” (redução), é assim. Mas ao contrário de “About Schmidt” e “Nebraska”, é um filme que não sabe se quer ser comédia, drama ou documentário. É uma amálgama que por vezes se assoma engraçada, por outras quer ser levada demasiado a sério.

A ficção é isso mesmo: ficção. Pode fingir que é outra coisa; pode apelar à ciência — ou pseudociência — para fazer andar os mecanismos narrativos. Porém, não deixa de ser fantasia, projeto de retrato da realidade. E aqui é sempre difícil não reparar nela. É como Paul Safranek (Matt Damon) atira a meio de um jantar, quando na sala tem uma rosa gigante, em que quase nem repara: “às vezes parece que estamos no mundo normal, mas depois há qualquer coisa que nos faz ver que não”.

Matt Damon (e), Christoph Waltz (d) e a rosa "gigante" (c). créditos: © 2017 Paramount Pictures

Isso sente-se. Há um ambiente, uma construção que nos faz notar que algo não está como devia. Porém, depois da transformação, as interações entre mundo normal e mundo minúsculo desaparecem. Acostumamo-nos ao micro-mundo, até chegar uma jornada, já no final, que nos confronta de novo com algum contraste entre realidades — embora não haja festivais em torno de garrafas gigantes de vodka, como o trailer faz parecer.

A premissa é simples: o planeta está com excesso de população. Não havendo a possibilidade de expandir o planeta, só há uma solução: diminuir o tamanho dos elementos dessa população. Objetivo: tornar 6% da população em polegarzinhos em 200 anos.

A fantástica descoberta de investigadores noruegueses é anunciada num congresso (apresentado pelo português Joaquim D’Almeida), que dá a conhecer a primeira comunidade de pessoas que se submeteram ao processo de redução — que consiste na depilação de todas as pilosidades, remoção de todas as próteses e entrada num microondas de considerável dimensão.

À parte o processo, nos olhos de Paul Safranek, cuja vida está arrumada num marasmo, cai um brilho. Sem dinheiro para luxos, sem objetivos de vida cumpridos, o fisioterapeuta de uma fábrica de transformação de carnes do interior dos Estados Unidos vê-se novamente com um propósito: salvar o planeta. E enquanto o salva, já que as pessoas e o dinheiro variam numa proporcionalidade inversa (os cem mil dólares dos Safranek convertem-se em 12,5 milhões no mundo dos pequenitos), viverá a vida que nunca pôde ter.

créditos: © 2017 Paramount Pictures

Os humanos pequenos vivem em comunidades privadas e fechadas. Vedadas com redes para que não os levem os pássaros. Estas comunidades, que apregoam a vida fantástica, mostram-nos, afinal, que esta gente que se diminui não anda à procura de salvar o mundo. Não há aqui radicais ativistas em protesto. Esses que se fazem pequenos estão apenas à procura da vida que não conseguiam quando grandes. Com o dinheiro com que ficam, podem ser tão insolentes quanto queiram, tão absurdos quanto desejem — e, claro, são-no.

O mundo não é perfeito. Há subúrbios pobres e uma espécie de bairro de lata surrealista, para onde se vai através de uma fenda no muro da comunidade vedada (estando a construção no meio do deserto, há de se ponderar encontros com insetos e demais artrópodes, todavia, não nos são mostrados esses conflitos eventualmente titânicos). Nessa periferia do mundo perfeito, vivem emigrantes, vivem as empregadas de limpeza, vivem os velhos e doentes.

Toda essa dolente miséria apela à crise de meia idade do já divorciado Paul. Paul que se enamora por uma ativista vietnamita (Hong Chau), que foi forçada à diminuição por um regime político mais interessado em salvar o poder que o planeta — e dá corpo a todos os preconceitos asiáticos que se tenha em mente.

É o terceiro ato do filme de Payne. Agora, há que salvar o mundo, mas também a mulher amada. Sobretudo a mulher amada. Porque o planeta e a espécie humana hão de sobreviver, mas a vida de um homem dura apenas o que ele dela fizer. Dela da vida, entenda-se. Porque da mulher, Damon arranca a perna, parte o pé, entre outros efeitos colaterais não estranhos a um ator que desde que se fez Ryan (em 1998, com Tom Hanks), tem uma particular apetência para causar problemas a quem está à sua volta.

Paul Safranek e a perna de uma dissidente vietnamita. créditos: © 2017 Paramount Pictures

Antes deste filme, Damon fez de homem de família alegadamente ingénuo (mas simplesmente perverso) no “Suburbicon” (2017) de George Clooney. Aqui, não há lugar a alegações: Safranek é mesmo ingénuo e demasiado concentrado nele mesmo. E o ator que lhe dá corpo consegue essa ingenuidade. O problema, contudo, é que talvez seja mais acidental que propósito inicial.

Tudo posto assim, pode parecer que não se trata de um bom filme. Não será a melhor obra a tratar das alterações climáticas ou dos problemas político-sociais vietnamitas. Tampouco traz um poder introspetivo que leve alguém a ponderar mudar de vida, seja para salvar o mundo ou salvar-se a si.

Não será um filme para domingo à tarde. Arrasta-se durante demasiado tempo numa tentativa de transformar uma aparente comédia num apelo à mudança e ao sentimento. Todavia, não sei também para que será efetivamente — sequer para quem será.

A não ser que se olhe para ele como uma prova laboratorial. Alguém que pôs num forno uma ideia de filme que materializa, na narrativa e no texto, uma parábola da transformação. Porque, tal como o protagonista, também o filme é mutante.

Este é um filme que se multiplica. Partido ao meio, tem duas histórias diferentes, com o final de uma a dissolver-se no início da outra. E isto é semelhante ao processo por que passa Paul, que se dissolve do tamanho “normal”, para um ser minúsculo que habita um mundo alternativo — um refúgio. Ali, pode ser gigante; enorme como o corpo de 1,78 m nunca lhe permitiu.

Ainda assim, fica aquém dos nomes que reúne. Gostava de lhe chamar pequeno grande filme, até para compor uma brincadeira de palavras. Mas de pequeno tem pouco — alarga-se para as duas horas — e de grande também não terá muito.


Pequena Grande Vida, de Alexander Payne, com Matt Damon, Christoph Waltz e Hong Chau estreia esta quinta-feira, 22 de fevereiro, nas salas portuguesas.