Olfato e paladar. Os dois sentidos foram colocados em sentido durante a pandemia. Saltaram, nesse período, sem pedir licença, para roda das moléstias do nosso atribulado quotidiano.
"Perdi o olfato". "Perdi o cheiro". Um, o outro, os dois diagnósticos de perda, mais ou menos duradoura, foram conversa de café e de postigo a toda a hora por quem foi afetado pela COVID-19.
A pandemia já lá vai, mas se ainda por cá andasse não seria possível juntar à mesma mesa olfato e paladar. Para cheirar perfumes e despertar o palato nos cinco pratos e um buffet. Pratos apresentados ao nosso nariz que sabem a perfume e fragrâncias que prenunciam o que se come.
Um match de gastronomia e perfumaria feito à mesa à custa de odores e sabores que navegam em ingredientes cítricos, florais, marítimos, salgados, amadeirados e outros.
Uma sensação de, no mesmo caldeirão, misturar e criar uma aventura sensorial na qual se brinca e se anima palato e olfato. Foi essa a experiência imersiva e transformativa tida no Coletivo 284, na Amoreiras, em Lisboa, numa viagem de fusão entre dois sentidos separados por dois centímetros durante a qual o cérebro e memórias também foram chamados à equação.
“O desafio maior foi pegar os aromas, as notas”
O Comporta Perfumes desafiou um chef para criar um manjar que que se assemelhassem aos bálsamos da sua perfumaria.
Alinhar as notas dos perfumes com o sabor da comida, elevando a experiência de degustação a um nível de sofisticação ímpar, era o menu das tarefas, empreitada nada fácil para quem confeciona. E igualmente desafiante para quem, como consumidor, prova.
“O desafio maior foi pegar os aromas, as notas, harmonizar num prato, numa refeição”, assumiu ao SAPO24 Igor Scotelaro, a mão que embalou os sabores ao sabor dos tons aromáticos dos perfumes.
Para o engenheiro civil transformado em artesão de tachos e panelas, “a questão maior não é muito o sabor". "É o aroma ser harmónico com o perfume. Daí ter colocado a alga nori, que tem o aroma do mar, tal como o perfume Comporta, mete ambientes de praia”, descreveu este alquimista de ingredientes ao serviço da Food Events Network ao antecipar-se ao que iria servir.
Cada perfume tem uma história. E todo e qualquer prato procura contar algo. Cada dentada faz parelha com a gota que sai do frasco para o nosso nariz, numa viagem onde é contada uma nova narrativa.
“Pegamos nas notas e na recreação da história de cada perfume para tentar descrevê-la na comida e conseguir por num prato”, atesta Igor Scotelaro.
Debruça-se na composição. “Algas, apimentado afrodisíaco, sal, flor de sal e caramelo salgado. Para ficar mais harmónica com a história e com a ideia de conexão do perfume”, descreve.
Dá outro exemplo, e entra, precocemente, no menu. “No perfume OLHAR A TRANCOSO (o primeiro a ser apresentado), colocámos o Brasil, a lima, o cítrico e o tropical. Noutros, temos também sabores de madeira. A trufa, a questão dos amadeirados...”.
As funções do perfume. “Eu cheirar-me bem e os outros cheirarem-me bem”
Talheres ainda em baixo. Altura ideal para uma explicação prévia e sumária sobre notas de perfumes. São três: as de saída, de apresentação e as mais efémeras de todas, evaporam-se no máximo em 30 minutos; de coração, mais pesadas; e as de fundo, a essência do perfume, conhecidas como notas de base e sentidas durante horas.
Pedro Simões Dias, Scent Evangelist e fundador da Comporta Perfumes mete o nariz na conversa à qual é chamado. “Quando cheiramos, estamos a medir peso das moléculas. O nosso cérebro sabe que moléculas leves são fenómeno de felicidade. As moléculas pesadas são notas mais difíceis. As notas partem das leves para as pesadas. Daí os pratos evoluírem do peixe para carne”, explica.
“As notas leves de perfumes são mais rápidas a chegar ao cérebro e mais rápidas a desaparecer. As notas mais pesadas demoram mais a chegar, mas perduram mais tempo”. O desafio para este criativo aromático, “é criar perfumes complexos que tendem a durar, mas que não sejam incoerentes e não sejam sardinha com marmelada”, graceja.
O perfume tem duas funções. “Eu cheirar-me bem e os outros cheirarem-me bem. Eu cheirar-me bem funciona, mas se usar sempre o mesmo perfume não o vou cheirar após 30 minutos”, elucida. Por isso, Pedro Simões Pereira defende: “devemos ter três ou quatro perfumes para enganar o nosso cérebro. Mas isso não significa que não tenha o perfume assinatura para sacar, por exemplo, o crédito bancário ou para aquele encontro”, assinalou perante uma plateia atenta de 12 narizes femininos.
Continua. “Quando usamos sempre o mesmo perfume, não o cheiramos”, alerta. “Os perfumes não vivem sempre, vivem de acordo com o tempo de vida das moléculas”. Divaga ao sabor das preferências. “Os consumidores querem sentir sempre o mesmo, a todo o momento e igual ao outro. E isso só se consegue com as moléculas sintéticas. Hoje temos perfumes tendencialmente sintéticos e os perfumistas criam perfumes mais básicos”, reconhece.
Antes de entrar na gastronomia, ainda tempo para falar sobre a história da perfumaria. “Portugal não tem tradição nos perfumes. Os reis portugueses até ao século XIX tinham dois perfumes feitos em casa. No início do século XX, as farmácias faziam as águas-de-colónia. A perfumaria morreu com Salazar”, informa. “O carácter asceta e os impostos sobre álcool, a perfumaria não tinha vantagens em fazer. O Franco foi oposto. Os perfumes eram caríssimos e concedeu benefício fiscal até 1 litro. E daí a águas-de-colónia de 1 litro ...”, revela.
Praias tropicais e coqueiros na boca e no nariz
O espumante servido à mesa limpa os sentidos e prepara a viagem que se segue. Começa com OLHAR A TRANCOSO. Basta recuar umas linhas para se retomar o rumo.
“Tem notas marinhas. É inspirado numa praia tropical, com casas de madeira, palmeiras e coco”, conta Pedro Simões Dias.
No rótulo observa-se a descrição das notas. Água de coco (nota de saída), flor de Tiaré (nota de coração) e madeira (nota de fundo/base), por esta ordem, de cima para baixo. Na história do incenso há referências a dunas de areia branca e palmeiras plantadas nas margens de três rios (Rio da Barra, Itaquena e Irapororoca).
“A ideia era combinar o perfume com a sensação de frutas tropicais como a lima. As notas leves, são notas de felicidade e o cérebro reage mais facilmente”, antecipa.
Um ovo e casas de madeiras suspensas num lago salgado
Os aromas do perfume assumem o lugar do condutor e guiam o paladar até às profundezas dos sabores do prato. “É uma nuvem de ovo com trufa e presunto crocante”, anuncia Igor Scotelaro, numa curta e rápida aproximação à mesa dos comensais para explicar o que empratou, antes de regressar à cozinha, num open space.
O fundador da Comporta Perfumes, Pedro Simões Dias, destaca a importância do sistema olfativo. “Não ligamos ao cheiro. A perda de cheiro é o primeiro sintoma de algum problema, mas é raro os médicos perguntarem se temos cheiro”.
Centra-se no que tem à frente dos olhos, debaixo do nariz e próximo da boca. “Conjugar a trufa com a categoria olfativa da madeira. Ligar o perfume (PALAFÍTICO, notas de bergamota, chá branco e âmbar) ao prato é muito difícil”, reconhece.
Faz uma pausa e chama a atenção para um pormenor estético. “O frasco é a representação física de uma marca ou de um perfume. A ideia deste frasco, estes raios são os paus de Palafítico, como nas cadeiras. A estilização tem essa matriz de uma madeira gorda, húmida, que sofre agressões do sol, da maré alta e da maré baixa”, discorre pela história do próprio perfume (o ambiente dos passadiços e casas de madeira construídos por pescadores num lago salgado visível no Cais de Palafítico da Carrasqueira) e que serve de guião para o prato confecionado.
Muda de tema. De acordo com este cozinheiro de notas perfumadas, o “cheiro é o sentido que mais evolui nos animais”, sustenta. “Temos três milhões de neuro-sensores olfativos. 150 mil gustativos”, compara. “Mais de 90 por cento do nosso sabor é cheiro”, acentua.
“O sistema olfativo e talvez único simultaneamente instantâneo e ilimitado. Cheiramos tudo ao mesmo tempo. O sistema digestivo é instantâneo no tempo, mas é limitado. O sistema imunitário é tendencialmente ilimitado porque consegue controlar as infeções, mas não é instantâneo”, compara.
A transmissão de conhecimento vai de vento e poupa. “O olfato pode ser ensinado. Conseguimos treinar, explicar e compreender os cheiros”, atesta. “A mulher tem mais capacidades organoléticas”, destaca e prossegue. “Achamos que os cheiros são subjetivos? Não são. Se colocar o mesmo perfume vão sentir os mesmos cheiros. A dificuldade é encontrar os descritores certos. E explicar o que cheiro. Se uma cor tiver um pantone, todos vemos o mesmo. Se colocar um perfume com cheiro a coco a um esquimó, ele não conseguirá descrever porque nunca cheirou um coco”.
Da Amazónia ao pôr do sol na praia do Pego e os arrozais da Comporta
A discussão sobre cheiros domina a conversa do Scent Evangelist. Introduz o terceiro perfume (BRAVO), com notas de limão e artemísia (de saída), jasmim e figo (coração) e musgo de carvalho e cedro (de fundo/base) que serviu de inspiração para o terceiro prato: Ninhos da Amazónia composto por chevre, gel de pimento e abacate.
Introduz a pele (na base da história do BRAVO) pela qual borrifamos o perfume. “Havia a ideia errada, até há cinco anos, de que a pele das pessoas não alterava os cheiros dos perfumes. O nosso tecido de pele pode mesmo alterar o cheiro. O que muda o cheiro é a temperatura, o grau de gordura da pele. Corpos mais frios e peles mais secas, o perfume tem menos performance; uma pele mais seca come a gordura do perfume e deixa passar o álcool, que não tem cheiro. E em terceiro lugar, a nossa alimentação. Não tem a ver com a pele, mas aquilo que mandamos para fora da pele através da nossa respiração e como o nosso corpo trata aquilo que comemos que podem dar cheiros que podem reagir com as moléculas dos perfumes”, pormenoriza.
A narrativa contada para os olhos verem e a boca provar começa na história que inspira o líquido. Pedro Simões pede para este ser borrifado em palitos de papel. Para o snifarmos.
Segue-se o OCASO e a história de uma caminhada, de pé descalços, ao final do dia, entre a praia do Pego e a Comporta. A marcha reflete-se no prato de sabores picantes: Spicy salmão, queijo creme e cebolinho, que arrasta do frasco os odores carnais dos Extratos de CO2 de Rosa pimenta do Perú, Tiaré e feno verde.
A noite já caiu e é altura do SELA. A pêra, a Rosa da Bulgária, jasmim e patchouly e, por fim, o sândalo australiano, recriam o ambiente mágico dos arrozais e Dunas na Comporta.
“É uma panqueca de aveia com maçã em emulsão de canela, cardamomo, gengibre e anis”, enumera o chef antes de elevarmos o garfo aos lábios.
O bouquet que mais não é que um buffet de cheiros e sabores
Igor assalta as últimas atenções à mesa. O prato, sexto e último, já não acompanha nenhum frasco. Causa um uau ao ponto de abrir as bocas de espanto devido ao arranjo que mais parece um bouquet de noiva.
“É uma brincadeira com os aromas dos perfumes. Juntamos as bolinhas para ser uma harmonização com os aromas do perfume, anis, pimenta com chocolate, Porto com laranja, caramelo salgado e coco”.
À descrição segue-se um cliché ao qual não podemos escapar. O caleidoscópio de sabores é uma granada que nos rebenta entre dentes e desperta tudo. Cheiro. Palato. Aciona as memórias olfativas e das pupilas gustativas. Está lá tudo.
Estava terminada a festa de casamento entre perfumes e gastronomia, mais de duas horas de uma aventura multissensorial que desconstrui os estereótipos existentes do que deve ser a relação com aquilo que comemos. Uma verdadeira celebração de prova (arte de saborear) e inalação de aromas numa elevação estratosférica de complexidade dos sentidos. Olfato e paladar.
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