“Procurei falar de Amália Rodrigues numa perspetiva que tivesse a ver com as emoções espoletadas pela música que ela cantou, e aliar isso à cura através da música”, disse à agência Lusa a compositora Teresa Gentil.

Celebrando o centenário do nascimento da fadista e poeta, “são esperados os cristalizados discursos sobre ‘a sua genialidade’, que era inata, ‘que não sabia nada disto…'”, e esta instalação, que inclui outras atividades, é “um pausa reflexiva, afirmando que é uma intérprete absolutamente incrível”, afirmou Teresa Gentil.

Houve, porém, “um conjunto de condições que fez com que ela [Amália] tivesse sido tão extraordinária”, prosseguiu a compositora. “A maioria delas dependem dela própria: o ter começado a cantar muito nova, e ter uma escola de fado antes de se tornar profissional, e depois a prática diária ‘perfomativa’ nos retiros de fado, como outros fadistas. Mas ela destacou-se pelas suas qualidades, nomeadamente vocais, também pelo gosto estético, tendo sido elevada à categoria de diva”.

A escolha do título, “Pharmácia Amália”, foi “no sentido de haver uma série de exemplos ou temas musicais que nos ajudam a ficar num determinado estado emocional e, consequentemente, físico e psicológico, mas que ajudam a nossa saúde, [têm propriedade] de curar”, explicou.

“Há temas musicais que nos ajudam a ficar num determinado estado emocional ou físico, emoções, mais ou menos negativas, que podemos tratar ou potenciar através da música”, prosseguiu.

Apontando Amália Rodrigues (1920-1999) como “uma figura perplexa” e “fundamental” num “conjunto de personalidades que moldaram o país tal como ele é hoje”, Teresa Gentil defendeu a “pertinência” desta instalação, “pelo momento histórico que vivemos”.

“Estamos a falar de nacionalismos, radicalização de esquerdas e direitas, o mundo é diferente do que era há três, quatro anos”, e continuou: “É pertinente tomar o pulso à situação atual e Amália é uma figura pertinente nesta análise. Foi uma pessoa que passou por dois regimes, foi até acusada de colaborar com a ditadura e, na democracia, [após o 25 de Abril de 1974] foi condecorada pelo Estado, e podemos observar as ‘nuances’ da personalidade artística dela, ou seja, cantou o regime [do Estado Novo], mas a partir da década de 1960 cantou também os poetas opositores ao regime e, portanto, merece uma reflexão”.

“As pessoas não são branco ou negro”, acrescentou. “Uma pessoa é um todo e passa por diversas fases. Na realidade, Amália era uma pessoa muito livre, que tinha cabeça para pensar, sabia exatamente o que achava sobre as coisas, que não queria expressar as suas opiniões políticas, até para se salvaguardar, que ajudava quem precisasse. Ela dizia que só os burgueses e intelectuais podiam pensar em revoluções, e o resto das pessoas queria era paz, sossego, uma vida honrada e em segurança”.

Amália “tinha uma profunda admiração por Oliveira Salazar como uma figura paternal, que ia salvar a Pátria, devido ao ambiente conturbado que viveu, mas é, de facto, uma figura muito complexa, e por isso muito interessante”.

Teresa Gentil, que está a fazer um doutoramento sobre Amália Rodrigues, na Universidade Nova de Lisboa, sob orientação da etnomusicóloga Salwa Castel-Branco, defendeu que, para si, “os documentos que Amália deixou foram as canções que foi gravando e que refletem essa personalidade complexa, que tinha muitas perspetivas sobre as coisas”.

Quando lhe foi proposto o projeto pelo CCB, Teresa Gentil contou: “Não imaginava uma exposição de painéis, mas antes uma instalação, e à volta dela vários jogos, desenhei um percurso que termina com um poemário, que é uma farmácia de poemas, onde se escolhem poema como mezinhas”,

Faz parte também da instalação três “cabinas terapêuticas”. “Cada uma com um tema para uma determinada patologia, por exemplo o stress, e as pessoas depois de ouvirem o tema, saem livres de stress e com outra disposição”.

Em cada uma destas cabinas há um texto de autoria de Teresa Gentil, explicando o fado escolhido, “como se fosse uma bula”.

Os temas selecionados são todos compostos por Alain Oulman e fazem parte do álbum “Com que Voz” (1970), que apontou como “um álbum seminal”. São eles “Formiga Bossa Nova”, um poema de Alexandre O’Neil, “Maria Lisboa”, poema de David Mourão-Ferreira, fado no qual Gentil salientou que “Amália canta parecendo uma varina rápida e decidida”, e como pronúncia as palavras, “por exemplo, quando diz ‘gata’ parece que se está a espreguiçar”.

O terceiro poema, de José Carlos Ary dos Santos, é “Meu Limão de Amargura”, “para desgostos de amor e problemas de coração, que tem a ver com a perda”, referiu, acrescentando: “Quando estamos tristes, procuramos canções mais tristes porque assim não nos sentimos tão sós, pois há alguém a partilhar essa dor”.

As visitas à instalação são dinamizadas por jovens atores que vestem personagens, entre eles um farmacêutico, e uma apresentadora da Rádio Rodrigues, que “aborda as questões de género e fala do Estado Novo”.

Outras iniciativas são “Chá na Pharmácia — Conversas com música”, registando o gosto de Amália por chá e nas quias participarão Teresa Gentil e Frederico Santiago, que tem recuperado a obra discográfica da fadista; a “Oficina de História Amália”, com Bernardo Salgado, que “[nos] conduz pela história de Portugal”, e dois espetáculos musicais.

A estas juntam-se ainda “Assim deveria eu ser”, a partir de “Formiga Bossa Nova”, uma encomenda do CCB/Fábrica das Artes a Catarina Moura, com as vozes e instrumentos de Celina da Piedade, Sara Vidal e Ricardo Silva, e ilustrações e animação de Catia Vidinhas, e “Sou Filha das Ervas — Cantigas para o Coração”, um espetáculo pelo e grupo A Monda Teatro-Música, criado a partir de canções originais de Amélia Muge, com poemas escritos por Amália Rodrigues.

“Pharmácia Amália” está no espaço Fábrica das Artes do CCB a partir de quinta-feira até 3 de abril.

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