Nos últimos anos escrevi várias vezes sobre sardinhas e os melhores sítios para as comer durante os Santos Populares. As conversas com pescadores, peixeiras e com os donos mais honestos de restaurantes e grelhas acabavam invariavelmente da mesma maneira. “Ainda não está boa. Só lá mais para julho ou agosto”. Encolhiam os ombros como quem assume que se vai vender e comer na mesma e eu saía de boca aberta a perguntar-me “então por que raio continuamos com isto?”

Por “isto” entenda-se comer sardinha assada durante o mês de junho, quando o único cheiro a fumo que se traz para casa, depois de uma noite longa, tem travos de peixe e de gordura. Que a época da pesca da sardinha é de maio a outubro está claro. Não há ilegalidade nenhuma em comê-la nesta altura. Mas se ela não está assim tão gorda, assim tão boa, assim tão a pingar no pão, será uma boa decisão? De onde vem o impulso incontrolável?

Claro, a tradição

As forças culturais são certamente irreprimíveis no assunto 'sardinhas'. Liguei a Virgílio Nogueiro Gomes, gastrónomo e investigador compulsivo sobre gastronomia e cultura, na esperança de respostas. Assim que me atendeu o telefone e lhe disse que estava a escrever sobre sardinhas respondeu-me “já comi umas boas em Setúbal”. Ótimas notícias para ele, péssimas para mim, que por instantes vi o motor destas perguntas gripar à minha frente. Concordou depois que foram a exceção, que dias depois estavam magras e sem graça em Lisboa.

Logo a seguir sublinhou a sua idade para argumentar que já houve tempos em que se comiam boas sardinhas na época dos Santos Populares e até em maio. A sua memória vai ainda mais longe, ao livro Culinária Portuguesa, escrito por Olleboma em 1936. Numa tabela sobre os peixes portugueses e a sua época, a sardinha aparece no ponto de junho a outubro, muito a tempo do Santo António, o primeiro santo. Na época da publicação do livro já se comiam sardinhas nas festas em Lisboa e só uns anos mais tarde, na década de 1940, é que a moda chegou ao São João do Porto, conta Hélder Pacheco, professor de história social e cultural do Porto, numa entrevista à Visão

Para Pedro Bastos, da empresa de distribuição de peixe e marisco Nutrifresco, as oscilações na qualidade das sardinhas ao longo dos anos e entre os seus meses de pesca não são incongruências. Mais, avisa-me ao telefone: é preciso perceber o que é uma “sardinha boa”. “Se falar com alguém aqui do Algarve, dizem-lhe que já há sardinha boa. Apreciamos sardinhas mais pequenas e que engordam mais cedo. Na costa norte, cresce mais, mas engorda mais tarde”, explica.

O Porto reinventou o São João para uma festa à moda da pandemia
créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

Juntemos-lhe um pouco de ciência

Pedro Bastos trabalha de perto com pescadores e restaurantes para criar um circuito de pesca e consumo mais sustentável. Quando começou a trabalhar com sardinha habitou-se a ter sardinhas gordas ou não com diferença de dois dias. “Os cardumes não estão todos em igualdade de circunstâncias. Há dias sentei-me num restaurante e as sardinhas do dia estavam péssimas, mas o senhor ainda tinha umas do dia anterior, foi assá-las e eram realmente boas”, conta.

Está tudo no ciclo biológico da sardinha, que não é igual para todos os cardumes. Se em junho depende da sorte apanhar exemplares gordos a sujar o pão como devem, de julho em diante nem tanto: a sardinha atinge o seu apogeu para desovar depois, no final do tempo quente. A partir da primavera a vida da sardinha é ganhar gordura, mas enquanto as águas estão muito frias, vai gastando aquela camada que tempera o pão para se manter quente e não a acumula. A diferença de um grau de temperatura das águas tem importância, afirma Pedro Bastos. Invernos muito frios podem retardar o crescimento destes bichos.

Há outros fatores, claro: as correntes e a disponibilidade e fitoplancton (é por causa da presença deste alimento que os cardumes gostam da costa portuguesa) ou até as alterações nas cadeias tróficas, isto é, a presença de predadores. “Um atum de 200 quilos come cerca de 10 a 12 quilos de sardinhas por dia”, diz Pedro Bastos. É um rombo na disponibilidade da sardinha e na sua capacidade de se desenvolver.

A sobrepesca é outra ameaça e nos últimos anos, mesmo antes da interrupção das festas populares por causa da Covid-19, houve quem perspetivasse um futuro em que os santos não cheirariam a sardinha. 2015 foi um dos anos preocupantes e o preço triplicou face ao preço médio até 2011. Em lota, chegaram a custar mais de 2€ por quilo e nos assadores de cidade outro tanto por unidade. Tenho na memória uma reportagem de telejornal em que confrontavam um homem atrás do assador com os 2€ que pedia por uma sardinha numa fatia de pão. Ele reagiu indignado, “os outros podem ser mais baratos mas têm as sardinhas congeladas desde o tempo do D. Afonso Henriques”.

Segundo o Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES), em 2015 os stocks ibéricos de sardinha estavam reduzidos a um décimo do que eram nos anos 1980. Em 2019, um polémico corte nas quotas de pesca da sardinha pelo governo português surtiu os seus efeitos e no mesmo ano os cardumes deram sinais de recuperação. Os últimos anos mostram que a disponibilidade destes peixes na costa atlântica pode ser restaurada rapidamente, já que se reproduzem massivamente. As fêmeas geram cerca de 20 mil ovos por desova. Hoje o preço está mais próximo da vocação popular deste peixe, que, afinal, é o que nos traz aqui.

Sardinhas com todos

“A abundância deste peixe, a extensa linha de costa e a tradicional afinidade com as artes de pesca criaram em Portugal condições favoráveis ao consumo generalizado deste alimento”, diz o professor de História das Pescas e Economia do Mar da Universidade de Coimbra Álvaro Garrido, numa entrevista à National Geographic.

A isto pode acrescentar-se a tendência histórica e cultural para que peixes grandes se sirvam às mesas ricas da aristocracia e da nobreza, e os pequenos fiquem para os trabalhadores. Uma série de provérbios populares ajudam a compor o quadro em que sardinha é sinónimo de pobreza. “Comer sardinha e arrotar pescada”, “Da garganta para baixo, tanto sabe a galinha como a sardinha” ou “Na tua casa não tens sardinha e na alheia pedes galinha”, cita Virgílio Gomes.

Numa alimentação pobre, pouco variada e com carne controlada, o peixe pequeno, as sardinhas, seriam bastante presentes e quem nunca se achou na situação de ouvir uma história de pobreza em que uma só sardinha alimentava três ou quatro?

Haverá, parece, poucos ingredientes tão populares — tão pop — quanto a sardinha. Poucos também com uma certa vocação comunal. No livro "Cozinha Tradicional Portuguesa", uma compilação de receitas de todo o país feita por Maria de Lourdes Modesto, aparece uma curiosa receita no capítulo dedicado à Estremadura: sardinhada. Não são apenas sardinhas assadas e a lista dos ingredientes é clara: “6 a 10 sardinhas por pessoa (conforme o tamanho da sardinha e o apetite dos convivas)”, além das batatas cozidas e da salada de pimentos assados. A sardinhada fica assim uma receita fixada, composta, bar aberto de festa para quantos mais melhor.

O prato aplica-se perfeitamente à ocasião, portanto. Como se não bastasse todo este alinhamento de fatores (em que só falta o facto dispensável, parece, da sardinha estar realmente gorda), comer sardinhas tornou-se um evento no ciclo do ano. Como um equinócio, sinaliza a chegada do tempo quente, do sol e das férias. Assinalamos “as primeiras que comemos este ano”, como faremos com o cozido daqui a uns meses, e marcamos a data das primeiras que nos chegaram realmente boas, como fossem sinal de que o ano já não volta para trás e que a partir daí será sempre a crescer em alegria até ao final do verão.

Se é para iniciar formalmente esse tempo de liberdade, pouco queremos saber se elas são gordas, se as brasas estavam em chamas ou se o cozinheiro cumpriu a sua única missão: não estragar. Reconhecemos de antemão que encontrar uma travessa com meia dúzia de sardinhas dignas em noite de Santo António é impossível. Afinal, o homem da grelha está na calçada há horas a suar, a ouvir gente gritar e com uma banda de tributo a Quim Barreiros a tocar ao fundo. Quem acredita que o amor é um ingrediente tem de concordar que também os sentimentos menos nobres deste homem vão temperar o peixe. Mas ele que se despache com as sardinhas para pormos para trás das costas, oficialmente, o tempo frio.