A MORTE CAI-ME TÃO BEM

 Abri os olhos, e ali estava ele, por cima de mim, a escassos centímetros da minha cara. Um estranho olhando-me com tanta ternura que estava convencida de que eu iria morrer. Acariciava-me a cabeça, o cabelo, meu Deus, ele era um bonitão. Teria gostado que fosse alguém que me amasse, em vez de ser alguém cujas primeiras palavras foram:

— Teve uma hemorragia cerebral.

Ficou ali, acariciando-me gentilmente a cabeça, e eu deixei-me ficar, sabendo que ninguém me amava naquele quarto. Sabia-o cá por dentro – não precisava de me ver imobilizada, a sofrer de uma hemorragia cerebral, para me aperceber de que a minha vida se transformara em algo de ridículo. Estávamos no final de Setembro de 2001. Estava nas urgências do California Pacific Medical Center, em São Francisco. Perguntei ao Dr. Bonitão:

— Irei perder a fala?

Ele disse que era possível.

Eu queria um telefone. Precisava de ligar à minha mãe e à minha irmã. Elas tinham de o saber por mim, enquanto ainda podia falar. O doutor apertou-me a mão. Esforçava-se ao máximo, percebi, para me preencher com aquele amor especial de quem seguiu a sua vocação, cumprindo um destino, apenas para momentos como este. Aprendi muito com ele.

Primeiro telefonei à minha irmã, a Kelly. Ela foi igual a si mesma: a pessoa mais generosa que eu conheci. Mais bondosa para com os outros do que com ela própria, ingénua na sua gentileza. Depois telefonei à minha mãe, uma conversa bem mais difícil, pois não sabia se ela gostava muito de mim. Ali estava eu a morrer e, ao mesmo tempo, a sentir-me insegura. Ela cuidava do seu jardim no topo de uma montanha da Pensilvânia. Ficou devastada.

É importante ter em consideração que a Dot fica devastada até por causa de anúncios de rádio, por isso esperei, porque, bem, porque eu sabia que ela depressa se iria recompor. Apesar da distância, ela e o meu pai vieram ter comigo em menos de vinte e quatro horas. Correu pelo hospital ainda de calções, coberta de lama do jardim, com as unhas sujas e o medo estampado no rosto. Anos de incerteza e de incompreensão desapareceram com um olhar. Enquanto eu estava ali, sabendo que podia morrer a qualquer instante, acariciou-me a cara com a sua mão suja, e de súbito percebi que me amava. Por completo.

O meu pai manteve-se a seu lado, como um touro pronto a investir.

Telefonei à minha melhor amiga de mais de vinte anos, a Mimi, e disse-lhe o que sempre se diz quando as novidades são excepcionalmente boas ou más:

— É melhor sentares-te – ouvi-a a respirar profundamente. – Talvez morra, e tu és a única pessoa a quem posso contar a verdade, porque alguém tem de tomar conta de todos e não serei eu. Sofri uma hemorragia cerebral. Eles não sabem porquê.

— Oh, merda.

— Há aqui um doutor muito giro, mas talvez não consiga namoriscá-lo, é pena.

Ela tentava não chorar enquanto murmurava:

— Oh, querida, vou apanhar o próximo avião – eu já sabia. Então, voltou o silêncio. Ecoava dos ladrilhos da sala de urgência e golpeava o meu coração, agora partido. Lembro-me de sentir algo entre o susto e o fascínio, por ninguém aparecer a gritar, «rápido, rápido!», como fazem na TV.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Havia uma espantosa falta de urgência e movimento. O doutor – sim, aquele – disse-me que estava a chegar uma ambulância para me transportar para outro hospital, o Moffitt-Long, muito conhecido na área neurológica, e que iriam ter um especial cuidado comigo.

Meu Deus, como isso me fez sentir mal. Há momentos em que ser objecto de especial cuidado nos deprime. Não era como ter lugares especiais num jogo dos Lakers ou mesa à janela no teu restaurante preferido. Privilégios. Fama. Merda.

De súbito, senti que tudo se movia de maneira estranha, como se o filme da minha vida estivesse a ser passado ao contrário. A grande velocidade. Senti-me a cair, e depois como se algo me arrebatasse, o corpo e a alma, um arrebatamento tremendo, luminoso, que me levantava sem que me puxasse para fora do meu corpo e me transferisse para um outro, familiar e luminoso… sábio?

A luz era tão luminosa. Era tão… mística. Queria conhecê-la. Queria mergulhar nela. Aqueles rostos não eram apenas familiares. Eram transcendentes. Alguns não tinham partido muito. Preocupei-me com alguns deles até ao fim das suas vidas. Eram os meus amigos mais íntimos, a Caroline, o Tony Duquette, o Manuel. Senti tanto a falta deles. Havia sentido tanto frio na sala de onde eu vinha. Eles eram tão calorosos, tão felizes, tão acolhedores. Sem que proferissem uma palavra, percebi tudo o que me diziam, que estávamos seguros e que não devíamos ter medo; tudo porque estamos rodeados de amor. Que, na verdade, nós somos amor.

De súbito, senti-me como se uma mula me tivesse dado um coice no peito, o impacto foi tão duro e aterrador que despertei e acordei novamente nas urgências. Fizera uma escolha. Soltei um arquejo, como se tivesse ficado muito tempo debaixo de água. Sentei-me, a luz cegava-me. Via apenas o Dr. Bonitão, em pé, observando-me.

Precisava urgentemente de urinar, tentei levantar-me da maca, mas estava demasiado drogada, como uma Alice no País das Maravilhas, um país de aço inoxidável.

— Precisa de alguma coisa? – perguntou o doutor.

— Uma casa de banho.

— Além.

Deslizei por ali, por entre as frias macas, senti que flutuava até à casa de banho, que urinei por muito tempo, regressando devagar ao sítio onde o doutor me levantara, como a pena que eu agora era.


Nos últimos anos, no final da década de 90, persegui um amor que eu não tinha. Um amor que pensava pertencer-me, mas afinal não. Abandonei Hollywood e mudei-me para o Norte da Califórnia – persegui-o literal, metafórica e espiritualmente: tentando ser algo mais, algo que me fizesse entender como poderia ser melhor na vida, melhor no amor e em amar. Assistia à minha própria vida, e de repente ela desapareceu.

Sem esperar, numa bonita e agradável tarde, todas as perguntas foram respondidas, uma resposta mais do que suficiente. Não houve névoa, ou bruma, ou simulação: todos os esforços falharam. Os factos eram claros: eu não era amada nem me queria; não valia nada.

No meu desejo, belo e respeitável, de ser algo mais do que sempre fui, algo que pensava poder ser mais real, falhei. Fiz tudo o que pude imaginar, mas nada era o correcto, nada era a acção adequada. À época, julgava que se continuasse a fazer o que pensava ser espiritualmente correcto e elegante, o que mais desejava iria abrir-se para mim. Mas não. Eu fizera más escolhas, só isso. Escolhas mal informadas. Escolhas espiritualmente pobres. Abandonei o meu ser interior para ser «mais». Julguei que eu não era suficiente. Não conseguia eliminar esse pensamento.

Ignorava que aquele não era o lugar correcto para mim ou que me podia ir embora, porque, como é hábito, queria ser boa nisto. Queria fazer o que dizia. Mesmo que tivesse errado, iria aguentar o erro, iria resolvê-lo.

Até a esta época, a este momento, quando já chegara longe e ambicionara muito, eu aceitava o que não deveria aceitar, fazia tratos comigo mesma, num esforço de perceber porque é que desistira de tanto em troca de tão pouco. Porque eu era uma mulher bem-sucedida e poucas pessoas me valorizavam pelos meus feitos, pelo que eu me tinha transformado. Tudo conduziu a que se tornasse mais fácil abandoná-lo. Afinal, o que era eu? Uma actriz? Uma angariadora de fundos? Eu era importante? Era a minha avaliação correcta? Será que eu não valia o mesmo que um homem com os mesmos êxitos?

Cresci com um pai e uma mãe que se amavam mais do que amavam os filhos. Pais que encontrávamos a trocar carícias no sofá quando regressávamos das nossas brincadeiras. Cresci com pais que continuavam a dançar no jardim, cinquenta anos depois de casarem, como se estivessem sozinhos. Eu nem sabia que havia pessoas que não amavam os cônjuges. Acreditava que até os divorciados lutavam contra essas grandes decisões. Afundava-me na areia, perdendo todos os pontos de referência. Posso dizer-vos isto: abandonei tudo por algo e falheifalhei naquilo que eu tinha visto crescer, o verdadeiro amor, o que importa; quando isso aconteceu, já nada sobrava em mim para me encontrar.

Carregada com este novo entendimento, este falhanço, caminhei pelo corredor até à sala onde estava a TV, passei pelos sofás e dirigi-me à janela, querendo ver o jardim onde enterrara as ecografias dos meus filhos abortados, debaixo de umas jovens magnólias (que iriam florescer sem odor), as quais pareciam crescer muito bem. Sem aviso, foi como se o próprio Zeus tivesse atirado com um raio directamente para a parte direita da minha cabeça. Levantei voo, voei por cima do sofá, embatendo na pequena mesa da sala, telefone, tablets, canetas, papéis, comandos, almofadas, os próprios sofás, tudo rodopiou quando a minha cabeça bateu no chão, sofrendo o impacto da minha queda.

Assombrada pelas memórias, ali fiquei durante muito tempo, pareceu-me, o próprio tempo a flutuar, enquanto eu olhava, fascinada, para as fibras do tapete, a falta de cor da sala e, no fim de contas, grata pela minha solidão. Julgo que adormeci ou me apaguei por completo.

Felizmente, havia um grupo de três jovens amas irlandesas que viviam em São Francisco e que me ajudavam, por turnos, com o meu filho, Roan, que eu adoptara recentemente e que era então muito pequeno, apenas um bebé. Embora num delírio de felicidade por finalmente ser mãe, depois de ter abortado três vezes aos cinco meses e meio, a verdade é que já era demasiado velha, já passava dos quarenta, e é certo que pouco sabia de parentalidade.

Nos dias seguintes, andei sem destino. A dado momento, entrei no meu descapotável e tentei conduzir até ao hospital. Não sabia onde estava, dei por mim parada num sinal de stop, o meu pé direito todo entorpecido, o torpor subia pela perna; enquanto via as árvores e ouvia as palavras que saíam do rádio, pensei, «Ah, fui envenenada com antraz», e senti as lágrimas a rolar-me pela cara, tinham passado duas semanas depois do 11 de Setembro. Felizmente, alguém parou a meu lado e ofereceu-me ajuda, conduzindo-me a casa e levando-me para dentro da moradia. Limitei-me a sentar-me na mesa de jantar e a dizer à nossa ama que sentia uma terrível dor de cabeça. Ela disse-me para tomar aspirina, o que provavelmente me salvou a vida.

Na manhã seguinte, a minha temperatura corporal começou a descer. Procurei conforto no jardim e tentei aquecer-me ao sol. Não conseguia. Subi ao andar de cima e deitei-me no chão aquecido da casa de banho. O telefone tocou; alguém passou por cima de mim. Eu segurava na cabeça, no sítio onde julgava que me doía, falando para mim mesma enquanto chorava e gemia.

Felizmente, o telefone estava em alta-voz; era a Mimi. Tentei gritar, mas saiu uma foz fraca: «Mimi, ajuda-me.»

Ela insistiu que se chamasse uma ambulância.

Em vez disso, telefonaram para a minha ginecologista; suponho que é o que algumas pessoas pensam quando algo está errado com as mulheres: «Devem ser as suas partes femininas.»

A minha ginecologista ouviu-me gemer e disse para, enquanto ela estava ao telefone, me medirem a tensão arterial. Tínhamos um medidor de tensão e um desfibrilhador, e toda a gente em minha casa, incluindo funcionários e crianças, recebe treino de primeiros socorros regularmente, mantendo-se actualizada. As minhas tensões estavam mesmo muito altas, ambos os números bastante acima da média. A doutora disse que tínhamos apenas uns minutos para me levarem para o hospital, ao fundo da rua, deixando claro que ela ficaria à porta, à espera. Foi ela a médica que me acompanhou durante os abortos e conhecia bem a fragilidade da minha situação.

Fui enfiada na nossa carrinha, as pernas já não obedeciam ao meu pensamento. Encostei-me à porta do passageiro, no lugar da frente. Quando chegámos ao California Pacific Medical Center, um auxiliar corpulento abriu a porta e eu caí para trás, para os seus braços quentes e fortes, e desmaiei. Eu consegui. Agora deixava-me ir. De alguma maneira, aguentei-me até cair em braços seguros.

Apressaram-se a trazerem-me para dentro e deitaram-me numa maca. De imediato, puseram-me numa máquina de tomografia, o ruído era tanto que parecia que alguém estava a martelar a minha cabeça de fora para dentro.

A Beleza de Viver Duas Vezes
créditos: Guerra e Paz

Quando acordei pela primeira vez, o Dr. Bonitão disse-me que a ambulância chegara.

Têm tudo o que precisa nesse hospital – disse-me, com um sorriso encorajador.

Dois jovens pegaram-me e levaram-me para outra maca, onde voltei a desmaiar. Quando me estavam a pôr dentro da ambulância, a roda da maca bateu na carroçaria, o que me despertou. Abri os olhos e vi, por entre uma brilhante luz do Sol, um paramédico rodeado por uma luz branca, eu não tinha a certeza se ainda estava viva ou se voltara a desmaiar.

Acordei na unidade de cuidados intensivos do Moffitt-Long. Não havia quartos, apenas uma unidade central de enfermagem, rodeada por várias camas, dispostas em círculo, todas em cima de uma balança, para nos medirem o peso e a massa corporal, com cortinas à nossa volta. Muitas máquinas e tubos – parecia um filme de Fritz Lang. Os sons e as luzes dessas máquinas continuam comigo. Vêm acompanhados da memória de televisões penduradas nos tectos, passando as intermináveis imagens dos aviões a embater nas Torres Gémeas e no Pentágono. Compreendi.

No dia seguinte, acordei quando um jovem auxiliar me levava pelo corredor. Perguntei-lhe para onde me estava a levar.

— Para a mesa das operações.

— Para quê? – entrei ainda mais em pânico; este pânico ameaçava tornar-se, cada vez mais, um estado permanente.

— Para uma neurocirurgia exploratória.

— Mas ninguém me disse nada.

— Oh, sim, mas assinaram os papéis, não se preocupe.

Disse-lhe que parasse um momento; precisava de um segundo para absorver tudo aquilo. Mas ele respondeu-me que não tínhamos tempo e que poderíamos perder a vaga. Não consegui fazê-lo parar ou chamar o doutor, para que de alguma maneira me ajudasse. Então fiz o que pude: peguei em mim e levantei-me da maca, em andamento. O que me levou até à última centelha de força, de poder, que ainda tinha.

Enfermeiros e outro pessoal hospitalar vieram a correr.

— Ela não quer ir para a sala de operações anunciou o auxiliar.

Uma enfermeira aproximou-se e perguntou-me porquê, e eu respondi-lhe que me estavam a levar para uma neurocirurgia sem o meu conhecimento ou consentimento, sem me terem falado das consequências. A enfermeira disse-me que iria chamar o doutor.

Ele veio a correr, com a bata branca a esvoaçar, dizendo-me que me deitasse e fizesse o que me mandavam. Bela apresentação, devo dizer. Ele informou-nos de que alguém assinara todos os papéis e que nós já estávamos atrasados. Mostrou-nos com orgulho um fax da revista People e disse que acabara de falar com eles, que os informara da minha situação e que sabia exactamente o que fazer. (Na verdade, deu-lhes um diagnóstico incorrecto, que noticiaram.) Segurava aquilo como se fosse um talismã, como se por estar escrito fosse verdade. O que, por acaso, não era. Oh, se ao menos ele estivesse certo.

Eu olhei para a enfermeira, que me olhou com igual incredulidade, como se dissesse: Este médico é um grandessíssimo imbecil. Percebi que, com hemorragia cerebral ou sem ela, esta era uma confusão com a qual teria de lidar – de imediato.

De bata, ainda sentada na maca, sem desistir, virei-me para o médico e disse-lhe:

— Está despedido.

— O quê? Não me pode despedir.

— Doutor, parece-me que ela acabou de o fazer – retorquiu a enfermeira, que deu ordens ao auxiliar para me levar de volta ao quarto.

Aquela enfermeira perspicaz salvou-me a vida. Era uma mulher de cinquenta e poucos anos, bonita, que mais tarde percebi não ser diferente da pessoa que eu me iria tornar, porque ela teve a coragem de ser forte e verdadeira para mim. Ela fez o seu trabalho com a autoridade de quem sabe ser dela a decisão a tomar, ela defendeu a sua dignidade.

Agora, toda a minha família corria para dentro da unidade de neurologia: a minha mãe, o meu pai, a minha irmã, os meus irmãos, Mike e Patrick. Estavam chocados e confusos, tinham sido convencidos de que eu «dormia e não podia ser perturbada», e não que consentira uma neurocirurgia exploratória sem que ninguém tivesse sido consultado.

O meu quarto ficou aberto a todos. Os ânimos estavam exaltados. O recém-despedido doutor continuava a segurar o fax da People. O meu irmão mais velho, Mike, queria bater-lhe; Kelly, que era médica, queria factos médicos, os amigos que entretanto chegaram agiam como sentinelas, mantendo as pessoas erradas fora e permitindo a entrada das certas.

A minha amiga Donna Chavous também se encontrava ali. No passado, estivemos as duas envolvidas em todo o tipo de acontecimentos diabólicos, incluindo o dia em que me tornei famosa. Saíamos de uma sessão de cinema e todas as pessoas que lá estavam permaneciam à entrada e não se iam embora. Pouco a pouco, percebemos que olhavam para nós. Chavous sussurrou-me, «Corre», e nós corremos; corremos como ladras na noite, e, sim, todos eles correram atrás de nós. Corremos e corremos por entre ruas cheias de carros, entrámos num restaurante, fomos para a sua cozinha, escondemo-nos debaixo da mesa do cozinheiro. O dono, tendo fechado a porta atrás de nós, perguntou-nos o que podia fazer para nos ajudar. Chavous pediu tequila, eu pedi um martini. O dono, sabendo melhor do que nós o que se estava a passar, perguntou-nos onde tínhamos o carro, mandou um criado buscá-lo e ajudou-nos a fugir à agitação e a chegar a casa. Eu e a Chavous praticávamos artes marciais juntas, corríamos uma contra a outra com os nossos carros, enquanto falávamos por alta-voz, chegávamos tarde ao dojo e fazíamos flexões, apoiadas nos nossos punhos, para nos deixarem entrar. Sim, sempre a puxar, sempre a divertir-nos à grande. Nós sempre cuidámos uma da outra.

Agora ela ficava ali o tempo todo, noites e dias, dormindo numa cadeira junto à janela. Só para ter a certeza.

A minha mãe estava determinada a que ninguém… bem, a que ninguém, como ela dizia, se «metesse com o raio da miúda». Estava farta. Aquela «merda tinha ido demasiado longe». Estava assustada. Assustada ao ponto de ficar calma, assustada para lá da raiva, para lá de tudo. De lábios cerrados, feroz, imóvel, forte e fraca. Ela montou guarda e mais ninguém, mas mesmo ninguém, me levaria sem que eu soubesse e concordasse com tudo.

Perguntei ao médico, o tal despedido e esvoaçante, que me explicasse os passos da neurocirurgia exploratória que me propunha. Ele estava ofendidíssimo, ainda agitava o fax, os seus quinze minutos. Ele sentia que não tínhamos tempo e que, na verdade, eu não precisava de saber. Eu sentia que precisava mesmo. Eu sentia que merecia saber o que é que esta cirurgia podia significar para mim. Imagine-se.

– Rapa-me a cabeça e depois corta a primeira camada de pele? Enrola-a ou remove-a? E depois tira o osso? Onde é que o põe? Estamos num território dado a terramotos, vai pô-lo numa bandeja ou numa caixa esterilizada? E depois? Quanto da minha cabeça vai remover? Irá cortar os nervos?

Sempre gostei de ser exaustiva nas minhas perguntas. Fi-las num pânico lento e pensado, que para mim parecia bastante lógico. Ele estava impaciente, irritado, via as minhas perguntas, assim parecia, como trivialidades, uma perda de tempo. Eu pensava que era razoável perder dez minutos para perceber como estaria o meu cérebro antes e durante a operação. Ele pensava que eu era chata. Eu percebi que despedira o homem indicado.

O hospital enviou-me depois uma equipa de homens extraordinários, uma equipa de médicos investigadores da unidade de neurologia, que falaram comigo sobre todas as minhas dúvidas. Com muita calma, disseram-me que havia um outro neurocirurgião, mas que naquele dia não estava no hospital. Perguntei-lhe se lhe podiam telefonar. Eles fizeram-no. O mais graduado do grupo, o Dr. Michael Lawton, explicou-me que escolher aquele neurocirurgião implicaria esperar mais um dia, pois ele ainda teria de apanhar um avião. Tentei que os médicos me falassem de hipóteses, de percentagens. Que poderia acontecer? Quão pior ficaria a hemorragia se esperasse vinte e quatro horas? Quais seriam os danos? Poderia morrer ou perder capacidades? Se sim, quais? Poderia recuperá-las? Sabe-se tão pouco destas questões que as respostas são, na melhor das hipóteses, vagas, mesmo quando não sofreste uma hemorragia no cérebro, mesmo quando não estás aterrorizado. Escolhi esperar por ele.

Na manhã seguinte, aquele brilhante neurocirurgião entrou na minha vida. Falou comigo e com a minha família acerca de um processo relativamente novo, em que se usa uma câmara, que é inserida na artéria femoral, na parte de cima da perna, ao lado da pélvis. Essa câmara percorre o meu corpo até à cabeça e anda por ali, a investigar.

Parecia-me preferível a ter metade da cabeça num tabuleiro. E foi o que nós fizemos. Mas eles não encontraram a causa da hemorragia.

Pouco depois deste fiasco, tive de suportar um outro. Tinha feito um exame ao peito, apenas para aquele médico me ligar e dizer que precisava de vir a minha casa para falar comigo.

Isto nunca significa boas notícias. Passei o dia a preparar-me para embater contra uma parede de betão. Claro que ele disse que era um tumor, dos grandes, um que talvez fosse maligno, um que ele pensava poder extrair, um que eles iriam analisar enquanto eu procurava perceber quanto é que eles precisavam de cortar. Respondi com a calma que preparara durante todo o dia:

— Olhe, se é cancro, corte ambos os peitos – devia ter ganhado o Óscar com esta tirada.

— Se eu tivesse mais pacientes como a Sharon, hoje haveria mais mulheres vivas.

Felizmente, aquele tumor, embora gigante, maior do que o meu peito, era benigno. Infelizmente, tinha tumores nos dois peitos e tive de passar por cirurgias bastante complicadas e alguma reconstrução.

Ainda estava a recuperar dessas intervenções, e doía-me menos quando me deitava daquele lado. Ninguém, especialmente eu, pensou que valia a pena mencionar o facto aquando da nova operação, nem me fizeram um exame físico completo. Afinal, deitar-me assim fez com que o sangue se avolumasse num dos lados da cabeça, o que confundiu os médicos quando tentavam perceber a origem da hemorragia.

Havia um consenso de que possivelmente teria sido um pequeno aneurisma que sangrara e coagulara. De facto, isso foi o que o Dr. Imbecil disse à imprensa. A dor ainda era tão intensa que me administravam, permanentemente, Dilaudid, uma espécie de heroína sintetizada. Eu ganhava e perdia consciência. Não sei se era o sono ou as drogas ou o coma, mas eu ouvia a música «Bridge Over Troubled Water» e caía no que se assemelhava a pilhas de tecidos coloridos, às vezes via fragmentos do filme Cinema Paraíso e outras vezes ouvia a voz de uma mulher com quem, por vezes, trabalhava em Hollywood, uma agente publicitária chamada Pat Kingsley, que falava comigo com a mais agradável e suave das vozes.

Estávamos agora no dia cinco da hemorragia, e eu ia e vinha. Passava mais tempo a «dormir» do que acordada. Não comia desde o primeiro incidente. Sempre que acordava, a televisão pendurada no tecto ressoava de imagens com aviões a cair e alertas de perigo – lembra-se dessas cores? Muitas vezes não sabia o que era real e o que pertencia ao meu terror privado. O sofrimento cercava-me. Ainda me encontrava no círculo dos cuidados intensivos. Cada um de nós lutava pela vida. Todas as pessoas à minha volta choravam, gemiam, lamuriavam, rezavam e gritavam.

Ao fim de mais alguns dias, já não conseguia levantar-me, ficar de pé, pensar com clareza e objectividade. Perdera dezoito por cento da minha massa corporal, segundo a balança por baixo da minha cama. Mesmo assim, julgo que alguns dos elementos da equipa médica pensavam que eu fingia. Por ser uma actriz e tal – ei, eu sei, são coisas que vêm no pacote. Algumas pessoas imaginam que porque representas para o cinema também representas no teu dia-a-dia. Algumas pessoas esquecem-se de que, quando trabalhamos, representamos o que alguém escreveu após várias tentativas, antes de alguém dar a ordem: «Imprima-se.» Então eu já estava demasiado nervosa e desorientada para tentar explicá-lo de novo. Era cada vez mais difícil ver e ouvir. Mas o consenso geral era de que eu devia voltar para casa e parar de fingir.

Uma das enfermeiras veio, deu-me banho e lavou-me o cabelo. Este acto de gentileza foi muito importante para mim, pois todos tinham parado de me tocar, excepto a minha amiga Stefanie Pleet, que quando me visitava pegava-me na mão e acariciava-me a face.

Por alguma razão, ela percebia que eu necessitava de ser tocada. Julgo que todos os outros pensavam que eu era demasiado frágil.

A partir daqui, as coisas começam a ficar estranhas. Hesito em partilhar isto convosco, mas quero acreditar em vós e nos vossos instintos, pouco importa de onde venham. Aqui vai.

Uma noite acordei com a minha avó Lela em pé, ao fundo da cama. Parece razoável, eu sei, mas a minha avó estava morta há uns trinta anos. Parecia tão bela. E cheirava belissimamente: sempre usou perfume Guerlain e Shalimar. Estava no seu melhor, com o vestido preferido e um chapéu.

Livro: "A Beleza de Viver Duas Vezes"

Autor: Sharon Stone

Editora: Guerra e Paz

Data de lançamento: 7 de setembro

Preço: 16,20 €

— Ainda não sabemos o que se passa contigo, estamos a trabalhar nisso. Mas faças o que fizeres, não mexas o pescoço – depois foi-se embora.

Peguei no ursinho de peluche que o meu pai me trouxera, apertei-o contra um lado da cama, encostei o meu pescoço nele e não me mexi. Houvesse o que houvesse, imobilizei-me. Não mudei de posição.

A Mimi veio para o hospital porque pensava que me iam dar alta. Até então, estivera a cuidar da minha casa, vigiando o meu filho e o resto da minha família.

— Estou a morrer! Obriga-os a fazer alguma coisa! Estou a morrer! Mimi, por favor, ajuda-me! – sussurrei-lhe.

Olhou para mim e eu percebi que a tarefa era enorme. Ela ainda é mais tímida do que eu, o que já é alguma coisa, pois, quando não estou ocupada a ser a Sharon Stone, sou bastante tímida. Mas sabia que eu falava a sério e que era o que queria. Ela falou com todos, a minha família e os meus amigos, os médicos. Ela diz que depois de ter feito «tal qual como a Shirley MacLaine» no posto de enfermagem, todos concordaram em fazer um novo angiograma, em que voltariam a inserir uma câmara na minha artéria femoral, mas desta vez no outro lado. Voltaria a percorrer todo o meu corpo para olhar de novo para o meu cérebro.

Disseram que era uma operação que levaria trinta a quarenta e cinco minutos. Para eles era como se tivessem descoberto uma maneira de tirarem esta pessoa estranha e famosa dos seus ombros. Contudo, quando começaram, descobriram que a minha artéria vertebral direita, uma das duas que ligam a tua cabeça às tuas costas e coluna, estava partida em pedaços e sangrava para a minha cara, o meu braço, a minha cabeça, a minha coluna. Já tivera um AVC significativo. E a hemorragia já contava com nove dias.

Não era possível acordarem-me para falar comigo. Tudo chegara demasiado longe. A minha família tinha decisões difíceis a tomar. Viram-se a braços com escolhas médicas e éticas incompreensíveis, e disseram-lhes que qualquer decisão podia matar-me logo ali. A artéria podia acabar por se romper a qualquer momento, e eu morria, ou então rompia-se e formava um coágulo. Podiam colocar uma pequena prótese para substituir a artéria, resultando talvez na minha morte. Entretanto, o sangue escorria para o meu cérebro, a minha coluna, a minha cavidade facial, tudo a um ritmo alarmante. Fosse como fosse, as minhas hipóteses de sobrevivência eram de um por cento.

Fizeram um trabalho incrível. Mantiveram-se unidos, como sempre fazem quando é importante. Antes, o meu pai ensinara-nos uma lição. «Uma família é como uma mão: se um dedo é cortado, a mão inteira sangra.» Foi uma lição importante. Nove horas depois, saí da sala de operações sem uma artéria vertebral e com nove próteses de platina no seu lugar.

Acordei no meu quarto sabendo que a minha avó me salvara a vida. A sua mão guiou-nos, a mim e à minha família. Como uma leoa, a minha mãe segurou-me na mão e na cara sem nunca ter entrado na sala de operações; a minha irmã trouxe em si o meu coração e tomou decisões difíceis e ousadas em meu nome; o meu pai montou guarda em todo o lado e guardou toda a gente, como só os pais sabem fazer. A Mimi ultrapassou a timidez e trouxe ao de cima o melhor de si. O incrível amor e serenidade dos meus amigos, inabaláveis como rochas, prenderam-me a esta terra.

Quando estive nas urgências da primeira vez, banhada por aquela luz branca, vi muitas pessoas que se haviam cruzado comigo. Disseram-me o que iria acontecer. Senti-me tão bem, tão imensamente em paz, e contudo puxaram-me novamente para esta vida, para este mundo. Foi tudo tão confuso e duro, mas agora sei que não estamos separados, eles não estão longe. Nós não perdemos o seu amor. Nós somos o amor.

Aqueles por quem e para quem fiquei são as minhas lições, os meus professores, os meus guias. Nem sempre os mais fáceis. Aqueles por quem vivi são um mundo pleno de amor e luz. São a minha razão. Aqueles que entraram na minha vida com histórias semelhantes à minha, algumas em diferentes fases, trazem luz ao meu mundo. O amor que eu pensava não ter, tinha-o de verdade. Apenas não como eu imaginava, não como uma história contada e recontada um milhão de vezes para muitos de nós, tornando tudo o que todos os outros fazem pequeno por comparação.

Encontrei um amor que era muito mais: era amor real, verdadeiro. Não, não era uma história de encantar. Era a vida real.