PRIMEIRA PARTE

1

Chegou a casa. Eram dez horas; às quintas-feiras ele só costumava fechar a livraria por volta das nove, e depois de, às nove e meia, correr as grades da montra e da porta de entrada, iniciava o caminho de meia hora através do parque, mais longo do que se fosse pelas ruas, mas agradável depois do longo dia. O parque estava descurado, os canteiros das rosas cobertos de hera, a sebe de alfena por podar. Mas cheirava bem, a rododendro ou a lilás, a tília ou árvore-do-céu, a relva cortada ou a terra molhada. Tomava aquele caminho tanto de verão como de inverno, com bom ou mau tempo. Quando chegava a casa, a irritação e as preocupações tinham-se esfumado.

Morava com a mulher no primeiro piso de um edifício Arte Nova, comprado em conta há décadas, entretanto valioso e o seu seguro de velhice. As escadas largas, as linhas orgânicas do corrimão, o estuque, uma beldade nua cuja longa cabeleira acompanhava a escadaria de andar para andar – ele gostava de entrar no prédio, de subir os degraus e abrir a porta com os ornamentos florais de vidro. Mesmo sabendo o que o esperava.

É Desta Que Leio Isto: Em abril recebemos Richard Zimler

Richard Zimler junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de abril, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "A Aldeia das Almas Desaparecidas I - A floresta do avesso", o primeiro volume da mais recente saga do escritor — e um reencontro com a família Zarco.

Nascido em 1956 em Roslyn Heights, subúrbio de Nova Iorque, Zimler escolheu o Porto como novo lar em 1990, onde lecionou na Escola Superior de Jornalismo e na Universidade do Porto durante 16 anos. É onde ainda mora, tendo obtido a nacionalidade portuguesa em 2002.

Foi a partir da Invicta que iniciou uma carreira que já conta com 12 romances publicados, o último dos quais dividido em duas partes: "A Aldeia das Almas Desaparecidas II - Aquilo que procuramos está sempre à nossa procura", acabado de lançar, fecha o díptico iniciado com o volume I.

Zimler conta com uma série de best-sellers bem recebidos tanto pela crítica e como pelo público, como "O Último Cabalista de Lisboa", "O Evangelho segundo Lázaro" ou "Anagramas de Varsóvia".

Quanto a "A Aldeia das Almas Desaparecidas I — A floresta do avesso" é um regresso de Zimler aos Zarco, família de judeus sefarditas cuja saga atravessa vários séculos.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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O sobretudo de Birgit estava no chão do corredor e dois sacos com produtos alimentares tinham tombado. A porta para a sala estava aberta. O portátil de Birgit tinha escorregado do sofá para o chão, tal como a manta de lã com que ela gostava de se cobrir. Junto à garrafa, o copo tombara, derramando o vinho tinto no tapete. Um sapato estava à porta, o outro ao lado da lareira de cerâmica; como costumava fazer, Birgit devia tê-los descalçado e lançado para longe.

Pendurou o sobretudo no armário, levou os sapatos para junto da cómoda e voltou para a sala. Viu então que o vaso com as túlipas também tinha tombado; os cacos e as flores murchas estavam numa poça de água ao lado do piano. Foi da sala para a cozinha. Ao lado do micro-ondas estava uma embalagem vazia de arroz com frango e no lava-loiças, o prato ainda meio cheio de Birgit e a loiça do pequeno-almoço comum. Ia ter de limpar, lavar e arrumar tudo aquilo.

Parou e sentiu a ira no ventre e nas mãos. Mas era uma ira extenuada. Tinha-a deixado vir e ir demasiadas vezes. Mas o que é que ele podia fazer? Se na manhã seguinte confrontasse a mulher, indignado, ela olhá-lo-ia, envergonhada e teimosa, para depois desviar o olhar e exigir que a deixasse em paz; só tinha bebido um bocadinho, já nem podia beber um bocadinho, o que ela bebia era da sua conta, se ele não gostava que ela bebesse podia desandar. Ou então ia desatar a chorar e acusar-se e humilhar-se, até ele a consolar. Claro que a amava, estava tudo bem com ela, tudo estava bem.

Não tinha fome. Bastava-lhe o arroz com frango que Birgit havia deixado. Aqueceu-o no micro-ondas e foi comer para a mesa da cozinha. Depois, arrumou as compras no frigorífico, levou garrafa, copo, cacos e flores murchas da sala para a cozinha, limpou a água derramada, espremeu sumo de limão para cima das nódoas de vinho tinto no tapete, fechou o portátil, dobrou a manta de lã e lavou a loiça. Ao lado da cozinha havia um cubículo, a anterior despensa onde agora estavam as máquinas; encheu a secadora com o conteúdo da máquina da roupa e esta com o do cesto da roupa suja. Ferveu água, preparou um chá e foi bebê-lo sentado à mesa da cozinha.

Era uma noite como tantas outras. Por vezes, quando Birgit começava a beber mais cedo, havia mais do que dois sacos de compras e um copo de vinho tombados e um vaso em cacos. Noutras vezes, quando ela entrava em casa pouco antes de ele chegar e só bebera ainda o primeiro copo, encontrava-a alegre, faladora, carinhosa; e se, em vez do vinho, fosse champanhe, com uma vivacidade que o fazia feliz e nostálgico, como tudo o que é bom e sabemos não ser verdade. Nessas noites iam para a cama juntos. Nas outras, ela costumava estar na cama quando ele chegava a casa, ou encontrava-a deitada no sofá ou no chão, e tinha de a levar ao colo para a cama.

Depois, ficava sentado no banquinho em frente ao toucador, a olhar para ela. O rosto enrugado, a pele fanada, os pelos nas narinas, a saliva seca nos cantos da boca, os lábios gretados. Por vezes as pálpebras estremeciam, as mãos faziam movimentos descoordenados, Birgit dizia palavras sem sentido, suspirava ou gemia. Também ressonava, não tão alto que ele não conseguisse adormecer quando, mais tarde, se ia deitar ao seu lado, mas suficientemente alto para lhe causar dificuldades em adormecer.

Também lhe custava o cheiro dela. Birgit cheirava a álcool e a estômago doente, e por vezes um odor penetrante lembrava-lhe as bolas de naftalina que a sua avó punha nos guarda-fatos. Quando ela vomitava na cama, o que, por sorte, raramente sucedia, ele tinha de abrir a janela de par em par e suster a respiração, enquanto a limpava, a ela e à cama e ao chão em frente à cama. A seguir, precisava de ir respirar ar fresco à janela.

Mas nunca prescindia daqueles momentos sentado no banquinho do toucador. Observava-a e via no rosto devastado aquele outro incólume, o rosto dos bons dias, que os diferentes estados de espírito podiam tornar tão diferente que ele, por vezes, ficava confuso, mas que, mesmo quando Birgit estava ensonada, exausta ou maldisposta, era sempre um rosto cheio de vida. E como era sem vida a sua expressão quando bebia! Por vezes ainda transpareciam no rosto atual os seus anteriores semblantes, o rosto resoluto da estudante da blusa azul, o rosto da jovem livreira, cauteloso, refletido, que tantas vezes fora para ele, simultaneamente, um enigma e um sortilégio; o rosto depois de ela descobrir a escrita, concentrado, como se estivesse sempre a pensar no seu livro, ou não conseguisse tirá-lo da cabeça; o seu rosto corado quando, depois de descobrir tardiamente a bicicleta, voltava a casa após um passeio de duas horas.

Agora, ela tinha um rosto velho. Envelhecera. Mas era dela o rosto que ele amava. O rosto para o qual ele queria falar e que para ele devia falar. O rosto cujos calorosos olhos castanhos lhe aqueciam o coração, cujo riso o seduziam a rir, aquele que lhe apetecia agarrar entre as suas mãos para o beijar, o rosto que o comovia. Sim, ela comovia-o. A sua procura de um lugar na vida, o mistério que ela fazia da sua escrita, o sonho do sucesso tardio, o sofrimento com o álcool, a alegria com as crianças e os cães – em tudo isso havia muito de insatisfeito, de inalcançável que o comovia. Seria a comoção uma espécie menor do amor? Talvez, se isso fosse tudo. Para ele não era tudo.

Quando se levantava do banco, não tinha feito as pazes. Nunca deixava de desejar que as coisas fossem diferentes. Mas estava calmo. As coisas eram como eram. Voltava para a sala, sentava-se no sofá e lia os livros que tinham surgido no mercado – fora por causa do fluxo ininterrupto de novos livros que ele se tornara livreiro.

2

Mas quando nessa noite foi para o quarto, para se sentar perto dela, não a encontrou deitada na cama. Voltou para o corredor e subiu as escadas para o antigo quarto da empregada por cima da cozinha. Era um espaço acanhado e baixo, a janela pequena dava para o pátio, mas Birgit gostava daquela estreiteza baixa, daquelas duas portas, uma na extremidade inferior e a outra na superior das escadas, e transformara o cubículo no seu escritório. Bateu à porta; Birgit não gostava de ser incomodada e muito menos surpreendida. Ela não respondeu e ele abriu a porta. A secretária estava arrumada, à esquerda um monte de folhas de papel, à direita a caneta que ele lhe oferecera alguns anos. Ao lado da janela estava colada uma folha com a sua letra. Ele sabia que não devia lê-la. «Tens...» Parou de ler.

Foi encontrar Birgit no quarto de banho. Estava na banheira, a cabeça submersa, o cabelo escuro na borda de cerâmica. Levantou-lhe a cabeça, a água estava fria, já devia estar na banheira havia várias horas. Puxou-a para fora, até conseguir pousar-lhe a cabeça na borda. Numa banheira moderna não teria escorregado para baixo de água. Porque é que eles não tinham uma banheira moderna?! Ambos apreciavam o luxo daquela longa e funda banheira Arte Nova, gostavam de a usar juntos e tinham gastado muito dinheiro a restaurá-la.

Levantou-se e olhou para Birgit. Para os seus seios, o esquerdo um pouco maior do que o direito, para o ventre com a cicatriz, para os braços e pernas estendidas, para as mãos, que pareciam pairar sobre a banheira com as costas para cima. Lembrou-se então do seu tantas vezes manifestado e nunca concretizado desejo de reduzir o seio esquerdo, do medo que sentira quando o apêndice se inflamara e tivera de ser extraído, de como aqueles seus longos dedos tocavam piano, coisa que nunca deviam ter desistido de fazer. Olhava para ela e sabia que estava morta. Mas, ao mesmo tempo, era como se dali a pouco lhe pudesse contar que a encontrara morta na banheira e pudessem conversar sobre o assunto. Como se estivesse morta por um instante, não por muito tempo, não para sempre.

A Neta
créditos: ASA

Livro: "A Neta"

Autor: Bernhard Schlink

Editora: ASA

Data de Lançamento: 18 de abril

Preço: € 15,21

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Teve de chamar o pronto-socorro. Mas não havia nada a socorrer, não havia pressa nenhuma. E temia a inquietação decorrente da sirene e das luzes azuis dos rotativos da ambulância que ia estacionar à porta do prédio, os socorristas com a maca, os polícias que teriam de recolher vestígios e interrogá-lo, a curiosidade do porteiro vindo da cave. Sentou-se na borda da banheira. Sentiu alívio por Birgit ter os olhos fechados. Se eles estivessem abertos e Birgit o fitasse com um olhar parado, vazio… de imaginar isso sentia-se aterrorizado. Os olhos teriam ficado abertos se Birgit tivesse sido surpreendida por um enfarte ou um AVC. Mas não, ela tinha adormecido. Apenas isso? Limitara-se a beber demasiado? Ou, para além disso, tomara outras coisas? Levantou-se, dirigiu-se para o armário dos medicamentos. Não encontrou a embalagem do Valium no sítio onde devia estar e levantou com o pé a tampa do pequeno balde do lixo. Lá estavam a embalagem e a folha de alumínio esvaziada. Quantos comprimidos cabiam na folha, quantos teria tomado Birgit? Teria ela querido ter a certeza de adormecer? Ou nunca mais quisera acordar? Voltou a sentar-se na borda da banheira. O que é que quiseste, Birgit?

Há anos que sabia das depressões dela. Quantas vezes insistira para que ela fosse a um terapeuta ou um psiquiatra? Tinha amigos que haviam conseguido acalmar as suas depressões com terapias ou bloqueá-las com comprimidos. Mas ela nunca quisera. Ela não tinha depressões, isso das depressões não existe. O que desde sempre existe são pessoas melancólicas, e ela era uma dessas. Não queria que os medicamentos a transformassem noutra pessoa. Essa história de todos terem de ser equilibrados e confiantes era uma treta dos tempos modernos. Na verdade, mesmo quando não tinha depressões ela era mais pensativa, séria e melancólica do que os outros. Não era que fosse incapaz de rir sobre um acontecimento ou uma observação engraçados. Mas aquela leveza gratuita, a superioridade irónica com que nos círculos dos seus amigos e colegas se comentavam livros e filmes, aspetos sociais e políticos, eram-lhe estranhas, e ainda mais estranho lhe parecia o desinteresse com que os próprios políticos e artistas encaravam ou não levavam a sério o que faziam, limitando-se a tirarem partido da atenção que suscitavam, uma atenção surpreendida, jocosa e distante, mas em todo o caso atenção. O que era sério, ela levava a sério. Só mais tarde, depois da queda do Muro, quando conhecera livreiros de Berlim Oriental e Brandemburgo, é que compreendera até que ponto Birgit era, em tudo isso, um rebento da RDA, do mundo proletário desejoso de se tornar burguês e imbuído daquele elã socialista tipicamente prussiano que gostava de levar a sério a cultura e a política, tal como a burguesia o fizera no passado e entretanto desaprendera. Desde então, olhava com outros olhos para ela. Com respeito e também com uma certa pena por tudo aquilo que o seu mundo tinha desaprendido e perdido.

Não, não fora a melancolia que a levara ao suicídio. A melancolia e o vinho tinto, sempre mais um copo e outro ainda, tinham-na esgotado. Depois, não quisera esperar que o sono viesse e procurara forçá-lo. E forçara-o, e ele forçara-a a ela. Porque é que não pudeste esperar, Birgit? Mas ele sabia como ela era impaciente. Era por isso que não descalçava os sapatos de modo normal, nem arrumava as compras, nem perdia tempo a cozinhar, ou a lavar a loiça ou a roupa. Uma morte por impaciência.

Riu-se, as lágrimas presas na garganta. Levantou-se e telefonou ao pronto-socorro. A seguir, chamou a polícia. Que sentido fazia que fossem eles a ligar à polícia? Queria era despachar aquilo.

3

Durou duas horas. O pronto-socorro chegou e partiu. A polícia, dois homens à civil e dois em uniforme, delimitou o local da ocorrência e procurou vestígios. Ele descreveu aos agentes da judiciária como tinha encontrado Birgit, explicou porque é que tinha lavado o copo que ela usara, mostrou-lhes a embalagem e a folha de alumínio no pequeno balde do lixo e observou-os, enquanto eles procuravam em vão uma carta de despedida. Ligaram a uma agência funerária, cujos funcionários meteram Birgit num saco para cadáveres, a fim de a levar para a morgue. Perguntaram-lhe quando é que tinha encontrado Birgit e o que havia feito durante a tarde e no final do dia. Quando respondeu que tinha estado na livraria até às nove, algo que tanto os seus colaboradores como alguns clientes podiam confirmar, tornaram-se mais amáveis. Podia fazer o favor de passar pela esquadra no dia seguinte?

Acompanhou-os à porta de casa e fechou-a com a corrente. Não sabia o que fazer. Não conseguia dormir, nem ler, nem ouvir música. Teria gostado de chorar. Foi à despensa, espalhou a roupa seca em cima da mesa da cozinha e encheu a máquina de secar com a lavada. Quando agarrou uma T‑shirt de Birgit, uma das que ela mais gostava e costumava usar, não conseguiu aguentar e deixou ficar tudo num monte.

Linhas de apoio emocional e prevenção de suicídio

Caso tenha pensamentos suicidas ou conheça alguém que revela sinais de alarme, fale com o médico assistente. Se sentir que os impulsos estão fora de controlo, ligue 112.

Outros contactos:

SOS Voz Amiga
(diariamente, das 15h30 às 00h30)
213 544 545
912 802 669
963 524 660
direcao@sosvozamiga.org

Conversa Amiga
(diariamente, das 15 às 22h)
808 237 327
210 027 159

SOS Estudante
(diariamente, das 20 às 01h)
239 484 020

Voz de Apoio
(diariamente, das 21h às 24h)
225 506 070

Telefone da Amizade
(diariamente, das 16h às 23h)
228 323 535

Telefone da Esperança
(diariamente, das 20h às 23h)
222 080 707

Departamento de Psiquiatria de Braga
253 676 055

Escutar- Voz de apoio
225 506 070

SOS Telefone Amigo
239 721 010

A Nossa Âncora
219 105 750
219 105 755

Brochura do INEM
Ler aqui.

Subiu as escadas para o escritório da mulher, entrou e sentou-se à secretária. Leu então a frase até ao fim: «Tens o que um Deus austero te concedeu.» De quem era aquilo? Porque é que Birgit anotara a frase? Porque é que a colara à parede? De que é que se queria lembrar? Depois puxou para si a resma de papel. Era um manuscrito; reconheceu o nome da autora: era uma mulher com quem Birgit tinha frequentado um grupo de escrita criativa. Mas ele não queria ler nada de uma mulher qualquer, queria era ler algo que Birgit tivesse escrito. Abriu todas as gavetas da secretária, uma após outra. Na de cima havia papel ainda por usar, todo o tipo de material para escrever, borrachas e apara-lápis, clipes e rolos de fita-cola. Nas duas de baixo encontrou pastas com folhas escritas à máquina, umas com poucas frases, outras com longos parágrafos, apontamentos com a caligrafia de Birgit, cartas, recortes de jornais, fotocópias, fotografias, folhetos. As pastas não estavam tituladas, e o seu conteúdo não parecia ordenado. Mas ele conhecia Birgit; a confusão era enganadora, as diversas pastas tinham de corresponder a diversos conceitos, aspetos ou capítulos do seu romance, aos quais atribuíra os diferentes conteúdos. Mas não conseguiu concentrar-se e reconhecer a ordem oculta.

Entre as pastas encontrava-se um postal. Mostrava a Rapariga do Chocolate de Jean-Étienne Liotard, da Gemäldegalerie de Dresden. Virou o postal. Tinha um selo da RDA, sem remetente. «Querida Birgit, vi-a no outro dia, uma menina alegre. É parecida contigo. Paula.» Voltou a virar o postal o observou com mais atenção a Rapariga do Chocolate. Não conseguiu reconhecer qualquer semelhança. Atenta, sim, Birgit também podia parecer atenta, mas não tinha aquele nariz afilado e aquela boquinha. E alegre, não, não se podia dizer que a Rapariga do Chocolate parecesse alegre.

Lembrou-se então de que não tinha em casa nenhuma fotografia de Birgit e que nem na sua secretária, na livraria, havia uma. Alguns dos seus amigos tinham em casa, sobre uma cómoda, toda uma galeria de fotografias em molduras de prata ou negras: fotos do casamento, de férias e passeios, dos pais, dos filhos. Birgit e ele não tinham filhos. E do seu casamento em 1969, do qual se envergonhavam um pouco e ao qual não haviam atribuído muita importância, já que aos olhos dos seus amigos não passava de um ritual ultrapassado, não restavam fotografias. Eles simplesmente não fotografavam. Tirou a carteira do bolso das calças e assegurou-se de que a foto de passaporte de Birgit que ele trazia consigo há anos ainda se encontrava entre o livrete do carro e a carta de condução. Teria de a fotografar e ampliar.

Não encontrou nada do que procurava na secretária de Birgit. Em nenhuma das gavetas deparou com um manuscrito. Na de baixo estava uma garrafa de vodca, e enquanto continuou a procurar na estante dos livros na parede mais estreita do quarto, foi bebendo. Adormeceu ao amanhecer, no chão. O canto dos pássaros não tardou a acordá-lo. Por um instante, não soube onde estava. Por um instante também, não se lembrou do que tinha acontecido no dia anterior. Então, a lembrança voltou. Inundou-lhe primeiro a cabeça, depois todo o corpo. Finalmente, pôde chorar.

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