Hannah
Às vezes, o meu irmão e eu jogamos um jogo. Chama-se «O que sentimos com...». Há muito tempo que o conhecemos. Não tenho a certeza, mas penso que o jogamos desde que a mamã nos falou pela primeira vez de «felicidade».
«A felicidade é uma coincidência particularmente positiva, uma reviravolta favorável do destino, fim.» Foi isto que eu li em voz alta no livro grosso que sabe sempre tudo. Ao princípio, o Jonathan assentiu, como sempre faz quando leio a passagem correspondente, mas depois semicerrou os olhos e perguntou o que significava aquilo na realidade. Primeiro, disse-lhe que ele era idiota e que não tinha certamente prestado atenção. Devemos prestar sempre muita atenção. Não escutar é má educação. No entanto, voltei a ler porque, idiota ou não, o Jonathan não deixa de ser meu irmão. «A felicidade é uma coincidência particularmente positiva, uma reviravolta favorável do destino.» Depois, disse «fim» de modo muito lento e claro para que ele soubesse que a passagem tinha terminado.
Mas o Jonathan continuava com os olhos semicerrados.
«Idiota és tu. Eu já tinha percebido. Referia-me ao que sentimos com ela; no corpo, quero dizer.»
«O que sentimos com a felicidade?», perguntámos então à mamã. «Isto», respondeu ela, tomando-nos nos seus braços.
«Calor», observou o Jonathan, concluindo que tinha subido um pouco a temperatura corporal à mamã.
Quanto a mim, esborrachei o nariz na cova entre o pescoço e o ombro dela. Cheirava a prados. A felicidade é quente, quase como uma ligeira febre, tem odor e um batimento que avança como o ponteiro dos segundos do relógio da cozinha.
O Jonathan e eu também falámos sobre o que sentimos com um susto.
«Um susto é como uma bofetada», sugeriu ele.
«Que nos surpreende», acrescentei eu.
E tínhamos razão. Um susto é exatamente assim. E podemos também identificá-lo no rosto de alguém. Os olhos ficam muito abertos pela surpresa e as bochechas tornam-se vermelhas de repente, como se uma mão invisível e dura as tivesse esbofeteado.
É neste estado que está a enfermeira Ruth. Falei-lhe com a minha voz de leão, gritei-lhe que não queria que a polícia viesse e levasse a minha mamã.
– Hannah – reage a enfermeira Ruth, num tom de voz um pouco mais agudo, certamente por causa do susto.
O meu primeiro pensamento é que tenho de contar ao Jonathan, não nos podemos esquecer: susto = bofetada + surpresa + voz aguda. O segundo é que ele está neste momento em casa, a debater-se com a carpete, e o terceiro é que a enfermeira Ruth disse que a polícia estava a caminho. Fico triste, com lágrimas nos olhos.
A tristeza não é um sentimento bonito. Imagino-a como um pequeno animal com muitos dentes pontiagudos que todos nós escondemos dentro do corpo. Na maior parte do tempo está a dormir, mas em certos momentos acorda com fome. Podemos notar inclusivamente quando nos começa a roer o coração. Não causa danos muito graves, ou não tão graves que nos façam gritar, embora fiquemos um pouco debilitados e com vontade de descansar. A enfermeira Ruth apercebeu-se provavelmente de que eu própria estou agora um pouco debilitada e, por isso, esquece-se do susto que lhe provoquei. Levanta-se da cadeira, que nesse momento range no chão, dá a volta à mesa e aperta-me a cabeça contra o seu peito volumoso e mole.
– Eu sei que tudo isto é demasiado para uma menina tão pequena. Mas não precisas de ficar com medo, Hannah. Ninguém vos quer fazer mal, nem à tua mãe nem a ti. Às vezes as famílias só precisam de um pouco de ajuda, embora elas próprias não o consigam ver.
A sua mão quente está posta sobre a minha orelha. Consigo ouvir o som do mar e fecho os olhos.
«Dizem que precisamos de aproximar uma concha do ouvido para ouvirmos o mar», contou-nos a mamã há muito tempo, «mas na verdade funciona também com outros objetos ocos, se os pusermos junto à orelha. Basta uma lata de conservas ou uma mão.»
«E como entra lá o mar?», quis eu saber.
«Bem, para sermos rigorosos, o que realmente ouves é o som do teu próprio sangue. Mas é muito mais bonito imaginar que é o mar, não concordas?»
Assenti com a cabeça e perguntei o que era uma lata de conservas. Eu era ainda muito pequena e não sabia que uma lata de conservas pode ser bastante perigosa: é feita de metal e a tampa redonda, quando se corta com um abre-latas, é tão afiada que nos pode ferir muito, a nós ou aos outros.
A enfermeira Ruth afasta a mão da minha orelha e o mar desaparece.
– Será que a tua família precisa de ajuda em casa, Hannah? – pergunta ela, agachando-se junto à minha cadeira e pegando-me nas mãos, que estão no meu colo.
– Não – respondo. – Para dizer a verdade, sabemos como funciona tudo. Temos as nossas próprias regras. Só que às vezes a mamã esquece-as. Felizmente, ela tem-nos a nós, que lhas recordamos.
– E, ainda assim, faz tontices? Foi isso que disseste antes, não foi? Que às vezes ela faz coisas tontas sem querer.
Inclino-me para a frente e faço um funil de segredos com as mãos. Este funil de segredos fomos nós, o Jonathan e eu, que o in- ventámos, mas não o devemos usar quando o papá está em casa. A enfermeira Ruth vira a cabeça para que eu lhe possa pôr o funil na orelha.
– Queria matar o papá sem querer – murmuro.
A cabeça da enfermeira Ruth gira nesse instante. Um susto, consigo perceber claramente. Sacudo a cabeça, agarro-lhe a cara e volto a pô-la na posição certa para o funil de segredos.
– Não tens de contar à polícia. O Jonathan está a tratar das manchas na carpete.
Lena
Quer três, diz-me ele, enquanto descasca uma cebola. Retira com toda a calma a camada exterior, produzindo um som que se assemelha ao arrancar de um penso rápido da pele. É um som que me dói. Estou ao lado dele na cozinha, fixada na faca que tem na mão. Uma faca de cortar, com lâmina fina de serrilha, suficientemente afiada.
– Estás a ouvir-me, Lena?
– Claro – responde a mulher que começo a odiar com todas as fibras do meu ser. Ele consegue tudo dela, estendendo a mão com ousadia e servindo-se à vontade. Do corpo, do orgulho e da dignidade dela. E, ainda assim, ela sorri para ele. Esta mulher enoja-me. – Queres três.
– Desde sempre. E tu?
A mulher também sempre quis três. Eu nunca quis nenhum, mas a minha opinião não conta. Há dias em que o meu desejo é poder vir a habituar-me a isto. Noutros, sei que tal nunca deverá acontecer. Reúno as minhas últimas reservas, pequenos cacos de uma vontade quebrada, memórias e razões, e guardo-as num lugar seguro. Como um esquilo que enterra as provisões para o inverno. Só posso esperar que ninguém, nem ele nem a mulher fraca, descubram o meu esconderijo. O lugar secreto onde existe céu e pesos pirosos para as toalhas de mesa.
– Queres um copo de vinho?
Deixa junto à tábua de madeira a faca com que acaba de cortar a cebola em quartos e volta-se para mim. A faca fica simplesmente ali. A meio braço de distância, ao meu alcance. Tenho de me forçar a desviar a vista. A olhá-lo de novo nos olhos com o sorriso imbecil de mulher fraca nos lábios.
– Sim, com muito gosto.
– Maravilhoso – diz ele, devolvendo o sorriso e dando um passo em direção à mesa de jantar, na qual ainda se encontram os dois sacos de papel castanho com as compras por arrumar. – Tinto ou branco? Acabei por trazer dos dois porque não sabia o que preferirias com o esparguete.
Está ali de pé, ligeiramente inclinado sobre os sacos, de costas quase viradas para mim, com a mão direita enfiada num dos sacos. E a faca junto à tabua de cortar, a meio braço de distância, ao meu alcance. «Agora!», gritam as vozes interiores.
– Lena?
O saco de papel farfalha quando ele tira a primeira garrafa.
– Se posso escolher, prefiro tinto.
– Sim, eu também prefiro.
Contente e com a garrafa na mão, vira-se de novo. A mulher fraca apoia-se na bancada. Um dedo avança miseravelmente para a faca. Entre ambos há apenas alguns centímetros e, contudo, uma impossibilidade. Ele cozinha para mim. Comemos juntos e brindamos, desejando que eu engravide o quanto antes. Quer três filhos. Seremos uma família muito feliz.
– Fibrilação auricular!
Hannah
A enfermeira Ruth saiu da sala tão depressa que quase tropeçou. Como me disse para ficar bem sentada à espera dela, não me mexo. Devemos fazer sempre o que os adultos dizem, mesmo se formos muito espertos, como eu sou. Tenho vontade de medir a sala, mas devo ficar aqui sentada, e por isso começo a contar. Gosto de contar quando não me devo mexer e não me ocorre nada mais sobre o que pensar. Assim, o tempo passa mais depressa. O meu irmão costuma trautear uma canção quando se aborrece, mas isso sim é aborrecido, penso eu, porque ele escolhe sempre a mesma canção. O mais divertido de contar é que nunca sabemos a que número chegaremos antes de se acabar o tempo.
Quando a enfermeira Ruth regressa, já contei até 1128 e quase me esqueço de me levantar. Devemos levantar-nos sempre quando a porta se abre, assim como apresentar as mãos. As unhas têm de estar limpas e não devemos esconder na mão nada com que possamos provocar ferimentos, a nós próprios ou aos outros. Mas a enfermeira Ruth não se centra nisso, dizendo-me apenas para me sentar outra vez. Traz com ela um caderno de desenho e lápis de cor e declara:
– Tive uma boa ideia, Hannah.
Quer que eu desenhe alguma coisa, pois claro. Não estou muito certa de que a ideia seja assim tão boa. Os lápis são de cores bonitas, não há dúvida: vermelho, amarelo, azul, preto, lilás, laranja, rosa, castanho e verde. Mas estão muito afiados. Pego no vermelho e passo com o polegar pela ponta – sim, realmente muito afiado. Em casa costumamos desenhar, mas com lápis de cera. E usamos estes lápis também para escrever.
– Porque é que tenho de desenhar alguma coisa?
A enfermeira Ruth encolhe os ombros.
– Bom, para começar, é uma forma de ficarmos entretidas até poderes ver a tua mamã. Além disso, podemos dizer que estamos muito ocupadas quando a polícia chegar e te quiser fazer perguntas tontas. O que te parece?
– E o que tenho de desenhar?
A enfermeira Ruth volta a encolher os ombros.
– Hum, podias desenhar simplesmente o que te aconteceu hoje, antes de teres chegado aqui com a tua mamã.
Sem me aperceber, começo a morder a ponta do lápis. Soltam-se pequenas lascas de madeira que se agarram à língua. Lambo as costas da mão para me livrar delas.
– Não – digo então. – Pensei em algo melhor. Vou fazer um desenho para depois oferecer à mamã.
–Certo, muito bem. E já tens alguma ideia do que queres desenhar?
– Sim, talvez – respondo, pensativa. – Algo que sei que a deixará alegre.
A enfermeira Ruth está muito curiosa. Ela própria o confessa e nota-se-lhe no rosto. Tem os olhos muito abertos e levantou tanto as sobrancelhas que a testa ficou enrugada. Pouso o lápis vermelho e pego no azul. Começo com muito cuidado. Os lápis afiados podem ser muito perigosos. Primeiro, desenho a cara da minha mamã. A enfermeira Ruth pergunta por que razão é azul. Estalo a língua e reviro os olhos. Às vezes, a enfermeira Ruth também é um pouco idiota, como o meu irmão.
– Porque não tenho um lápis branco. E porque, de qualquer forma, não se veria o lápis branco no papel branco – explico eu.
Depois, desenho o corpo da mamã com um vestido comprido e bonito, também a azul, embora devesse ser branco. Em seguida, o seu belo cabelo comprido a amarelo. E, no final, as árvores negras com ramos semelhantes a dedos esqueléticos de monstros que tentam agarrar a mamã.
– Parece perigoso, Hannah – comenta a enfermeira Ruth. – Fala-me um pouco sobre o desenho.
– Bem, esta é a história da minha mamã e do meu papá e de como se apaixonaram. Uma noite, já muito tarde, a mamã estava a caminhar pelo bosque. Consegues ver como é bonito o brilho da lua no cabelo dela?
– Sim, é muito bonito, Hannah. Ela estava sozinha no bosque?
– Sim, e sentia um medo horrível. É por isso que não se está a rir, vês?
– Porque é que sentia tanto medo?
– Tinha-se perdido. Mas então... – Agora desenho o meu papá a sair de trás de uma árvore. – Então chega o papá e encontra-a. É a melhor parte da história. Ele está ali, como se tivesse saído do nada, e salva-a. – Corrijo a boca da minha mãe para que ela passe a sorrir. O sorriso fica muito grosso, como uma grande banana vermelha. – E apaixonam-se os dois à primeira vista.
Satisfeita, pouso o lápis vermelho junto à folha de papel, na qual acabei de desenhar vários coraçõezinhos. Um coração vermelho é o símbolo comum do amor. Desenhei seis corações vermelhos para que houvesse ainda mais amor.
– Uau – diz a enfermeira Ruth, espantada – Parece quase um conto de fadas.
– Não. Não é um conto de fadas, é uma história real. Tal como a mamã a descreve sempre. Se fosse um conto, primeiro teríamos de dizer «Era uma vez». «Era uma vez» é a introdução tradicional para contos, mitos e lendas. Muitas vezes, peço-lhe que me conte esta história, sobretudo quando está triste. Quando conta a história, sorri sempre e fica muito bonita. – Para o demonstrar, aponto com o dedo indicador para a boca de banana vermelha da mamã.
A enfermeira Ruth inclina-se um pouco mais sobre a mesa.
– E o que tem o teu papá na mão?
– É um lenço que ele vai usar para lhe tapar os olhos porque a quer surpreender. Ela não pode saber para onde vão.
– Para onde vão eles, Hannah?
– Para casa, claro – respondo. – Para a cabana.
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