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Peguei no carro e saí de Nova Iorque, onde um homem se matou a tiro à minha frente. O homem era glutão e quando o sangue dele começou a jorrar parecia o sangue de um porco. Que pensamento cruel, eu sei. O homem fez isto num restaurante onde eu estava a jantar com outro homem, outro homem casado. Estás a perceber, não estás? Mas eu não fui sempre assim.

O restaurante chamava-se Piadina. Nas paredes de tijolo havia fotografias de velhas senhoras italianas a enrolar gnocchi, com os dedos enormes cobertos de farinha. Eu estava a comer tagliatelle à bolonhesa. A pasta vinha envolta num molho espesso e cor de ferro, com um ramo reluzente de salsa no cimo.

Estava virada para a porta quando o Vic entrou. Ele estava de fato, como sempre. Só o vira uma vez de roupa casual, jeansT-shirt, e fiquei deveras desorientada. Tenho a certeza de que ele o percebeu. Ele tinha uns braços muito brancos e pouco mus-culados e eu não conseguia parar de olhar para eles.

Para mim, ele nunca foi Victor. Foi sempre Vic. Era o meu patrão, e durante muito tempo, antes de ter acontecido o que quer que fosse, eu admirava-o. Era muito inteligente, andava sempre impecável e tinha um ar caloroso. Comia e bebia de forma voraz, mas o excesso dele tinha uma certa dignidade. Era generoso, servia esparregado a toda a gente da mesa antes de servir o próprio prato. Tinha um vocabulário extenso, um penteado que lhe escondia bem a careca e uma grande coleção de chapéus de luxo. Tinha dois filhos, uma rapariga e um rapaz; o rapaz tinha um atraso de desenvolvimento, coisa que o Vic de alguma forma escondia de mim e das outras pessoas que trabalhavam para ele. Na secretária dele só tinha uma fotografia da filha.

O Vic levou-me a centenas de restaurantes. Comemos costeletas de vitela em restaurantes enormes e luxuosos, com bancos corridos vermelhos, onde os empregados se metiam comigo. Partiam do princípio de que ele era o meu pai, ou o meu marido mais velho, ou então percebiam que eu era a amante. De alguma maneira, éramos todas as anteriores. A mulher propriamente dita estava em casa, em Red Bank. Ele dizia-me, sei que não vais acreditar nisto, por eu ser tão desengraçado, mas a minha mulher é bem bonita. A verdade é que não era. Usava o cabelo demasiado curto para a cara e tinha a pele demasiado clara para as cores que gostava de usar. Tinha cara de ser boa mãe. Gostava de comprar pratinhos para pôr sal e toalhas turcas, e no início da minha amizade com o Vic, ao andar pela cidade, se um pratinho de bambu para pôr sal me chamasse a atenção, tirava uma fotografia e mandava-lhe uma mensagem: Achas que a tua mulher gosta?

Ele dizia-me que eu tinha muito bom gosto, mas o que é que isso quer dizer?

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Há uma segurança que advém da amizade de um homem mais velho que nos admira. Onde quer que se esteja, se alguma coisa corre mal, basta fazer um telefonema e o homem virá em nosso auxílio. O homem que aparece deveria ser o nosso pai, mas na altura eu não tinha pai e tu nunca vais ter.

Dei por mim a precisar do Vic para tudo. Trabalhávamos numa empresa de publicidade. Ele era o diretor criativo. Eu praticamente não tinha experiência na área quando comecei, mas tinha um talento natural, dizia ele. Promoveu-me de assistente a criativa. A princípio gostava de receber aqueles elogios todos, mas depois comecei a sentir que merecia tudo o que me acontecia, e que ele não tinha nada a ver com isso. Demorou alguns anos até que isso acontecesse. Pelo caminho iniciámos uma relação sexual.

Tenho muita coisa para dizer sobre sexo com um homem pelo qual não te sentes atraída. Tudo gira à volta do teu próprio desempenho, do teu próprio corpo e do seu aspeto visto de fora, a forma como se movimenta acima deste homem que, para ti, é um mero espectador.

Enquanto aquilo estava a acontecer, eu não tinha a noção do quanto me estava a afetar. Só me dei conta vários anos mais tarde, quando os três banhos que tomava por dia não chegavam.

A primeiríssima vez foi na Escócia. A nossa empresa tinha conseguido um contrato com a cerveja Newcastle e o Vic sugeriu que eu coordenasse a equipa, que fosse a todas as reuniões e pusesse o processo em andamento. Era um contrato importante e os meus colegas ficaram invejosos. Eu era nova na empresa e na área da publicidade, em geral. Eles deixaram de se meter comigo e começaram a tratar-me como se eu fosse uma bailarina exótica, a bater punhetas e a julgar-me, ao mesmo tempo.

A Newcastle instalou-me num hotel de luxo às portas de Edimburgo. Era um edifício de granito com grandes janelas, e tinha uma entrada circular coberta de gravilha. Punha-me a olhar pela janela para ver os carros que ali passavam, carros antigos, jipes Mercedes pretos e reluzentes e pequenos Porsches prateados. Tinha uma colcha em xadrez escocês em cima da cama e o meu telefone era um pato-real. O quarto custava mil e quatrocentos dólares por noite.

Estava na Escócia há uma semana quando me comecei a sentir triste. Estava habituada a estar sozinha, mas é diferente quando se está noutro país. O sol nunca aparecia, mas a chuva também não. Além disso estava muito mal preparada para fazer aquele trabalho e os representantes da Newcastle já se tinham começado a dar conta disso. Liguei para o escritório para falar com o Vic. Sem querer, comecei a chorar. Disse-lhe que tinha saudades do meu pai. Claro que também tinha saudades da minha mãe. Mas de uma forma muito diferente, e hás de perceber porquê.

O Vic apareceu na Escócia ao fim da tarde do dia seguinte. O voo de última hora foi uma extravagância, custou mais de mil e duzentos dólares, e ele pagou-o do bolso dele porque eu tinha imenso medo de que os meus colegas descobrissem que eu tinha falhado. Não foi a nenhuma reunião. Limitou-se a sugerir uns quantos pontos de discussão. Reservou um quarto que ficava no mesmo corredor do meu. Na primeira noite, jantámos e bebemos uns copos no bar do hotel e depois cada um de nós foi para o seu quarto. Mas na segunda noite ele levou-me até ao meu quarto.

Os homens mais velhos e espertos têm uma certa maneira de nos ir avançando pela perna acima. A princípio não parece que se esteja a passar nada indecente e podemos até pensar que a ideia foi nossa.

Eu estava com um vestido creme de lã e tinha as pernas nuas. Nunca usava collants nem leggings, mesmo no inverno. Tinha uns saltos altos pretos, estilo Mary Jane.

O Vic estava de fato. Vestia-se constantemente como os homens nos anúncios de cigarros. Não me sentia atraída por ele, mas o cheiro da água-de-colónia dele reconfortava-me. Passou um casal por nós e lembro-me da maneira como a mulher olhou para mim. É uma sensação que não me larga há muito tempo.

Chegados ao meu quarto, abrimos duas garrafas médias de vinho do minibar, mais três garrafinhas de whiskey tamanho avião que ele bebeu sozinho.

Graças a um qualquer instinto de autopreservação, não me consigo lembrar ao certo de como começou. Tenho a certeza de que tive alguma iniciativa, que quis testar o alcance do meu poder sexual. O alcance da minha beleza. Mas aquilo de que me lembro com mais nitidez é do espelho na parede oposta à das janelas onde tinha passado dias a ouvir carros elegantes a esmagar a gravilha. Levantei-me para me ir olhar ao espelho porque ele tinha dito que eu tinha vinho tinto no canto da boca, e que estava com cara de agarrada. Ah, ah, disse eu. Mas aquele homem era incapaz de me fazer sentir feia.

Ele veio encostar-se às minhas costas enquanto eu me via ao espelho. A cabeça dele parecia anormalmente grande ao pé da minha. O meu cabelo comprido e preto contrastava elegantemente com o tom creme do meu vestido. Ele pousou-me uma mão no ombro e outra no cabelo, perto da orelha, inclinando-me a cabeça para o lado. Vi o brilho que ele tinha nos olhos enquanto os seus lábios finos tocaram no meu pescoço. Senti um arrepio pela coluna abaixo, em parte por repulsa, mas também tive uma reação sexual involuntária. Ele tirou-me o vestido por cima da cabeça. Fiquei ali de saltos altos e com um sutiã de renda branca e cuecas brancas com lacinhos vermelhos dos lados. Nessa altura da minha vida vestia-me sempre para alguém, e gostava de acreditar que esse alguém era eu. Um dia, numa loja de coisas para a cozinha no SoHo, comprei um avental com um padrão de coelhos, casinhas e meninas a comer cones de gelado.

Depois vieram as viagens a Sayulita, no México, a Scottsdale, onde havia um spa muito agradável. Casas de banho com azulejos verde-água e sushi maravilhoso. Guacamole pousado na mesinha ao lado da mesa, danças do ventre, estacionamento com serviço de valet, sempre.

A certa altura, acabei por ficar demasiado enojada, mas durante muito tempo aguentei-me. A parte física não era assim tão preponderante. A verdade é que é possível safarmo-nos com quase nada, se fizermos bem o nosso papel. Especialmente se o homem for casado, podemos falar de moral e do que o nosso pai diria se fosse vivo. Podemos fazer com que o homem estremeça de excitação só de nos dar a mão, e enquanto isso estamos em sítios quentes com palmeiras e carrinhos de golfe.

Nunca deixei de estar com outros homens ao longo desses anos. Tive algumas pequenas obsessões, mas nada de muito sério. Falei ao Vic de alguns deles. Dizia que eram amigos e deixava-o a cozer as suas suspeitas na cabeça. Mas mentia, quase sempre. Dizia que ia sair com amigas e depois escapava-me do escritório e corria para o metro, sempre a olhar para trás, cheia de medo de que ele viesse atrás de mim. Depois ia ter com um rapaz cruel qualquer e o Vic ia para casa vasculhar as redes sociais em busca de sinais da minha presença. Pelas onze da noite escrevia-me: O que andas a fazer, miúda. Não usava ponto de interrogação para parecer menos inquisitivo. Começa-se a perceber a natureza humana ao nível da célula quando um homem mais velho está obcecado connosco.

O estado das coisas era tolerável. Estávamos ambos a receber aquilo de que precisávamos, embora eu tivesse passado bem sem ele. Veio-se a perceber que ele não podia passar sem mim. Comparava a relação dele comigo ao mito de Ícaro. Ele era Ícaro e eu era o Sol. Estas tiradas, que eu acreditava que eram ditas sem ironia, e ainda acredito, davam-me vontade de vomitar. Que raio de mulher quereria ser o Sol que ilumina um país que ela não tem sequer interesse em visitar?

Durante vários anos esteve tudo bem, até ao homem do Montana. Eu chamava-lhe Big Sky, e a princípio o Vic também. Atirei o Vic até às profundezas daquilo que um homem é capaz de suportar. Não te recomendo que faças o mesmo, e é preciso que tenhas noção do que se pode fazer a um ser humano.

Acho que naquela noite o Vic vinha para atirar sobre mim, é isso que eu acho.

Animal
créditos: Editorial Presença

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Se me pedissem para me descrever com uma palavra só, usaria a palavra «depravada». A depravação tem-me sido útil. Útil para quê, não saberia dizer. Mas já sobrevivi ao pior. «Sobrevivente» é a segunda palavra que usaria. Aconteceu-me uma coisa tenebrosa e relacionada com a morte quando era criança. E hei de te contar tudo, mas primeiro quero contar-te o que aconteceu a seguir a essa noite que mudou o rumo da minha vida. Prefiro assim, para que possas reservar a tua compaixão. Ou talvez não tenhas compaixão nenhuma. E por mim tudo bem. O mais importante é desfazer vários preconceitos — sobre as mulheres, acima de tudo. Não quero que continues o ciclo do ódio.

Já me chamaram puta. Já me julgaram, não só pelas coisas que fiz aos outros, mas, mais cruelmente, pelas coisas que me aconteceram.

Tinha inveja das pessoas que me julgavam. As pessoas que viviam as suas vidas de forma regrada, previsível. A universidade certa, a casa certa, a altura certa para mudar para uma casa maior. O número recomendado de filhos, que às vezes é dois e outras é três. Se tivesse de apostar, diria que a maior parte dessas pessoas nunca passou por um por cento daquilo que eu passei.

Mas o que me fazia perder a cabeça era quando essas pessoas me diziam que eu era sociopata. Algumas até o diziam como se fosse uma coisa positiva. Sou uma pessoa que acredita que sabe quais as pessoas que deviam estar mortas e quais deviam estar vivas. Sou muitas coisas. Mas não sou sociopata.

Quando o Vic disparou sobre si próprio, o sangue escorreu dele como se fosse um licor. Já não via sangue assim desde os meus dez anos. Abriu-se um portal. Vi o reflexo do meu passado naquele sangue. Vi o passado claramente, pela primeira vez. Os polícias chegaram excitados ao restaurante. Toda a gente já se tinha ido embora. O homem com quem eu tinha estado a jantar perguntou-me se eu ficava bem. Já estava a vestir o casaco. O que ele queria perguntar era se eu ficava bem sozinha naquela noite e o resto da minha vida porque nunca mais o ia ver. Um dia ele tinha-me perguntado quem era o meu grupo e eu não percebi o que ele queria dizer com aquilo, mas agora sabia. O homem morto ali no chão era o meu grupo. Eu fazia parte de um grupo que a Universidade de Dartmouth não reconheceria. Depois de os polícias se irem embora, fui a pé para casa. Pensava que não tinha hidratos de carbono no meu apartamento, mas encontrei um kit para fazer tacos. A pior coisa de comer demasiado é que depois é preciso tomar mais Klonopin do que o habitual. Fiquei só suficientemente mocada para conseguir ser decidida. E decidi que ia à procura dela.

Por essa altura o Vic já devia estar frio. Imaginei os seus tentáculos frios. Quando alguém nos sufoca com aquilo que acha que é amor, embora sintamos que nos estão a cortar o ar, pelo menos sentimo-nos abraçados. Quando o Vic morreu, fiquei completamente só. Não tinha energia para fazer outra pessoa gostar de mim. Fiquei inerte. Vuota. Que é uma palavra que a minha mãe teria usado. Ela usava sempre palavras ótimas.

Sobrava-me uma pessoa. Uma mulher que eu nunca tinha conhecido. O que era assustador, porque as mulheres nunca tinham gostado de mim. Eu não era uma mulher de quem as outras mulheres gostassem. Ela vivia em Los Angeles, que era uma cidade que eu não percebia. Estuque cor de malva, criminosos e purpurinas.

Não imaginava que a Alice — era esse o nome dela — fosse gostar de mim, mas tinha esperança de que ela pelo menos me quisesse ver. Já sabia o nome dela há anos. Tinha quase a certeza de que ela não sabia o meu. Pela primeira vez em muito tempo estava a ir para algum lado com um objetivo. Não fazia a menor ideia de como as coisas iriam correr na Califórnia. Não sabia se ia foder ou amar ou magoar alguém. Sabia que ia ficar à espera de um telefonema. Sabia que ia estar desvairada. Tinha zero dólares na conta, mas não descartava a ideia de ter uma piscina. A minha viagem podia tomar muitos caminhos. Não me passou pela cabeça que algum deles me levasse ao homicídio.

Há anos que era impossível seguir-lhe o rasto, nada de redes sociais, nada de transações imobiliárias. De vez em quando ia à procura dela. Mas tinha demasiado pouca informação, e além disso tinha mesmo muito medo.

Até que um dia fui ao dentista porque me tinham feito saltar dois dentes da boca. Quem o fez foi um homem, mas tecnicamente fê-lo sem violência. Era um dentista caro, mas o homem responsável pela perda dos dentes é que ia pagar.

Estive mais de uma hora à espera na receção, a folhear uma daquelas revistas inspiradoras para pessoas que ganham mais de cinco milhões de dólares por ano. E lá estava ela, na capa, com mais quatro mulheres bonitas que eram as melhores do fitness, do ioga Ashtanga, do aikido, e por aí fora, em Los Angeles.

A beleza dela puxou-me de tal forma, que decidi ler o artigo e vi o nome dela, que tinha guardado numa folhinha de papel há mais de uma década. Aspirei ar pela boca, e o ar assobiou pelo espaço entre os meus dentes.

Ela era mais bonita do que eu alguma vez poderia ter imaginado. As mamas dela eram absolutamente perfeitas. Em tempos, um namorado — não um namorado, mas um desses provedores de várias manhãs incertas — disse isso sobre uma atriz que tinha mostrado o peito numa cena. As mamas dela, disse-me ele enquanto comia gelado barato de baunilha, são absolutamente perfeitas. Ainda estou impressionada comigo própria por não o ter matado.

Sonhei com ela durante anos. Muitas vezes sonhava que lhe fazia mal. Das outras vezes eram outras coisas, igualmente preocupantes.

Poucos dias depois da morte do Vic, o meu apartamento estava vazio. Era perita na arte de ir embora. Não sabia onde ia viver. Telefonei para saber de algumas casas para arrendar perto do sítio onde ela trabalhava. Mas tinha pouco dinheiro e havia muito poucas opções dentro do meu orçamento. Estava tão mal que a certa altura liguei para um sítio que tinha visto num site de arrendamentos cuja fotografia principal era de uma casa de banho com bolor nas juntas entre os azulejos, com uma embalagem de champô anticaspa Selsun Blue pousada no polibã, e mais nada.

Desenhei um percurso quixotesco e pouco prático e segui viagem no meu Dodge Stratus até à Califórnia. Era um carro muito feio, mas era grande, e consegui pôr muitas coisas lá dentro. As joias da minha mãe dentro de uma lata cinzenta. Os meus melhores vestidos, cada um no seu invólucro de plástico, dobrados por cima do banco de trás. O meu Derrida e fotografias e menus de restaurantes onde tinha passado noites memoráveis. Óleos essenciais de um lugar sagrado em Florença. Um bocado de erva, um cachimbo, noventa e seis comprimidos das mais variadas formas, em tons de creme e azul. Calças de ioga cor de cobre e bralettes caríssimos, cor de mostarda. Caixas de sal fumado Maldon e vinte embalagens de pastina, que tinha ouvido dizer que não havia à venda nos supermercados da Califórnia. Levei as coisas que só podia levar comigo, que não confiaria a mais ninguém para transportar. O meu lenço favorito, o meu panamá. A minha Diane Arbus. A minha mãe e o meu pai.

Iam ambos em saquinhos de plástico. Pareceu-me que era a maneira mais segura de os transportar. Os saquinhos iam dentro de uma caixa de cartão de clementinas pousada no chão do banco de trás. O meu pai chamava-me Clementine, ou cantava-me a música. As duas coisas, se calhar. Tinha uma barbicha e quando me dava beijinhos na testa eu sentia-me um anjo.

Havia oitenta milhões de carros na Autoestrada da Costa do Pacífico. O sol a bater-lhes nos tejadilhos fazia com que ficasse ainda mais calor. Ao longe, a praia parecia seca, mais superfície cintilante do que profundeza fresca e azul. Mesmo antes da viragem para o desfiladeiro reparei num mercado ao ar livre de mobília e artigos de decoração, troncos de carvalho esvaziados e transformados em mesas, cabeças de deuses esculpidas em resina.

Livro: "Animal"

Autor: Lisa Taddeo

Editora: Editorial Presença

Data de lançamento: 2 de setembro

Preço: 17,01 €

Desviei-me para o mercado porque precisava de jarras novas para as cinzas. Tinha tido de deitar as antigas fora. E tinha sido horrível, claro, a ideia de transportar os restos mortais deles em saquinhos, mas tinha sido muito mais devastador pensar nos restos que tinham ficado para trás nas jarras antigas. Estava sempre a pensar que algumas partes deles se tinham perdido para sempre. Uma unha de um dedo do pé. Ou um terço de uma arcada superciliar.

Saí do Dodge e passei por entre castiçais com redomas de vidro. Desenhei um risco no pó farfalhudo por cima de uma bola espelhada. Passei por cavalos-marinhos de topázio, caveiras de açúcar mexicanas, vidro-do-mar azul em redes de pesca de corda.

Fui abordada por um rapaz de cara redonda que estava de camisola de algodão com capuz, apesar daquele calor todo.

Posso ajudar, minha senhora? O sorriso feliz dele fazia-o parecer ignorante em relação a tudo o que estava a acontecer no mundo.

Não, não pode. Disse-o de uma forma gentil, mas por aquela altura da minha vida já tinha muito pouca paciência para interações inúteis.

O mercado partilhava o estacionamento com uma loja chamada Malibu Feed Bin. Sementes para pássaros, cubas de ração para cavalos. Havia muitos cavalos no desfiladeiro. E mulheres com tranças compridas a cavalgá-los sobre as rochas. É assim que te imagino, mais alta do que eu, majestosa em todos os aspetos.

Dentro do barracão havia jarras ao pé das trepadeiras de petúnias e das rosas poeirentas. Uma das jarras era preta, com flores amarelas. No rebordo tinha uma rã de vidro, com os olhos e os pés cor de laranja, a espreitar para o lado de dentro. Era uma peça pirosa, que não se estranharia na casa de uma velhinha na Florida. Senti-me atraída por ela.

O jovem que estava a trabalhar na caixa registadora viu-me e a partir de então os olhos dele ficaram colados em mim. Eu estava com um vestido branco que parecia uma camisa de noite, tão fino como o fumo. Ele ia esgravatando uma borbulha que tinha no queixo enquanto olhava descaradamente para mim. Todos os dias há centenas de pequenas violações como esta.

Peguei na jarra e continuei a andar pelo mercado com ela na mão, enquanto fingia olhar para almofadas de exteriores e cães de guarda chineses de jade. O funcionário borbulhento recebeu uma chamada. Senti a presença do outro rapaz atrás de mim, estava a arrumar cavalos-marinhos. As pessoas raramente pensam que alguém se vá arriscar a roubar coisas maiores do que a própria cabeça.

*

Com a jarra no carro, senti que já tinha todas as peças de que precisava. Os homens das mudanças iam ter comigo à casa com a conta. Um camião cheio de coisas que eu tinha guardado. Comecei a subir pelo desfiladeiro. Vegetação murcha nas fendas arenosas entre as rochas. Vassouras-vermelhas, avenca-comum, índigo-selvagem-azul, agrostis. Havia algumas cores sarapintadas pelo meio, mas era quase tudo castanho, verde-azeitona e muito mais desarranjado do que eu esperava. As casas que ia vendo da estrada eram estruturas ao estilo dos anos setenta, todas de madeira e vidro fosco. Tinham vista para as cascavéis e a erva queimada. A vista era muito importante no desfiladeiro. A agente imobiliária, que se chamava Kathi, repetiu a palavra vezes sem conta. Vista. A certa altura deixou de me soar a uma palavra conhecida.

Também me tinha falado nos coiotes e nas cascavéis. Mas não se preocupe, disse ela. Ao telefone, soava-me ruiva e bonita. Não se preocupe, o Kevin gosta de apanhar as cascavéis e levá-las para um sítio melhor, não há problema.

O Kevin era o rapper que tinha sido famoso que também vivia naquela propriedade. Pergunto a mim mesma se o nome dele te dirá alguma coisa. A relevância é uma coisa passageira. Também havia um rapaz chamado River que vivia numa iurta no prado. O senhorio vive por perto, disse a agente imobiliária. Para o caso de surgir algum problema. Vai adorar viver aqui. Foda-se, isto é o paraíso.

Fui serpenteando estrada acima até ver o sinal para a Rua Comanche. Fiquei assustada quando vi que a própria rua não tinha um ar minimamente encantador. Não tinha árvores e a casa ficava no cimo de um caminho íngreme coberto de gravilha. Era o ponto mais alto do Desfiladeiro de Topanga, quase a furar as nuvens. Mais do que qualquer outra coisa, parecia o sítio ideal para cozinhar metanfetaminas.

Não havia nenhuma zona identificada para estacionar, por isso deixei o carro ao pé de um Dodge Charger preto que estava parado acima de uma ravina. De perto, a propriedade era parecida com as fotografias que a agente imobiliária tinha enviado, mas não da forma que interessava. A agente imobiliária tinha-me mandado o sonho. Mandou-me a paisagem vista das janelas de vidro e a salamandra. Não mandou a banheira ferrugenta em frente à porta da entrada, cheia de suculentas acastanhadas. Ao lado da banheira-floreira estava uma mesa de ferro forjado com duas cadeiras. A areia cor de gengibre tinha pedrinhas, por isso nem a cadeira nem a mesa estavam bem assentes no chão. Os vidros das janelas eram demasiado finos. A casa era de adobe laranja-escuro, em forma de navio de cruzeiro. Não havia nada de elegante na maneira como tinha sido desenhada, e nada era simétrico. Tanto dentro como fora estava um calor daqueles que matam idosos. Quando penso em ti sozinha no meio de um calor assim — como eu viria a estar —, tenho de me forçar a pensar noutra coisa.

Fiquei de ir bater à porta do Kevin. A casa dele era uma estrutura semipermanente abaixo da minha. Suponho que fosse uma casa com dois apartamentos, mas não era isso que parecia. Era o Kevin que me ia dar as chaves. O nome artístico dele era White Space. A agente imobiliária, a Kathi, falou-me dele como um certo tipo de mulher branca fala de um homem negro que ficou famoso.

Antes de bater à porta, dei uma volta pelo terreno. A Kathi tinha razão. A vista era cinematográfica. Sempre que falávamos ao telefone imaginava-a numa mesa exterior, ao sol, a mordiscar salmão fumado. Tinha a certeza de que se alguma vez a conhecesse a iria detestar.

Abaixo da montanha via-se o mar e, do outro lado do desfiladeiro, os retângulos estreitos da cidade a nascer atrás das árvores. O horizonte era uma desilusão. Andei até ao sítio mais elevado do terreno. Via-se uma névoa fina que deviam ser nuvens. Quando eu tinha dez anos, a minha tia Gosia disse-me que era ali que os meus pais estavam. Lá no alto, entre as nuvens. Mas eles estão juntos lá em cima?, perguntava-lhe eu, e ela levantava-se para ir lavar um prato, ou fechar uma janela.

Havia um sítio para fazer fogueiras no ponto mais elevado. Tinha um ar medieval, com aquelas pedras enormes e os restos de lenha queimada. Debaixo de um linóleo preto estava guardada uma grande quantidade de lenha. Uma garrafa de cerveja Michelob esquecida, cheia de água da chuva.

Reparei na iurta de pano no vale, uns cem metros abaixo. Seguindo um caminho relvado na direção oposta havia uma casinha vermelha estilo saltbox. Parecia um abrigo de madeira, daqueles que se compram nas lojas de ferragens, só que maior e mais elaborado. Era a única parte do terreno que tinha relva, por causa dos carvalhos. Em todo o lado o chão era castanho, cor de noz seca, mas à volta daquele grande abrigo de madeira era húmido e verde. Havia duas floreiras cheias de cravos-túnicos a ladear uma porta com postigo. Temi que aquela casa minúscula pertencesse ao senhorio. Não gostava da ideia de viver tão em cima dele. A Kathi não tinha referido que fosse assim tão perto. De todo.

Descolei o vestido do corpo e ele voltou imediatamente a pegar-se com a cola do meu suor. Rapidamente ia ficar a saber que, no desfiladeiro, um duche não traz grande alívio. Em poucos instantes qualquer T-shirt fica transparente.

Bati à porta do Kevin. Ouvi rap com laivos de blues a sair lá de dentro e pouco depois tornei a bater à porta, com mais força. Ele abriu-a só a um quarto e depois tapou-me a visão da casa com o próprio corpo. Lá dentro cheirava a tinturas.

Cara Joan, paz e bem-vinda ao bairro. Era muito alto e bem-parecido e tinha uns olhos gentis. Não olhou para mim. Olhou através de mim, como se eu mal estivesse ali.

Estendi-lhe a mão e ele veio até cá fora e fechou a porta. Já o tinha visto em palco, agachado com um microfone em punho. Luzes estroboscópicas e raparigas em calções de licra curtinhos. O homem que tinha à minha frente tinha ar de quem nunca tinha falado alto ou dançado a sério.

Que tal foi a viagem?

Eu disse que tinha sido boa.

Meu, adoro fazer essa viagem de carro. Já não a faço há demasiado tempo. Não gosto nada de andar de avião.

Estendeu os braços enormes como se fossem asas. Por essa altura já o meu couro cabeludo estava todo suado.

Também não gosto nada de andar de avião.

Vieste buscar as chaves, certo? Precisas de ajuda a transportar alguma coisa?

Os homens das mudanças estão mesmo a chegar, obrigada.

Muito bem, muito bem. Não tenho limonada para oferecer. Não fiz nenhuma tarte merengada. Mas depois levo alguma coisa. Vai ser bom. Vais gostar de viver aqui, cara Joan. Nós gostamos de aqui viver. É como se fôssemos uma família. Já conheceste o meu amigo Leonard? E o meu companheiro River?

Ainda não vi ninguém.

Vuum, disse ele. A donzela chegou de fininho — a palma da mão dele mergulhou e rasou-me a cintura — na calada da noite. Vou buscar as tuas chaves, cara Joan. Deixar que te instales. Que te sintas em casa.

Quando voltou, passou-me duas chaves presas com um atilho de plástico.

Caixa do correio, disse, a apontar para uma delas. Casa, disse, a apontar para a outra. Não, espera, é ao contrário. Riu-se, deliciado. Hoje estou todo baralhado. Peço desculpa, cara Joan. Passei a noite a gravar. Às vezes faço isso e depois passo a tarde a dormir. Para mim, é como se fossem cinco da manhã.

Peguei nas chaves e as nossas mãos tocaram-se e eu estremeci e pensei, oh, por amor de Deus. Olhei para ele e ele olhou realmente para mim; vi-o claramente a tirar-me as medidas. Depois sorriu. Não estava interessado.

Durante a viagem estava com a ideia fisgada de que havia de ir para a cama com um cowboy a sério, alguém sem presença nas redes sociais. O sexo fazia-me sentir-me bonita. Quando cheguei ao Texas, a viagem já estava quase no fim. O homem com quem fodi chamava-se John Ford. Tinha uma camisa estilo western e pegou-me na mão e pousou-a no fecho-éclair das calças no átrio do Hotel Thunderbird. As paredes do átrio eram verde-água e havia tapetes de pele de vaca espalhados pelo chão. Ele disse-me que em tempos trabalhara num rancho. Mas vim a perceber que tinha sido numa viagem com os escuteiros da qual ele se lembrava como se fosse ontem. Trabalhava como comercial de bebidas alcoólicas em Chicago. Nunca tinha ouvido falar do realizador que tinha o mesmo nome que ele. Nem de Monument Valley, onde os seus filmes tinham sido feitos, os westerns grandiosos que eu vira com a minha mãe. Arrotou duas vezes, demasiado alto para eu conseguir ignorar, e pediu uma piza de massa fina com cebolas em vinagre balsâmico. Mas chamava-se John Ford.