CAPÍTULO 6 - ANGOLA É NOSSA
«Angola é Nossa» é uma canção com letra de Santos Braga e música de Duarte F. Pestana, lançada em junho de 1961, sensivelmente três meses depois dos ataques que deram origem à Guerra Colonial. Interpretado pelo coro e orquestra da FNAT, é um hino heroico e triunfalista, que fechava e abria as emissões de rádio e era cantado nas escolas, incentivando os portugueses a defenderem Angola.
Não deixa de ser surpreendente que Portugal, um país económica, social e militarmente debilitado, tenha conseguido manter as colónias e o império perante a onda descolonizadora, as pressões internacionais e o isolacionismo que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial. Tal deve-se, em larga medida, a Salazar, para quem a Guerra Colonial nascia, não da aspiração independentista dos povos africanos, mas sim de perturbações artificiais dirigidas pelos soviéticos, que tinham elegido os territórios africanos portugueses como um alvo do internacionalismo comunista. Disso dava nota a imprensa afeta ao regime. Por exemplo, o jornal Notícias de Melgaço, em 1961 proclamava: «Sozinhos nos encontrámos nós nas terras africanas quando nos princípios do ano findo hordas russificadas do Congo atacaram os povos indefesos da nossa Angola.»
Esclareça-se que o Presidente do Conselho não estava sozinho na defesa do imperialismo. Era um consenso nacional, consequência direta da tarefa evangelizadora: ao trazer esses «mundos» africanos para o domínio espiritual do cristianismo, Portugal tinha ganho «direito» sobre os mesmos.
À justificação ideológica juntava-se a necessidade económica: depois do «Império da Pimenta» (na Índia) e do «Império do Brasil», procurava concretizar-se então o «Império Africano», visto como chave de um futuro próspero, um imenso e rico território, que poderia alicerçar um regresso a tempos gloriosos. Uma ilusão, por certo. O mundo já não estava no século XVII; Angola não era o Brasil; a África portuguesa não possuía infraestruturas necessárias a um desenvolvimento económico sustentado, nem Portugal tinha os meios para as construir; e os africanos não estavam dispostos a permanecerem submissos aos desígnios de Lisboa, pelo que o projeto de construir uma nova época dourada não passava de uma utopia. Mas tanto os governos monárquicos como os da 1.ª República manifestaram essa ambição.
A chegada do Estado Novo não alterou o consenso nacional em defesa das colónias. Numa nota oficiosa da Presidência do Conselho datada de 1934, podia ler-se que «Para as Colónias nos empurra uma história gloriosa [...]. Para as Colónias temos de dirigir, devagar, mas persistentemente, a nossa vida. Elas podem dar-nos tudo – desde o orgulho coletivo, que faz grandes os povos, até à certeza do trabalho, à glória das realizações, à riqueza, ao bem-estar, à força.»
Esta visão era partilhada pelas elites nacionais, em particular as que mantinham relações privilegiadas com o grande capital (maioritariamente estrangeiro), o grande beneficiário do modelo de exploração implementado nas colónias.
Os próprios colonos brancos em África, apesar de se queixarem das limitações impostas por Lisboa, não exigiam a independência dos territórios; desejavam apenas que Lisboa afrouxasse no centralismo, permitindo-lhes operar sem os constrangimentos orçamentais da metrópole.
À medida que o pós-guerra foi avançando, e com ele os movimentos de descolonização, o direito português às colónias começou a ser contestado internacionalmente. À luz dos princípios autodeterministas e dos Direitos Humanos sancionados pela ONU, a colonização portuguesa era um anacronismo, e o imperialismo deixou de ser um direito, para passar a ser uma violação.
Perante a mudança operada, algumas vozes procuraram sensibilizar Salazar para a necessidade de se antecipar a um potencial conflito e proceder a mudanças no sentido da independência ou autodeterminação. Mas esses esforços esbarraram sempre na intransigência do ditador.
O mundo até podia estar a evoluir no sentido da autodeterminação, mas para Salazar, formado na grandeza e na glória do expansionismo português iniciado com a conquista de Ceuta em 1415, Portugal tinha mais de 500 anos de dominação, o que lhe conferia o direito (bem como o dever) de administrar Angola, Moçambique e todas as restantes possessões. Para Salazar, a nova ordem mundial não mudava o direito português ao império, nem o inscrito na Constituição de 1933, que logo no seu artigo 1.º, declarava que:
«O território de Portugal é o que atualmente lhe pertence e compreende:
- º – Na Europa: o Continente e Arquipélagos da Madeira e dos Açores;
- º – Na África Ocidental: Arquipélago de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe e suas dependências, São João Baptista de Ajudá, Cabinda e Angola;
- º – Na África Oriental: Moçambique;
- º – Na Ásia: Estado da Índia e Macau e respetivas dependências;
- º – Na Oceânia: Timor e suas dependências.»1
O máximo que o regime estava disposto a conceder às colónias era um grau de descentralização administrativa e autonomia financeira de acordo com o «seu estado de desenvolvimento e os seus recursos próprios»2, tendo sempre por base as conveniências e necessidades da metrópole, cuja prosperidade era a razão de ser dos territórios ultramarinos. Como tal, Lisboa exerceu sempre um controlo firme sobre as colónias. Um controlo do qual Salazar não estava disposto a abdicar, nem que para isso tivesse de ir para a guerra. Assim foi.
O COLONIALISMO PORTUGUÊS
A 22 de julho de 1946, a revista Time, uma das muitas que era proibida pela censura em Portugal, publicou um artigo intitulado «Salazar, o Decano dos Ditadores». Escrito tendo como pano de fundo o pedido de Portugal de adesão à ONU, o artigo incidia particularmente sobre a controversa questão colonial portuguesa, apontando para o facto de que, enquanto as outras potências coloniais europeias tinham iniciado negociações tendo em vista a independência das suas colónias, Salazar agia em sentido inverso, aumentando ainda mais o controlo sobre as mesmas.
Acontece que, apesar da designação, o império português era composto por um conjunto de possessões espalhadas por África e Ásia, escasseando os meios militares, humanos, materiais e financeiros necessários à imposição de uma soberania imperial dominadora. Mas essas limitações poderiam ser ultrapassadas, como acreditava Armindo Monteiro, ministro das Colónias entre 1931 e 1935 e um dos ideólogos do regime, para quem as limitações materiais podiam ser superadas criando uma «realidade espiritual de que as colónias seriam a corporização». Simplificando: na ausência de recursos materiais, havia que valorizar os humanos, incutindo nos portugueses um espírito patriótico de missão, de forma a assegurar que o domínio sobre aqueles territórios descobertos e conquistados pelos exploradores portugueses, não se perdia.
Era esta a base de um ideário colonial que, segundo o historiador Fernando Rosas, assentava em quatro pontos:
- A «missão histórica» de colonizar e civilizar;
- O carácter inalienável e indivisível da nação multirracial e pluricontinental;
- A salvaguarda da «herança sagrada» que era o Império;
- E a adoção do «darwinismo social», com o qual se justificava o domínio dos europeus sobre os africanos.
Neste sentido, os anos 1950 marcam uma verdadeira viragem para África. O investimento público e privado aumentou consideravelmente e a partir dos anos 1960, com a abertura dos mercados, também os capitais estrangeiros afluíram às colónias, apostando na prospeção e exploração do subsolo, na construção de infraestruturas ferroviárias, portuárias e aéreas e na instalação de indústrias, a par do incentivo à colonização: entre 1940 e 1960, a população branca de Angola e Moçambique quase que quadruplicou.
Ideologia e economia juntaram-se, assim, na defesa da unidade e da integridade do território nacional. Abdicar destes princípios era uma traição aos valores que tinham tornado a nação grande, pois ao contrário do que se dizia, «Portugal Não É Um País Pequeno», como se demonstrava numa peça de propaganda de 1934, que relembrava aos portugueses a dimensão da nação lusitana.
A legitimidade imperial assentava, assim, no legalismo histórico, mas também numa ideia defendida até à exaustão pelo Estado Novo: a colonização portuguesa era diferente das restantes. Ao contrário do que sucedia, por exemplo, nas colónias francesas ou inglesas, os territórios portugueses eram «oásis de tranquilidade e prosperidade crescente», o que decorria da especificidade da colonização portuguesa, que era «integradora e não segregacionista». Era o próprio Salazar que o garantia:
«[...] Estamos em África há 400 anos, o que é um pouco mais que ter chegado ontem. Levámos uma doutrina, o que é diferente de ser levados por um interesse. [...] Aqui e no Ultramar, em território nacional ou estrangeiro o Português de qualquer cor ou raça sente essa unidade tão vivamente que toma as discussões como ameaças e as ameaças como golpes que lhes retalham a carne [...]. Não temos goeses e moçambicanos em Lisboa? Europeus e cabo-verdianos na Guiné? Angolanos ou guinéus em Moçambique? Moçambicanos em Timor? Pois assim penso deverá continuar a ser. O Governo tem o espírito aberto a todas as modificações da estrutura administrativa, menos às que possam atingir a unidade da Nação e o interesse geral.»3
Contudo, uma leitura atenta do Estatuto do Indígena ou do Ato Colonial de 1930 revela uma realidade distante da propaganda. Mas a ideia pegou e ganhou nome: Lusotropicalismo.
O Lusotropicalismo
O Lusotropicalismo não foi uma criação do Estado Novo. Foi uma teoria postulada pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Ao longo de várias obras, o autor dissertou sobre a natural aptidão do português para se relacionar com as gentes dos trópicos, revelando uma empatia criadora e uma miscigenação simbiótica, fruto do contacto luso com mouros e judeus na Península Ibérica, durante os primeiros séculos da nacionalidade portuguesa.
Segundo Gilberto Freyre, esta tensão entre a Europa católica e a África maometana tinha dado origem a visões antagonistas que os portugueses tinham sabido conciliar, gerando uma «consciência de espécie que unia os lusodescendentes uns aos outros, e que se baseava num acontecimento social e cultural – a miscigenação – que é a negação do purismo étnico».4
Na continuação do seu argumento, Freyre explicava que, ao contrário dos outros europeus, que «ao primeiro contacto com a América equatorial sucumbiram ou perderam a energia colonizadora, a tensão moral, a própria saúde física»5, os portugueses tinham sabido adaptar-se aos trópicos, sem deixarem de ser cristãos e «civilizados».
Ao contrário dos ingleses, por exemplo, que tinham procurado «britanizar» a Índia, os portugueses tinham incorporado na sua experiência as realidades locais, residindo nesta plasticidade, a natureza integradora e não segregacionista do colonialismo português, que «não só conseguiu vencer as condições de clima e solo desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de gente branca para a tarefa colonizadora, unindo-se com mulher de cor. [...] O colonizador português foi o primeiro, de entre os colonizadores modernos, a deslocar a base da colonização tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal – o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim − para a criação local de riqueza»6, dando assim origem à «primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência».entre os africanos7.
Quando os primeiros escritos do sociólogo brasileiro foram publicados, a teoria foi recebida com repulsa pelo Estado Novo. Viviam-se os anos 1930, Salazar era um líder prestigiado e o salazarismo assentava nos valores da raça portuguesa, pelo que não poderia aceitar a valorização da mestiçagem. Vicente Ferreira, procurador da Câmara Corporativa, veiculava a visão oficial para quem o acasalamento com as mulheres nativas era «Erro grave, segundo nos parece! Porventura erro necessário nos primeiros tempos da colonização do Brasil; mas não deve, nas condições atuais de civilização de Angola e Moçambique merecer aplausos e, ainda menos, incitamentos oficiais ou oficiosos. Pelo contrário!»8 Importante era realçar a cultura europeia, o que não poderia ser feito através de uma associação à mestiçagem e à herança árabe e africana do povo português. Aliás, Salazar considerava que o Brasil se tinha tornado independente demasiado cedo, travando o processo de «civilização», pelo que o importante era isolar a raça portuguesa e evitar a miscigenação que dava origem a seres mestiços que eram «biologicamente inferiores».
Com o advento da descolonização e perante a necessidade de afirmar Portugal como uma Nação colonizadora «benigna», o Estado Novo reviu a sua posição e o Lusotropicalismo passou de repudiado a tese de Estado.
Desenvolveu-se então um esforço para doutrinar os diplomatas portuguesas na visão lusotropicalista e «do modo português de estar no mundo»: tolerante, fraterno, plástico, com vocação ecuménica, dedicado em primeiro lugar à «missão civilizadora» e sem obstáculos à mistura racial, provando que os portugueses não eram racistas, nem segregacionistas, pelo que a sua presença em África era legítima.
Na retórica do momento, ao Portugal pluricontinental juntou-se o Portugal multirracial, apresentando o colonialismo português como filantrópico e não ocupador e embora na sua génese a teoria se referisse em especial ao Brasil, o Estado Novo soube importá-la e aplicá-la em África, tendo chegado a utilizá-la na ONU como parte da sua justificação discursiva.
A mudança de atitude traduziu-se num apoio direto ao sociólogo brasileiro, que viu o Estado português publicar as suas obras e patrocinar uma viagem às colónias portuguesas em África, das quais o sociólogo trouxe a impressão de que «o português continua a ser um povo criador»9 animado por «um espírito comum caracterizado principalmente pelo sentimento e pela prática de uma, não direi perfeita, mas bastante avançada democracia étnica e social»10, sendo-lhe até difícil «imaginar hoje como os povos africanos dessa região teriam sobrevivido, não fosse pela providência dos portugueses de introduzir milho, mandioca e batata-doce a essa e a outras partes do continente».11
Indo ao encontro do dogma salazarista, Freyre defendeu que estava em desenvolvimento a criação de um «Novo Homem», fruto da simbiose dos portugueses com os outros povos, um projeto que convinha incentivar, pois significava, segundo Freyre, a superação da condição racial pela cultural, uma prática geradora de uma ordem social comum a homens e grupos de origens e procedências diversas, «acomodados a algumas constantes de comportamento fixadas pela experiência lusitana nos trópicos».12
Para Salazar e para o Estado Novo, a argumentação do sociólogo brasileiro era a confirmação daquilo que afirmavam: que a colonização portuguesa era diferente e, por isso, legítima. Passando da teoria à prática e na tentativa de aproximar a realidade do postulado, foi aprovado um pacote legislativo inspirado no Lusotropicalismo, que eliminou algumas formas de discriminação, ao mesmo tempo que procurou promover o povoamento com europeus, em direção à tão badalada integração multirracial.
Acontece que, apesar da propaganda, a colonização portuguesa em África não diferiu assim tanto da dos seus congéneres europeus. O Relatório sobre os Problemas Nativos nas Colónias Portuguesas, redigido em 1947 por Henrique Galvão, então inspetor-chefe da Administração Colonial, é claro: «em certo ponto de vista, a situação é mais grave que a criada pela escravatura pura. Na vigência desta, o negro comprado, adquirido como um animal, constituía um bem que o seu dono tinha interesse em manter são e escorreito. [...] Agora, o preto não é comprado, é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre. E ao patrão pouco interessa que ele adoeça ou morra, uma vez que vá trabalhando enquanto existir – porque quando estiver inválido ou morrer, reclamará outro. Há patrões que têm 35% de mortes entre o pessoal durante o período do contrato. E não consta que alguém tenha sido privado do fornecimento de mais, quando precisa.»
O relatório parece contrariar a benignidade da colonização portuguesa, que assentou, na realidade, em formas mais ou menos explícitas de escravatura racial e na exploração dos recursos naturais dos países colonizados, com os benefícios a destinarem-se à metrópole e aos europeus, em detrimento das populações locais, sujeitas a uma política de segregação alimentada por um sentimento de superioridade racial, pois os negros, nas palavras de Vicente Ferreira, alto-comissário em Angola entre 1926 e 1928, não passavam de «arremedos grotescos de homens brancos».
A discriminação racial estendia-se igualmente aos nascidos nas colónias: por exemplo, em Lourenço Marques, a «gente de cor» estava proibida de tomar banho no recinto protegido da praia. Já nos transportes públicos em Angola, os «brancos de segunda» (os nascidos nas colónias) sentavam-se atrás dos «brancos de primeira» (de nascimento europeu). Os negros sentavam-se atrás de todos os outros.
Aos negros estava ainda limitado o exercício de atividades profissionais consideradas relevantes, bem como o acesso a cinemas, restaurantes ou cafés frequentados por brancos, sendo-lhes proibido «olhar para as mulheres brancas» ou gesticular no seu sentido, devendo manter «a cabeça baixa», sempre que se dirigiam a um «branco». Para circularem durante a noite era necessário pedir autorização, não podendo passar num passeio onde estivessem brancos.
Nos serviços públicos existiam locais de atendimento específicos para brancos e negros, e, quando não existiam, os negros eram atendidos depois dos brancos, ficando imenso tempo em filas de espera, tempo esse que não era justificado, contando assim como uma falta ao trabalho, que como tal não era remunerado.
Perante as evidências, os africanos não tardaram em denunciar o Lusotropicalismo como um mito, uma cortina de fumo que «forneceu ao regime um sustento ideológico de grande rentabilidade política e a que grande parte da intelligentzia portuguesa se rendeu acriticamente, ou por desconhecimento da situação do terreno, ou por conveniência e conivência política».13
É verdade que algumas medidas positivas emanaram do esforço de ajustar prática e teoria. Foram revogadas peças legislativas altamente discriminatórias e mitigadas práticas de exploração e escravatura, que, embora motivadas pela necessidade de diminuir a pressão externa que se fazia sentir sobe o regime, tiveram o condão de melhorar a condição das populações africanas.
No entanto, no geral, o Lusotropicalismo serviu para mascarar a política colonial portuguesa, que não pretendia fomentar a multirracialidade ou o desenvolvimento local, mas sim preservar o regime e os interesses económicos do Estado Novo.
O uso propagandístico da teoria de Freyre teve ainda o efeito de cristalizar no imaginário luso a ideia de «um modo de estar português no mundo» que contraria a realidade no terreno, ao ponto de ainda hoje existirem setores da sociedade portuguesa que negam o racismo, a discriminação e a segregação da colonização portuguesa, recorrendo aos argumentos emanados do Lusotropicalismo, segundo os quais Portugal não estava a explorar economicamente as colónias, segregando os nativos, mas sim a integrá-los numa lógica cristã e europeia, argumentação que revela um conceito de superioridade cultural, que contraria a própria ideia de igualdade e integração com que o Estado Novo procurava justificar a sua posição.
O Estatuto do Indígena
Nas palavras de Salazar, «Na sociedade plurirracial que pretendemos constituir [...] os indivíduos das diversas raças e credos vão subindo na hierarquia social, ocupando [...] todas as posições compatíveis com as respetivas habilitações e qualidades, sem exclusivismo da parte dos brancos nem da parte dos homens de cor, mas numa confraternização que permite aproveitar todos os valores.»
A promessa fazia parte da propaganda oficial que posicionava o colonialismo português como benigno, mas, pessoalmente, Salazar era um imperialista, crente na superioridade «natural» do «homem branco», a quem cabia a «responsabilidade» de transformar os indígenas «em seres mais evoluídos».
Essa visão surge incorporada no «Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique», de 1926, no «Ato Colonial», de 1930, no «Diploma Orgânico das Relações de Direito Privado entre Indígenas e Não Indígenas», de 1929, e no «Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique», de 1954, documentos que contêm a base legal do colonialismo português.
Uma leitura destes documentos revela que o colonialismo português estava tão imbuído de racismo quanto o das restantes potências coloniais. Não é, pois, de estranhar, que da aplicação destes diplomas tenha resultado a consagração da inferioridade jurídica dos indígenas e o seu estatuto de não-cidadãos. A exploração das populações indígenas foi sistemática, a discriminação legalizada, nenhum investimento foi feito na formação de elites locais e pouco foi investido na melhoria das condições de vida das populações negras. Um africano podia ser esbofeteado na rua, simplesmente por não se afastar para deixar passar um «branco».
Esta discriminação dos africanos começou, obviamente, muito antes do Estado Novo. Mas tanto Salazar como as elites conjugavam na crença de que os africanos eram indígenas primitivos e, como tal, não podiam ser considerados cidadãos. Nessa categoria (de não cidadãos), estavam sujeitos a molduras legais exclusivas que envolviam medidas como a obrigatoriedade do trabalho, o imposto da palhota14, ou o recurso a trabalhos forçados como pena legal. O Estado tinha ainda o poder de obrigar os indígenas a trabalhar em obras públicas, impor culturas agrícolas obrigatórias, ou colocar entraves no acesso à educação ou ao emprego.
Este tratamento discriminatório da população negra era justificado no «Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique», de 1926, segundo o qual «Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais [...]. Mantemos para eles uma ordem jurídica própria do estado das suas faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus sentimentos, da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando por todas as formas convenientes à elevação, cada vez maior, do seu nível de existência».15 Até tal suceder, os indígenas não tinham «direitos políticos em relação a instituições de carácter europeu»16, regendo-se pelos usos e costumes próprios das suas respetivas sociedades.
Dada a missão «civilizadora» do Estado português em África, foram criados instrumentos legais que permitiam (pelo menos em teoria) a indígenas ascenderem à categoria de cidadãos, caso conseguissem provar ter «assimilado os valores da civilização», mas o processo era de tal modo dificultado, que muito poucos foram os que conseguiram a «promoção».
Esta legislação manteve-se até 1954, data em que, seguindo uma nova orientação capaz de dar resposta às crescentes pressões anticolonialistas, foi publicado o «Estatuto dos Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique».
Este novo diploma assegurava que «O Estado promoverá por todos os meios o melhoramento das condições materiais e morais da vida dos indígenas, o desenvolvimento das suas aptidões e faculdades naturais e, de maneira geral, a sua educação pelo ensino e pelo trabalho para a transformação dos seus usos e costumes primitivos, valorização da sua atividade e integração ativa na comunidade, mediante acesso à cidadania».17 No mesmo diploma consagravam-se ainda como direitos dos indígenas, a prestação de assistência médica, o melhoramento das condições sanitárias e o desenvolvimento de técnicas de produção. Foi também institucionalizado o direito a possuir propriedade e a fazer comércio, ainda que sob controlo da administração colonial.
Já no que à organização local diz respeito, o diploma organizava os agregados populacionais em regedorias indígenas, compostas por «todos os indígenas que no seu território habitam permanentemente»18, sendo que os indígenas não poderiam mudar de uma regedoria para a outra sem autorização dos administradores coloniais.
Estes administradores tinham de aprovar, tanto a nomeação dos chefes tribais, como a sua deposição, caso fosse essa a intenção das respetivas tribos. Mas a não concessão «aos indígenas de direitos políticos em relação a instituições não indígenas»19, manteve-se até 1961, ano em que a necessidade de concretizar o discurso Lusotropicalista usado para justificar o colonialismo português, levou à sua revogação.
Mas a mudança legal não alterou significativamente a situação no imediato, pois as populações africanas, sendo ou não cidadãos, continuaram sujeitas a várias formas de discriminação.
Em jeito de resumo, a revogação da legislação colonialista, trouxe igualdade perante a lei, para todos os nascidos nas províncias ultramarinas. Brancos, mestiços ou negros, todos passaram a ter direitos iguais.
Todavia, até tal suceder, a legislação colonial portuguesa limitou a mobilidade social (e até física) e a assimilação, dando origem a um sistema de trabalho semiescravo, cujos principais beneficiários foram as companhias europeias a operar em solo africano. Às ordens dos governos coloniais, a população africana foi frequentemente sujeita a trabalhos forçados e enviada para longe das famílias em condições miseráveis, com elevados custos humanos, económicos e sociais para populações inteiras, tratadas como seres humanos inferiores, desprovidos dos mais elementares direitos e garantias.
Esta situação promoveu os desejos de autodeterminação e o ressentimento para com os colonos, dando à Guerra Colonial um carácter de «guerra justa» contra o racismo imposto pelos «brancos», contribuindo para fazer crescer a pressão externa e descredibilizando o Lusotropicalismo, cujo ideal era contrariado pela realidade que se vivia no terreno.
Notas
1 Constituição da República Portuguesa de 1933
2 Constituição da República Portuguesa de 1933.
3 «Portugal e a Campanha Anticolonialista», discurso proferido por Salazar em 1960.
4 Uma incursão no Lusotropicalismo de Gilberto Freyre, Cláudia Castelo.
5 O Mundo Que o Português Criou, Gilberto Freyre.
6 Ibidem.
7 Idem.
8 Luso‑Tropicalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa, Cláudia Castelo.
9 Um Brasileiro em Terras Portuguesas, Gilberto Freyre.
10 Ibidem.
11 O Luso e os Trópicos, Gilberto Freyre.
12 Uma Incursão no Lusotropicalismo de Gilberto Freyre, Cláudia Castelo.
13 «O Lusotropicalismo enquanto modelo ideológico da gestão colonial portuguesa», Marco Pais Neves dos Santos.
14 O Imposto de Palhota era um imposto a pagar pelos indígenas em géneros ou espécie. Uma vez que a maioria da população não vivia numa economia monetária, era-lhes praticamente impossível ter os montantes necessários para o pagamento do imposto. A solução apresentada era o trabalho por salários baixos ou o cultivo de produtos que tivessem interesse comercial para as companhias.
15 «Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique», 1926.
16 Ibidem.
17 «Estatuto dos Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique», 1954.
18 «Estatuto dos Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique», 1954.
19 Idem.
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