PRÓLOGO

Estou sentado com os pulsos algemados à mesa e penso: Se não me fosse proibido/contar os segredos da minha prisão,/Desvendar-te-ia uma narrativa cuja mais leve palavra/Te retalharia a alma. O guarda, de pé junto à porta, a vigiar-me, parece estar à espera de que aconteça alguma coisa.

Entra em cena Joseph Colborne. É agora um homem grisalho, com quase cinquenta anos. É uma surpresa, de algumas em algumas semanas, ver o quanto envelheceu – e tem envelhecido um pouco mais, de algumas em algumas semanas, ao longo destes dez anos. Senta-se em frente a mim, une as mãos e diz:

– Oliver.

– Joe.

– Ouvi dizer que a audiência da condicional correu a teu favor. Parabéns.

– Agradecia-lhe, se pensasse que estava a ser sincero.

– Sabes que não penso que o teu lugar seja aqui.

– Isso não significa que pense que sou inocente.

– Não. – Suspira e olha para o relógio de pulso (o mesmo que usa desde que nos vimos pela primeira vez), como se eu estivesse a maçá-lo.

– Então, porque está aqui? – pergunto. – Pela mesma razão quinzenal de sempre?

É Desta Que Leio Isto: Em junho recebemos David Machado

Nascido em Lisboa em 1978, o David Machado tem obra tanto em literatura infantil como em ficção contemporânea, sendo que já recebeu diversos prémios na primeira área.

O seu conto infantil "A Noite dos Animais Inventados" recebeu o Prémio Branquinho da Fonseca, da Fundação Calouste Gulbenkian e do jornal Expresso, em 2005. Já "O Tubarão na Banheira" foi distinguido com o Prémio Autor SPA/RTP 2010 de Melhor Livro Infantojuvenil.

Conta ainda no seu catálogo com obras como "Uma Noite Caiu Uma Estrela", "Histórias Possíveis", "Eu Acredito", "Acho que Posso Ajudar", "Os Livros do Rei", "Viagem ao Centro do Escuro" e "O Meu Cavalo Indomável".

Este último é uma das obras que vai ser servir de mote para a conversa, assim como o recém-lançado "Os Reis do Mar", destinado a um público mais juvenil e na senda do que já tinha escrito em "Não te Afastes".

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Além disso, pode ficar a par de tudo o que acontece no clube de leitura através deste link.

As suas sobrancelhas desenham uma linha reta negra.

– É mesmo típico de ti, porra, dizeres «quinzenal».

– Pode-se tirar o rapaz do teatro, mas não se pode tirar o teatro do rapaz, ou coisa do género.

Ele abana a cabeça, simultaneamente divertido e irritado.

– Bem? – digo.

– Bem o quê?

A forca é bem feita. Mas porque é que é bem feita? Porque faz bem aos que fazem o mal – respondo, decidido a merecer a sua irritação. – Porque está aqui? Já devia saber que não vou contar-lhe nada.

– De facto – diz ele –, penso que desta vez talvez consiga fazer-te mudar de ideias.

Sento-me mais direito na cadeira.

– Como?

– Vou sair da polícia. Passei para a concorrência, aceitei um lugar numa empresa de segurança privada. Tenho de pensar nos estudos dos meus filhos.

Por um momento, limito-me a fitá-lo. Sempre imaginei que a única maneira de fazer Colborne abandonar o seu cargo seria abatê-lo como um rafeiro velho e doente.

– Como é que isso havia de me persuadir? – pergunto.

– Tudo o que digas será estritamente off the record.

– Então, para quê dar-se ao trabalho?

Ele volta a suspirar e todas as rugas do seu rosto ficam mais vincadas.

– Oliver, já não me interessa aplicar punições. Alguém cumpriu a pena, e raramente temos esse grau de satisfação no nosso ramo. Mas não quero largar a farda e desperdiçar os próximos dez anos a perguntar-me o que aconteceu realmente há dez anos.

Inicialmente, não digo nada. Agrada-me a ideia, mas não confio nela. Lanço um olhar à minha volta, aos horríveis blocos de cimento, às minúsculas câmaras de vigilância pretas que espreitam de cada canto, ao guarda com o seu queixo espetado. Fecho os olhos, inspiro profundamente e imagino a frescura do tempo de primavera no Illinois, como será sair para o ar livre depois de respirar a custo o ar viciado da prisão durante um terço da minha vida.

Quando solto o ar, abro os olhos e vejo que Colborne me observa com atenção.

– Não sei – digo. – Eu vou sair daqui, de uma maneira ou de outra. Não quero arriscar-me a voltar. Parece mais seguro não despertar os cães.

Tamborila a mesa nervosamente.

– Diz-me uma coisa – pede. – Alguma vez ficas deitado na tua cela a fitar o teto e a perguntares-te como vieste dar aqui, e não consegues dormir porque não consegues parar de pensar naquele dia?

– Todas as noites – respondo, sem sarcasmo. – Mas a diferença é esta, Joe. Para si, foi só um dia, e depois voltou tudo à normalidade. Para nós, foi um dia e todos os dias que se seguiram. – Inclino-me para a frente apoiado nos cotovelos, com o meu rosto a uns centímetros do dele, para que ouça cada palavra quando baixo a voz. – Deve roê-lo por dentro, não saber. Não saber quem, não saber como, não saber porquê. Mas o Joe não o conhecia.

Está agora com uma expressão estranha, enjoada, como se eu me tivesse tornado indizivelmente feio e horrendo de se ver.

– Guardaste os teus segredos este tempo todo – diz. – Isso enlouqueceria qualquer pessoa. Porquê fazê-lo?

– Porque queria.

– Ainda queres?

Sinto o coração pesado no peito. Os segredos pesam como chumbo.

Recosto-me na cadeira. O guarda olha-nos impassível, como se fôssemos dois estranhos a falarem noutra língua, numa conversa distante e incompreensível. Penso nos outros. Em tempos que já lá vão, nós. Fizemos coisas malvadas, mas também necessárias – ou assim pareceu. Olhando para trás, anos depois, não tenho tanta certeza de que fossem necessárias, e pergunto-me agora: poderia explicar tudo aquilo ao Colborne, as pequenas voltas e reviravoltas e êxodos finais? Examino o seu rosto inexpressivo e aberto, os olhos cinzentos ladeados agora por rugas, mas límpidos e brilhantes como sempre.

– Está bem – digo. – Eu conto-lhe uma história. Mas tem de compreender algumas coisas.

Colborne permanece imóvel.

– Estou a ouvir.

– Em primeiro lugar, só começarei a falar depois de sair daqui, não antes. Em segundo lugar, isto não pode ter repercussões nem para mim nem para mais ninguém... nada de dupla incriminação. E, por fim, não é um pedido de desculpa.

Aguardo uma reação dele, um aceno de cabeça ou uma palavra, mas só pestaneja, silencioso e estoico como uma esfinge.

– Então, Joe? – digo. – Consegue aceitar isso? Esboça um sorriso frio.

– Sim, penso que consigo.

CENA 1

Tempo: setembro de 1997, o meu quarto e último ano no Conservatório Clássico Dellecher. Lugar: Broadwater, no Illinois, uma pequena cidade quase sem importância. O outono estava a ser quente, até ao momento.

Entram em cena os atores. Éramos sete nessa altura, sete almas fulgurantes com futuros prodigiosos à nossa frente, embora não víssemos mais longe do que os livros diante dos nossos rostos. Estávamos sempre rodeados por livros e palavras e poesia, todas as paixões ferozes do mundo em papel fino entre capas de carneira. (Atribuo em parte a culpa do que aconteceu a esse facto.) A biblioteca do Castelo era uma sala octogonal arejada, forrada a estantes, atravancada com peças de mobiliário antigas e sumptuosas, e mantida a uma temperatura que provocava sonolência, por um monumental fogão de sala quase constantemente aceso, independentemente da temperatura no exterior. O relógio na prateleira por cima da lareira deu as doze badaladas, e nós mexemo-nos, um a um, como sete estátuas a ganharem vida.

É noite alta – disse Richard. Estava sentado no cadeirão maior como se fosse um trono, com as suas longas pernas estendidas e os pés apoiados na grelha do fogão. Três anos a desempenhar papéis de reis e conquistadores tinham-no ensinado a sentar-se assim em todas as cadeiras, em palco ou fora dele. – E até às oito horas amanhã tornar-nos-emos imortais. – Fechou o livro abruptamente.

Meredith, enroscada como um gato numa ponta do sofá (enquanto eu estava estendido como um cão na outra), pôs-se a brincar com uma madeixa do seu cabelo castanho-arruivado e perguntou: – Aonde vais?

Richard: – Exausto da jornada, corro à cama...

Filippa: – Poupa-nos.

Richard: – Tenho de me levantar cedo.

Alexander: – Diz ele, como se isso o preocupasse.

Wren, sentada de pernas cruzadas em cima de uma almofada junto à lareira e alheia à implicância dos outros, disse: – Já todos escolheram os textos? Não consigo decidir-me.

Eu: – E se escolhesses Isabella? A tua Isabella é excelente.

Meredith: – A Medida é uma comédia, seu tolo. A nossa audição é para o Júlio César.

– Não sei porque nos damos ao trabalho de fazer audições. – Alexander, tombado em cima da mesa, a desfrutar do escuro na parte de trás da sala, estendeu a mão para a garrafa de whisky escocês que estava junto do seu cotovelo. Voltou a encher o copo, bebeu um enorme gole e fez-nos um esgar. – Eu seria capaz de atribuir os papéis todos da porcaria da peça agora mesmo.

– Como? – perguntei. – Eu nunca sei onde vou acabar por ficar.

– Isso é porque te escolhem sempre em último – disse Richard –, no papel que tiver sobrado.

– Então, então – disse Meredith. – Esta noite somos Richard ou somos Dick?1

– Ignora-o, Oliver – disse James. Estava sentado sozinho no canto mais afastado, relutante em levantar os olhos do seu bloco de apontamentos. Sempre fora o aluno mais aplicado no nosso ano, o que (provavelmente) explicava porque era também o melhor ator e (indubitavelmente) porque ninguém lhe guardava rancor por isso.

– Aqui está. – Alexander tinha tirado um maço de notas de dez dólares do bolso e estava a contá-las em cima da mesa. – São cinquenta dólares.

– Para quê? – perguntou Meredith. – Queres uma dança erótica?

– Porquê, estás a praticar para depois de acabares o curso?

– Não me lixes.

– Pede-me com bons modos.

– Cinquenta dólares para quê? – perguntei, desejoso de interromper a conversa. Meredith e Alexander eram de longe os mais malcriados de nós os sete e tinham um orgulho perverso em se insultarem. Se os deixássemos, não parariam toda a noite.

Alexander bateu na pilha de notas de dez dólares com o seu dedo comprido.

– Aposto cinquenta dólares em como sou capaz de dizer a lista do elenco neste preciso momento sem me enganar.

Cinco de nós trocaram olhares curiosos; Wren ainda franzia a testa fitando o lume.

– Está bem, vamos lá ouvi-la – disse Filippa, com um suspiro débil, como se a sua curiosidade tivesse levado a melhor.

Alexander afastou do rosto os seus caracóis pretos rebeldes e disse:

– Bem, obviamente o Richard vai ser César.

– Porque secretamente todos queremos matá-lo? – perguntou James.

Richard arqueou a sua sobrancelha escura.

Et tu, Brute?

Sic semper tyrannis – disse James, e passou a ponta da sua esferográfica pelo pescoço como um punhal. Assim sempre aos tiranos.

Alexander apontou de um deles para o outro.

– Exatamente – disse. – O James vai ser Bruto, porque é sempre o bonzinho, e eu vou ser Cássio, porque sou sempre o mauzão. O Richard e a Wren não podem ser casados, porque isso seria inaceitável, portanto ela vai ser Pórcia; a Meredith, Calpúrnia; e Pip, tu vais acabar por fazer de travesti outra vez.

Filippa, a quem era mais difícil atribuir um papel do que a Meredith (a femme fatale) ou Wren (a donzela inocente), era obrigada a vestir-se de homem sempre que ficávamos sem papéis bons para mulheres, uma ocorrência comum no teatro de Shakespeare.

– Matem-me – disse ela.

– Esperem lá – disse eu, provando efetivamente a hipótese de Richard de que, no processo de escolha dos atores, eu ficava sempre com as sobras –, onde é que isso me deixa?

Alexander observou-me com os olhos semicerrados, passando a língua pelos dentes.

– Provavelmente, vais ser Otávio – decidiu. – Não te vão dar o papel de António; sem ofensa, mas não és suficientemente conspícuo. Vai ser aquele insuportável do terceiro ano, como é que se chama?

Filippa: – Ricardo II?

Richard: – Hilariante. Não, o Colin Hyland.

– Espetacular. – Baixei os olhos para o texto de Péricles que estava a ler pelo que me parecia ser a centésima vez. Tendo só metade do talento de qualquer um dos outros, parecia condenado a desempenhar sempre papéis secundários na história de outra pessoa. Perguntara-me já demasiadas vezes se era a arte a imitar a vida ou a vida a imitar a arte.

Alexander: – Cinquenta dólares em como vai ser esse exato elenco. Quem quer apostar?

Meredith: – Eu não.

Alexander: – Porque não?

Filippa: – Porque isso é precisamente o que vai acontecer. Richard soltou uma gargalhada e levantou-se do cadeirão.

– A esperança é a última a morrer. – A caminho da porta, inclinou-se para beliscar a bochecha de James. – Boa noite, doce príncipe...

James enxotou a mão de Richard com o seu bloco de apontamentos e depois voltou a desaparecer ostensivamente por trás dele. Meredith ecoou a gargalhada de Richard e disse:

Não há sujeito que ferva mais do que tu em Itália!

– Malditas, as vossas duas casas! – murmurou James.

Meredith espreguiçou-se, com um pequeno gemido sugestivo, e levantou-se do sofá.

– Vens para a cama? – perguntou Richard.

– Vou. O Alexander fez com que todo este trabalho pareça bastante inútil. – Deixou os seus livros espalhados sobre a mesa baixa em frente à lareira, o seu copo de vinho vazio junto a eles, com um crescente de batom estampado na borda. – Boa noite – disse à sala em geral. – Que Deus vos acompanhe.

Desapareceram juntos pelo corredor abaixo.

Esfreguei os olhos, que começavam a arder-me com o esforço de ler horas a fio. Wren atirou com o seu livro para trás, por cima da cabeça, e sobressaltei-me quando ele aterrou ao meu lado no sofá.

Wren: – Diabo para isto.

Alexander: – É assim mesmo.

Wren: – Vou só ler a parte de Isabella.

Filippa: – Vai só mas é para a cama.

Wren levantou-se lentamente, piscando os olhos, a dissipar deles os vestígios da luz da lareira.

– O mais provável é ficar deitada sem dormir toda a noite, a recitar falas – disse.

– Queres vir fumar? – Alexander tinha acabado o seu whisky (outra vez) e estava a enrolar um charro na mesa. – Talvez te ajude a relaxar.

– Não, obrigada – respondeu ela, saindo para o corredor. – Boa noite.

– Como queiras. – Alexander empurrou a cadeira para trás, com o charro a despontar do canto da boca. – Oliver?

– Se te ajudar a fumar isso, vou acordar afónico amanhã. – Pip?

Ela empurrou os óculos para o cabelo e tossiu levemente, a testar a garganta.

– Meu Deus, és uma péssima influência – disse. – Está bem.

Ele acenou com a cabeça, já meio fora da sala, com as mãos enterradas nos bolsos. Fiquei a vê-los afastarem-se, com um pouco de ciúme, e depois voltei a recostar-me contra o braço do sofá. Esforçava-me por me concentrar no texto, tão agressivamente anotado que quase já não era legível.

Péricles: Antíoco, adeus! A prudência ensina-me que os homens a quem as ações mais negras do que a noite não fazem corar de rubor, nada poupariam para que tais ações fossem ocultadas. Um crime, sei-o perfeitamente, traz outro; o assassinato anda ligado à concupiscência, como a chama ao fumo.

Murmurei os dois últimos versos em voz baixa. Sabia os versos de cor, sabia-os há meses, mas o receio de esquecer uma palavra ou uma frase a meio da minha audição atormentava-me. Lancei um olhar para o outro lado da sala, a James, e disse:

– Alguma vez te perguntas se Shakespeare sabia estes discursos tão bem como nós?

Ele desviou a atenção dos versos que estava a ler, fossem eles quais fossem, olhou para cima e disse:

– Constantemente.

Esbocei um sorriso, a sentir-me justificado, só o suficiente.

– Bem, desisto. Não estou de facto a fazer nada.

Ele viu as horas.

– Não, acho que eu também não.

Como se Fôssemos Vilões
créditos: Editora ASA

Livro: Como se Fôssemos Vilões

Autor: M. L. Rio

Editora: ASA

Publicação: 21 de junho

Preço: 16,65 €

Icei-me do sofá e segui James pelas escadas de caracol até ao quarto que partilhávamos – que ficava diretamente por cima da biblioteca, o mais alto dos três quartos numa pequena coluna de pedra normalmente chamada a Torre. Em tempos, fora usado como sótão, mas em finais da década de 1970 limparam as teias de aranha e a tralha para criar espaço para mais alunos. Vinte anos depois, alojava-nos a mim e a James, a duas camas com colchas azul-Dellecher, a dois velhos guarda-fatos monstruosos e a um par de estantes desirmanadas, demasiado feias para a biblioteca.

– Achas que vai ser como diz o Alexander? – perguntei.

James tirou a T-shirt, o que lhe despenteou o cabelo.

– Se queres saber a minha opinião, é demasiado previsível.

– Quando é que eles alguma vez nos surpreenderam?

– O Frederick anda sempre a surpreender-me – disse ele. – Mas a Gwendolyn vai ter a última palavra, tem sempre.

– Por ela, o Richard desempenhava todos os papéis masculinos e metade dos femininos.

– O que deixaria a Meredith a desempenhar o resto dos papéis. – Pressionou a base das mãos contra os olhos. – Quando é a tua vez de ler amanhã?

– Logo a seguir ao Richard. A Filippa é depois de mim.

– E eu sou depois dela. Meu Deus, sinto pena dela.

– Eu também – disse. – É espantoso que ainda não tenha desistido. James franziu a testa pensativamente enquanto despia as calças de ganga.

– Bem, ela é um pouco mais resiliente do que o resto de nós.

Talvez seja por isso que a Gwendolyn a atormenta.

– Só porque ela consegue aguentar? – perguntei, deixando as minhas roupas numa pilha no chão. – Isso é cruel.

Encolheu os ombros.

– É a Gwendolyn.

– Se eu mandasse, virava tudo de pernas para o ar – disse eu. – Punha o Alexander a fazer de César e o Richard a desempenhar o papel de Cássio.

Dobrou a manta da cama para trás e perguntou:

– E eu continuo a ser o Bruto?

– Não. – Atirei-lhe uma meia. – Tu és o António. Por uma vez, eu desempenho o papel principal.

– Chegará a tua vez de seres o herói trágico. Espera só pela primavera.

Ergui os olhos da gaveta em que estava a remexer.

– O Frederick andou a contar-te segredos outra vez?

Deitou-se e uniu as mãos por trás da cabeça.

– Talvez tenha mencionado Tróilo e Créssida. Tem a ideia fantástica de a encenar como uma guerra dos sexos. Todos os troianos homens, todos os gregos, mulheres.

– Isso é uma loucura.

– Porquê? A peça é tanto sobre sexo como sobre guerra – disse ele. – A Gwendolyn vai querer que o Richard seja Heitor, claro, mas isso faz de ti Tróilo.

– Porque é que não serias tu o Tróilo?

Ele mudou de posição, arqueou as costas.

– Talvez eu tenha mencionado que gostaria de ter um pouco mais de variedade no meu currículo.

Fitei-o, sem saber bem se devia sentir-me insultado.

– Não olhes assim para mim – disse ele, com uma nota baixa de reprimenda na voz. – Ele concordou que todos precisamos de sair da caixa. Estou farto de desempenhar papéis de tolos apaixonados como o Tróilo, e tenho a certeza de que tu estás farto de desempenhar o papel de parceiro secundário.

Atirei-me de costas para cima da cama.

– Sim, és capaz de ter razão. – Por um momento, deixei vaguear os pensamentos, e depois soltei uma gargalhada.

– É alguma piada? – perguntou James, estendendo o braço para apagar a luz.

– Tu vais ter de ser a Créssida – disse-lhe eu. – És o único de nós suficientemente bonito.

Ficámos ali no escuro a rir até adormecermos, e dormimos profundamente, sem maneira de saber que a cortina estava prestes a descerrar-se para dar início a um drama da nossa própria invenção.

1 — O diminutivo de Richard, Dick, pode também ser usado como termo pejorativo (idiota, parvo) a que anda associado o seu outro sentido, de pénis. (N. da T.)