1 - Porquê ser anticapitalista?
Para muitas pessoas, a ideia de anticapitalismo parece ridícula. Afinal, basta olhar para as fantásticas inovações tecnológicas nos bens e serviços produzidos por empresas capitalistas nos últimos anos: smartphones e filmes em streaming; automóveis sem condutor e redes sociais; curas para inúmeras doenças; ecrãs JumboTron nos jogos de futebol e videojogos ligando milhares de jogadores em todo o mundo; todo o tipo de bens de consumo imagináveis disponíveis na Internet para entrega rápida no domicílio; aumentos espantosos na produtividade no trabalho através de novas tecnologias de automatização; e assim por diante. E, embora seja verdade que os rendimentos são distribuídos de modo desigual nas economias capitalistas, também é verdade que a variedade de bens de consumo disponível e acessível para a pessoa comum, e mesmo para os pobres, tem aumentado significativamente em quase toda a parte. Basta comparar os Estados Unidos no meio século entre 1968 e 2018: a percentagem de americanos com ar condicionado, automóveis, máquinas de lavar roupa, máquinas de lavar louça, televisões e saneamento básico aumentou vertiginosamente nesses cinquenta anos. A esperança de vida aumentou para a maioria das pessoas; a mortalidade infantil diminuiu. A lista é interminável. E hoje, no século XXI, essa melhoria nos níveis de vida básicos também está a acontecer nalgumas das regiões mais pobres do mundo: veja-se a melhoria do nível de vida material dos Chineses desde que a China aderiu ao mercado livre. E mais, veja-se o que aconteceu quando a Rússia e a China experimentaram uma alternativa ao capitalismo! Mesmo contando com a repressão política e a brutalidade, esses regimes foram grandes fracassos económicos. Portanto, se nos preocupamos com melhorar a vida das pessoas, como podemos ser anticapitalistas?
Essa é uma história, a mais comum.
Eis outra história: a «imagem de marca» do capitalismo é a pobreza no meio da abundância. Esse não é o único mal do capitalismo, mas é a característica que representa a maior falha das economias capitalistas. Nomeadamente, a pobreza das crianças, que obviamente não são responsáveis pela sua condição, é moralmente repreensível em sociedades ricas onde essa pobreza podia, com facilidade, ser eliminada. Sim, existe crescimento económico, inovação tecnológica, aumento de produtividade e maior difusão de bens de consumo, mas o crescimento económico capitalista vem acompanhado de miséria para as muitas pessoas cujos meios de subsistência foram destruídos pelo avanço do capitalismo, a precariedade para os que se encontram na base do mercado de trabalho capitalista e trabalho alienante e entediante para a maioria. O capitalismo tem gerado enormes aumentos de produtividade e riqueza extravagante para algumas pessoas, mas a maioria continua a ter dificuldade em ganhar a vida. O capitalismo é uma máquina de crescimento, mas também uma máquina geradora de desigualdades. Além disso, é cada vez mais evidente que o capitalismo, movido pela implacável busca do lucro, está a destruir o ambiente. E, de qualquer maneira, a questão fundamental não é se as condições materiais melhoraram em média com o tempo nas economias capitalistas, mas se, partindo desse momento na história, a situação seria melhor para a maioria das pessoas numa economia alternativa. É verdade que as economias estatais centralizadas e autoritárias da Rússia e da China no século XX foram, em muitos aspetos, fracassos económicos, mas essas não são as únicas possibilidades.
Estas duas histórias baseiam-se nas realidades do capitalismo. Não é uma ilusão achar que o capitalismo transformou as condições materiais da vida no mundo e aumentou enormemente a produtividade humana; muitas pessoas beneficiaram com isso. Mas também não é uma ilusão achar que o capitalismo gera grandes malefícios e perpetua formas de sofrimento humano elimináveis. O verdadeiro desacordo — um desacordo fundamental — é sobre se é possível termos a produtividade, inovação e dinamismo que vemos no capitalismo sem os malefícios. Margaret Thatcher anunciou num famoso discurso no início da década de 1980 que «Não há alternativa»; duas décadas depois, o Fórum Social Mundial declarava que «Um outro mundo é possível». Esse é o debate fundamental.
O principal argumento deste livro é o seguinte: em primeiro lugar, um outro mundo é de facto possível. Em segundo lugar, esse mundo podia melhorar as condições para a prosperidade da maioria das pessoas. Em terceiro lugar, já estão a ser criados elementos desse novo mundo no mundo atual. E, por fim, existem formas de lá chegar. O anticapitalismo é possível não só como uma atitude moral em relação aos malefícios e injustiças no mundo em que vivemos, mas também como uma atitude prática em relação à construção de uma alternativa para uma maior prosperidade humana.
Este capítulo introduz essa argumentação, explicando o que quero dizer com «capitalismo» e, de seguida, explorando as bases para a avaliação do capitalismo como um sistema económico.
Que é o capitalismo?
Como acontece com muitos conceitos usados na vida quotidiana e no trabalho académico, há várias maneiras de definir o «capitalismo». Para muitas pessoas, o capitalismo é o equivalente de uma economia de mercado — uma economia em que as pessoas produzem coisas para serem vendidas a outras através de acordos voluntários. Outras põem a palavra «livre» depois de «mercado», realçando que o capitalismo é uma economia em que as operações de mercado são minimamente regulamentadas pelo Estado. E outras ainda salientam que o capitalismo não é apenas caracterizado por mercados, mas também pela posse privada de capital. Os sociólogos, sobretudo os influenciados pela tradição marxista, normalmente também acrescentam a tudo isso a ideia de que o capitalismo se distingue por um determinado tipo de estrutura de classe em que as pessoas que de facto fazem o trabalho numa economia — a classe operária — não possuem os meios de produção. Isso pressupõe pelo menos duas classes principais na economia — os capitalistas, que possuem os meios de produção, e os trabalhadores, que fornecem a mão de obra enquanto empregados.
Ao longo deste livro, usarei o termo capitalismo para designar não só a ideia de capitalismo como uma economia de mercado, mas também a ideia de que o mesmo é organizado através de um determinado tipo de estrutura de classes. Uma forma de entender essa combinação passa por ver a dimensão do mercado como identificando o mecanismo básico de coordenação de atividades económicas num sistema económico — coordenação através de intercâmbios voluntários descentralizados, oferta e procura, e preços — e a estrutura de classes como identificando as principais relações de poder no sistema económico — entre os detentores privados do capital e os trabalhadores. Este modo de elaborar o conceito indica que é possível ter mercados sem capitalismo. Por exemplo, é possível ter mercados em que os meios de produção são detidos pelo Estado: as empresas são propriedade do Estado e o Estado atribui recursos a essas empresas, ou como investimento direto ou como empréstimos de bancos públicos. A isso podemos chamar economia de mercado estatista (embora algumas pessoas lhe tenham chamado «capitalismo de Estado»). Ou as empresas numa economia de mercado podiam ser vários tipos de cooperativas detidas e geridas pelos seus trabalhadores e clientes. Uma economia de mercado organizada através desse tipo de organização pode ser designada economia de mercado cooperativa. Contrariamente a estes dois tipos de economia de mercado, a característica distintiva de uma economia de mercado capitalista é a forma como os detentores privados do capital exercem o poder não só nas empresas, mas também no sistema económico em geral.
Razões para nos opormos ao capitalismo
O capitalismo gera anticapitalistas. Nalgumas épocas e lugares, a resistência ao capitalismo converte-se em ideologias coerentes com diagnósticos sistemáticos da causa dos malefícios e diretivas claras sobre o que fazer para os eliminar. Noutras circunstâncias, o anticapitalismo encontra-se submerso em motivações que à superfície pouco têm que ver com o capitalismo, como crenças religiosas que levam as pessoas a rejeitar a modernidade e a procurar refúgio em comunidades isoladas. Às vezes, isso assume a forma de trabalhadores a resistirem individualmente no local de trabalho às exigências dos patrões. Outras vezes, o anticapitalismo manifesta-se em organizações laborais envolvidas em lutas coletivas por melhores condições de trabalho. Onde existe o capitalismo existe sempre descontentamento e resistência de uma forma ou de outra.
Em jogo nestas diferentes formas de luta no seio e em torno do capitalismo estão dois tipos gerais de motivação: interesses de classe e valores morais. Podemos opor-nos ao capitalismo porque este prejudica os nossos interesses materiais, mas também porque ofende certos valores morais que nos são importantes.
Há um cartaz dos finais da década de 1970 que mostra uma mulher operária encostada a uma barricada. A legenda diz:
«Consciência de classe é saber de que lado da barricada estás; análise de classe é perceber quem está lá contigo.» A metáfora da barricada apresenta o conflito em torno do capitalismo como algo baseado em conflitos de interesses de classe. Estar em lados opostos da barricada define amigos e inimigos de acordo com interesses antagónicos. Algumas pessoas poderão estar sentadas sobre a barricada, mas, mais cedo ou mais tarde, poderão ter de escolher: «ou estás connosco, ou contra nós». Nalgumas situações históricas, os interesses que definem a barricada são bastante fáceis de perceber. É evidente para quase toda a gente que, nos Estados Unidos antes da Guerra Civil, os escravos foram prejudicados pela escravatura e que, por isso, tinham um interesse de classe na sua abolição, enquanto os proprietários de escravos tinham um interesse na sua perpetuação. Poderão ter existido proprietários de escravos que sentiam alguma ambivalência em relação a possuir escravos — foi certamente o caso de Thomas Jefferson, por exemplo —, mas essa ambivalência não se devia aos seus interesses de classe; devia-se a uma tensão entre esses interesses e determinados valores morais que eles defendiam.
No capitalismo contemporâneo, as coisas são mais complicadas e não é tão evidente como deviam ser entendidos exatamente os interesses de classe. Existem algumas categorias de pessoas para quem os seus interesses materiais no que concerne o capitalismo são bastante claros: os grandes detentores de riqueza e os diretores executivos das empresas multinacionais obviamente têm interesse em defender o capitalismo; os operários fabris explorados no seu trabalho, os trabalhadores manuais não especializados, os trabalhadores precários e os desempregados de longa duração têm interesse em se opor ao capitalismo. No entanto, para muitas outras pessoas em economias capitalistas, as coisas não são tão simples. Alguns profissionais altamente qualificados, gestores e muitos trabalhadores independentes, por exemplo, ocupam o que chamei de lugares contraditórios nas relações de classe e têm interesses bastante complexos e geralmente inconstantes em relação ao capitalismo.
Se o mundo consistisse apenas em duas classes em lados opostos da barricada, então talvez bastasse apresentar o anti-capitalismo exclusivamente em termos de interesses de classe. Basicamente, era assim que o marxismo clássico encarava o problema: mesmo que existisse complexidade na estrutura de classes, a longo prazo a dinâmica do capitalismo teria tendência para criar uma clara delineação de interesses a favor e contra o capitalismo. Nesse contexto, a consciência de classe consistiria sobretudo em compreender como funcionava o mundo e, consequentemente, em como o mesmo servia os interesses materiais de algumas classes à custa de outras. Assim que compreendessem isso, argumentava-se, os trabalhadores rejeitariam o capitalismo. Essa é uma das razões por que muitos marxistas têm defendido que não é necessário desenvolver uma crítica sistemática do capitalismo em matéria de justiça social e défices morais. Basta mostrar que o capitalismo prejudica os interesses das massas; também não é necessário mostrar que é injusto. Os trabalhadores não precisam de ser convencidos de que o capitalismo é injusto ou que infringe princípios morais; basta um diagnóstico convincente a mostrar que o capitalismo é a causa de graves prejuízos para si — que é contra os seus interesses materiais — e que algo pode ser feito a esse respeito.
Este argumento contra o capitalismo, baseado apenas nos interesses de classe, não serve para o século xxi, e provavelmente nunca foi verdadeira e inteiramente adequado. Há aqui três questões em jogo.
Em primeiro lugar, por causa da complexidade dos interesses de classe, haverá sempre muitas pessoas cujos interesses não pertencem claramente em nenhum dos lados da barricada. A sua vontade de apoiar iniciativas anticapitalistas dependerá em parte de que outros tipos de valores estão em jogo. Como o seu apoio é importante para qualquer estratégia viável para superar o capitalismo, é fundamental criar uma coligação em parte em torno de valores e não apenas em torno de interesses de classe.
Em segundo lugar, a realidade é que a maioria das pessoas é motivada pelo menos parcialmente por preocupações morais, não só por interesses económicos práticos. Mesmo para as pessoas cujos interesses de classe são bastante claros, as motivações baseadas em considerações morais podem ser muito importantes. As pessoas muitas vezes agem contra os seus interesses de classe não porque não compreendem esses interesses, mas porque outros valores são mais importantes para si. Um dos casos mais famosos na história é o de Friedrich Engels, o colaborador próximo de Marx, que era filho de um industrial capitalista rico e, no entanto, apoiou sem reservas movimentos políticos contra o capitalismo. Os abolicionistas do Norte dos EUA no século xix opuseram-se à escravatura não em virtude dos seus interesses de classe, mas da crença de que a escravatura estava errada. Mesmo no caso de pessoas para quem o anticapitalismo corresponde aos seus interesses de classe, as motivações baseadas em valores são importantes para sustentar o seu empenho em lutas por transformações sociais.
Por fim, esclarecer esses valores é essencial para se poder refletir sobre a desejabilidade de alternativas ao capitalismo. Precisamos de uma forma de avaliar não só o que está errado com o capitalismo, mas também o que é desejável nessas alternativas. E, se podermos efetivamente construir uma alternativa, precisamos de critérios sólidos para avaliar em que medida a alternativa está a alcançar esses valores.
Assim, embora seja fundamental identificar as formas específicas através das quais o capitalismo prejudica os interesses materiais de algumas categorias de pessoas, também é necessário definir os valores que gostaríamos que uma economia promovesse. O resto deste capítulo examinará os valores que constituem as bases morais do anticapitalismo e a busca de uma alternativa melhor.
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