Tudo isto ocorre porque o nosso inconsciente trabalha na sombra, manieta-nos, impõe-nos ações e reações, comanda muitas das nossas escolhas – dita, inclusive, a propensão para o crime.
Séculos de ciência e de evolução tecnológica dotaram a neurociência de mecanismos que nos permitem mergulhar nos abismos da mente à procura de respostas.
Em Incógnito, o neurocientista David Eagleman atira-se para as águas turvas do inconsciente, explica os efeitos das lesões cerebrais (ou de certos medicamentos) no livre-arbítrio; fala da beleza, da infidelidade, da sinestesia, da inteligência artificial
Olhe bem para si ao espelho. Sob o seu charme irresistível, fervilha um universo oculto de maquinaria altamente complexa. Esta é constituída por um sofisticado esqueleto de ossos encadeados, uma vigorosa rede de músculos, uma quantidade razoável de líquido especializado e uma rede de órgãos internos zoando na escuridão para o manter vivo. Uma camada de material de alta tecnologia, autorregenerador e sensorial, a que chamamos pele, cobre homogeneamente a maquinaria num agradável invólucro.
E, depois, o seu cérebro. Um quilo e meio do material mais complexo que já descobrimos no universo. Este é o centro de controlo da missão que conduz toda a operação, reunindo despachos através de pequenos portais no bunker blindado do crânio.
O seu cérebro é constituído por células designadas neurónios e glia — centenas de milhares de milhões. Cada uma destas células é tão complexa como uma cidade. E cada uma delas contém todo o genoma humano e trafica milhares de milhões de moléculas em intrincada economia. Cada célula envia impulsos elétricos a outras células, chegando a fazê-lo centenas de vezes por segundo. Se a cada um destes biliões e biliões de impulsos no seu cérebro atribuísse um fotão de luz, o resultado final seria ofuscante.
As células encontram-se ligadas umas às outras numa rede de tão assombrosa complexidade que descrevê-la esgotaria os recursos da linguagem humana e criaria a necessidade de novos ramos na matemática. Um neurónio típico estabelece cerca de dez mil ligações com os neurónios vizinhos. Dado que se trata de milhares de milhões de neurónios, isto significa que, num só centímetro cúbico de tecido cerebral, existem tantas ligações como as estrelas que há na Via Láctea. O órgão de quilo e meio alojado no seu crânio – com a sua consistência de gelatina rosada – é um material computacional de tipo alienígena. É constituído por partes miniaturizadas que se autoconfiguram e ultrapassa de longe qualquer coisa que a humanidade alguma vez sonhou construir. Portanto, se se sentir preguiçoso ou estúpido, anime-se: você é a coisa mais atarefada e brilhante do planeta.
A nossa história é incrível. Tanto quanto sabemos, somos o único sistema no planeta tão complexo que nos lançámos de cabeça no desafio de decifrar a nossa própria linguagem de programação. Imagine que o seu computador começava a controlar os respetivos equipamentos periféricos, que removia o invólucro que o envolve e apontava a sua webcam para os seus próprios circuitos. Isso somos nós.
E aquilo que descobrimos ao espreitar para dentro do nosso crânio encontra-se entre os mais significativos avanços intelectuais da nossa espécie: o reconhecimento de que os inúmeros aspetos do nosso comportamento, pensamento e experiência se encontram unidos de forma indissociável a uma vasta e húmida rede eletroquímica a que chamamos sistema nervoso. A maquinaria é-nos profundamente estranha e, porém, de alguma forma somos nós.
A TREMENDA MAGIA
Em 1949, Arthur Alberts viajou da sua casa em Yonkers, Nova Iorque, para uma série de aldeias entre a Costa do Ouro e Tombuctu, na África Ocidental. Levava consigo a sua mulher, uma máquina fotográfica, um jipe e – dado o amor que tinha pela música – um gravador de cassetes que se alimentava da energia do jipe. Com o objetivo de abrir os ouvidos do mundo ocidental, Alberts fez uma das mais importantes gravações de música proveniente do continente africano. Mas deparou-se com alguns problemas sociais ao usar o gravador. Ao ouvir a sua voz gravada, um indígena acusou Alberts de lhe ter «roubado a língua». Alberts conseguiu, por um triz, evitar levar um murro, estendendo um espelho ao homem e convencendo-o de que a sua língua continuava intacta.
Não é difícil compreender por que razão os indígenas acharam o gravador de cassetes tão contraintuitivo. O som da voz é efémero e inefável: é como abrir um saco de penas que se espalham com o vento e nunca poderão ser recuperadas. As vozes não têm peso e são inodoras, não podemos segurá-las na nossa mão.
Por isso, surpreende-nos que a voz seja uma entidade física. Se construirmos um pequeno aparelho com sensibilidade suficiente para detetar as ínfimas compressões das moléculas no ar, é possível captar estas variações de densidade e reproduzi-las em seguida. Chamamos a estas máquinas microfones e cada um dos biliões de rádios que existem no planeta tem o orgulho de oferecer sacos de penas antes julgadas irrecuperáveis. Quando Alberts tornou a passar a música no gravador, o membro de uma tribo da África Ocidental descreveu o feito como uma «tremenda magia».
E o mesmo se passa com os pensamentos. O que é, ao certo, um pensamento? Não parece ter peso. Dir-se-ia efémero e inefável. Não nos passaria pela cabeça que um pensamento possui forma, odor ou qualquer tipo de atributos físicos. Os pensamentos parecem ser uma espécie de «tremenda magia». Mas, à semelhança das vozes, são sustentados por coisas físicas. Sabemo-lo porque alterações no cérebro mudam o tipo de pensamentos que podemos pensar. No sono de onda lenta, não há pensamento. Quando o cérebro transita para o sono REM, existem pensamentos desligados e bizarros. Durante o dia, fruímos dos nossos pensamentos normais e aceites, que as pessoas modulam com entusiasmo, temperando os cocktails químicos do cérebro com álcool, drogas, cigarros, café ou exercício físico. O estado do material físico determina o estado dos pensamentos.
E o material físico é indispensável para o pensamento normal se ir processando. Se feríssemos o dedo mindinho num acidente, ficaríamos aborrecidos, mas a nossa experiência consciente seria a mesma. Pelo contrário, se afetássemos uma porção equivalente de tecido cerebral, isso poderia mudar a nossa capacidade de entender a música, nomear animais, ver cores, ajuizar o potencial de risco, tomar decisões, decifrar os sinais do corpo ou compreender o conceito de espelho – assim desmascarando as estranhas, obscuras operações da maquinaria que jaz por baixo. As nossas esperanças, sonhos, aspirações, medos, instinto cómico, epifanias, fetiches, humores e desejos saem, todos eles, deste estranho órgão – e, quando o cérebro muda, nós também mudamos. Assim, embora seja fácil intuir que os pensamentos não possuem uma base física, que são uma espécie de penas sopradas pelo vento, eles dependem, na verdade, da estreita integridade desse enigmático centro de controlo de missão com um quilo e meio de peso.
A primeira coisa que aprendemos ao estudar os nossos próprios circuitos é uma simples lição: grande parte do que fazemos, pensamos e sentimos não se encontra sob o controlo da nossa consciência. As vastas selvas de neurónios operam os seus próprios programas. O que é consciente em si – o eu que desperta para a vida quando o leitor acorda de manhã – é a parte mais pequena do que está a acontecer no seu cérebro. Embora estejamos dependentes do funcionamento do cérebro nas nossas vidas interiores, o cérebro dirige o seu próprio espetáculo. A maior parte das suas operações está acima da habilitação de segurança da mente consciente. O eu não tem, simplesmente, acesso.
A consciência é como um minúsculo passageiro clandestino num vapor transatlântico, colhendo os louros da viagem sem reconhecer a gigantesca engenharia que existe sob os seus pés. Este livro debruça-se sobre esse facto extraordinário: como o sabemos, o que significa e o que nos diz acerca das pessoas, dos mercados, dos segredos, das strippers, das pensões de reforma, dos criminosos, dos artistas, de Ulisses, dos alcoólicos, das vítimas de um acidente vascular cerebral, dos jogadores, atletas, detetives, racistas, amantes, e de toda e qualquer decisão que alguma vez julgou ser sua.
Numa experiência recente, foi pedido a um grupo de homens que classificasse uma série de fotografias de rostos de mulheres segundo o grau de atração por elas exercida. As fotografias eram de vinte centímetros por vinte e cinco e mostravam mulheres de frente para a câmara ou viradas de perfil a três quartos. Sem o conhecimento dos homens, em metade das fotografias, os olhos das mulheres estavam dilatados e, na outra metade, não estavam. De um modo geral, os homens sentiram-se mais atraídos pelas mulheres de olhos dilatados. Mas, o que é espantoso é que não tiveram qualquer consciência do seu processo decisório. Nenhum deles disse: «Reparei que as pupilas desta mulher estavam dois milímetros mais dilatadas do que as pupilas daquela.» Simplesmente, sentiram-se mais atraídos por certas mulheres do que por outras, por razões que não conseguiam ao certo identificar.
Portanto, quem estava a fazer a escolha? Nas quase insondáveis operações do cérebro, algo sabia que os olhos dilatados de uma mulher se encontram relacionados com o desejo sexual e a prontidão. Os seus cérebros sabiam-no, mas os homens que participaram neste estudo não – pelo menos, não de uma forma explícita. Do mesmo modo, talvez desconhecessem que as suas noções de beleza e sentimento de atração se encontram profundamente estabelecidos no nosso hardware, dirigidos por programas esculpidos por milhões de anos de seleção natural. Quando estavam a escolher as mulheres mais atraentes, desconheciam que essa escolha não lhes cabia realmente a eles, mas a programas bem-sucedidos que tinham sido inscritos no âmago dos circuitos do cérebro ao longo de centenas de milhares de gerações.
Os cérebros dedicam-se a reunir informação e a conduzir o comportamento de forma apropriada. Não interessa se a consciência está ou não envolvida no processo decisório. E a maior parte das vezes não está. Quer se trate de olhos dilatados, ciúme, atração, o gosto por alimentos gordos ou a ideia genial que tivemos a semana passada, a consciência é o agente menos decisivo nas operações do cérebro. Os nossos cérebros funcionam a maior parte do tempo em piloto automático, e a mente consciente tem pouco acesso a essa fábrica gigantesca e misteriosa que trabalha na cave.
Confirmamo-lo quando o nosso pé avança metade do caminho até ao travão antes de tomarmos consciência de que um Toyota vermelho está a sair de uma garagem mais à frente. Vemo-lo quando reparamos que alguém na outra ponta da sala disse o nosso nome numa conversa que julgávamos não estar a ouvir, ou quando achamos uma pessoa atraente sem saber porquê, ou quando o nosso sistema nervoso nos dá uma «dica» acerca da decisão que devíamos tomar.
O cérebro é um sistema complexo, mas isso não significa que seja incompreensível. Os nossos circuitos neuronais foram esculpidos pela seleção natural para resolver problemas com que os nossos antepassados se depararam durante a história da evolução da nossa espécie. O cérebro foi moldado por pressões evolutivas, da mesma forma que o baço e os olhos. E o mesmo se passou com a consciência. A consciência desenvolveu-se porque era uma vantagem, mas uma vantagem apenas em doses limitadas.
Imagine a atividade que caracteriza uma nação a qualquer momento. Fábricas fervilham, linhas de telecomunicações ciciam de atividade, empresas enviam as suas mercadorias em navios. Pessoas comem a toda a hora. Canais de esgoto dirigem os desperdícios. Por toda a parte, em vastas extensões de terra, polícias perseguem criminosos. Apertos de mão selam negócios. Amantes encontram-se. Secretárias atendem chamadas, professores ensinam, atletas competem, cirurgiões operam, condutores de autocarros conduzem. O leitor poderá querer saber o que está a acontecer a qualquer momento na sua grande nação, mas nunca conseguirá absorver toda a informação ao mesmo tempo. Nem lhe seria útil, mesmo se conseguisse. O que pretende é uma síntese. Por isso, pega num jornal – não um jornal denso como o The New York Times, uma coisa mais leve, como o USA Today. E não ficará surpreendido se não encontrar qualquer pormenor dessa atividade registado no seu jornal; afinal, o leitor quer saber que conclusão tirar. Quer saber se o Congresso acabou de promulgar uma nova lei fiscal que afeta a sua família, mas a origem pormenorizada das ideias – que envolve advogados, empresas e obstrucionistas – não é importante para chegar a essa nova conclusão. E decerto que não quer saber todas as particularidades do aprovisionamento alimentar da nação – como estão as vacas a comer e quantas estão a ser comidas. Só quer ser alertado se houver um surto da doença das vacas loucas. Não lhe interessa como é produzido o lixo e levado para longe; só lhe interessa se este for parar ao seu quintal. Não lhe interessa saber da instalação elétrica e infraestrutura das fábricas; interessa-lhe saber se os seus operários vão entrar em greve. É essa informação que obtém quando lê o jornal.
A sua mente consciente é esse jornal. O cérebro fervilha de atividade vinte e quatro horas por dia e, à semelhança do que se passa com a nação, tudo acontece localmente: pequenos grupos tomam decisões a toda a hora e enviam mensagens a outros grupos. Destas interações locais emergem coligações mais vastas. No momento em que o leitor lê uma manchete mental, a ação importante já teve lugar, os dados já foram lançados. O seu acesso aos bastidores é surpreendentemente limitado. Verdadeiros movimentos políticos reúnem apoios de base e tornam-se imparáveis antes mesmo de se converterem num sentimento, intuição ou ideia que lhe atravessa o pensamento. O leitor é o último a receber a informação.
No entanto, trata-se de um leitor de jornais peculiar, que lê a manchete e colhe os louros da ideia como se esta tivesse sido sua. Radiante, exclama: «Acabei de pensar numa coisa!», quando, na verdade, o seu cérebro já realizou um enorme volume de trabalho antes de esse rasgo de génio se manifestar. Quando uma ideia lhe é servida a partir dos bastidores, isso significa que os seus circuitos neuronais já trabalham nela há horas, dias ou anos, consolidando informação e experimentando novas combinações. Mas o leitor colhe os louros sem se interrogar a respeito da vasta, secreta maquinaria que opera nos bastidores.
E quem poderá censurá-lo por pensar que merece tal crédito? O cérebro engendra as suas maquinações em segredo, conjurando ideias como «tremenda magia». Não permite que o seu colossal sistema operativo seja sondado pela cognição consciente. O cérebro dirige o seu espetáculo incógnito.
Portanto, quem, em bom rigor, merece o prémio por uma ideia genial? Em 1862, o matemático escocês James Clerk Maxwell desenvolveu um conjunto de equações fundamentais que unificaram a eletricidade e o magnetismo. No leito de morte, tossiu uma estranha confissão, declarando que «algo dentro dele», não ele próprio, descobrira as famosas equações. Maxwell admitiu que não sabia como lhe tinham surgido tais ideias – simplesmente elas vinham ao seu encontro. William Blake descreveu uma experiência semelhante ao referir-se a Milton, o seu longo poema narrativo: «Escrevi este poema sob premente ditado, doze e mesmo vinte versos de seguida, sem premeditação e mesmo contra a minha vontade.» Johann Wolfgang von Goethe alegou ter escrito a sua novela A Paixão do Jovem Werther com quase nenhuma intervenção consciente, como se estivesse a segurar numa pena que se movia sozinha.
E veja-se o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge. Começou a consumir ópio em 1796, de início para aliviar dores de dentes e uma nevralgia facial, mas cedo sucumbiu ao vício, chegando a tragar dois quartos de láudano por semana. O poema Kubla Khan, de sua autoria, com a sua exótica e onírica imagística, foi escrito sob o efeito do ópio e apresentado como «uma espécie de delírio». Para Coleridge, o ópio tornou-se uma forma de aceder aos circuitos neuronais do subconsciente. Nós atribuímos-lhe as belas palavras de Kubla Khan, uma vez que elas provieram do seu cérebro e de nenhum outro, não é verdade? No entanto, se Coleridge não produziu estas palavras sóbrio, a quem pertence, ao certo, o crédito pelo poema? Nas palavras de Carl Jung, «em cada um de nós, existe um outro quem que nos é desconhecido». Nas dos Pink Floyd, «há alguém na minha cabeça, mas não sou eu».
* * *
Quase tudo o que acontece na nossa vida mental não se encontra sob o controlo da nossa consciência e, na verdade, ainda bem que assim é. A consciência pode colher todos os louros que quiser, mas é preferível que seja mantida à margem da maior parte das decisões que vão sendo tomadas no cérebro. Quando se intromete em pormenores que não domina, a operação decorre com menos eficácia. É por isso que, se deliberar sobre os sítios onde os seus dedos estão a saltar sobre o teclado, o pianista já não consegue tocar a peça.
Para demonstrar a interferência da consciência com um truque que resulta bem em festas, passe a uma amiga dois marcadores apagáveis – um para cada mão – e peça-lhe que assine o seu nome com a mão direita, escrevendo-o, ao mesmo tempo, ao contrário (como num espelho), com a mão esquerda. Ela depressa descobrirá que só há uma maneira de fazê-lo: não pensando nisso. Excluindo a interferência da consciência, as suas mãos são capazes de fazer, sem dificuldade, movimentos especulares complexos. Mas, se pensar no que está a fazer, a tarefa depressa se embrulha num matagal de gaguez gestual. Por esta razão é preferível que a consciência não seja convidada para a maior parte das festas. E, quando é incluída, costuma ser a última a receber o convite. Veja-se, por exemplo, o gesto de bater numa bola de basebol. A 20 de agosto de 1974, num jogo dos California Angels contra os Detroit Tigers, o Livro de Recordes Mundiais do Guinness cronometrou a bola rápida de Nolan Ryan em 160,901 quilómetros por hora (44,7 metros por segundo). Se fizer as contas, verá que o lançamento de Ryan parte do montículo e atravessa o home plate – dezoito metros e quinze centímetros – em quatro décimos de segundo. Isto dá tempo suficiente para os sinais de luzes da bola de basebol atingirem os olhos do batedor, percorrerem o circuito da retina, ativarem sequências de células ao longo das autoestradas super-rápidas e espiraladas do sistema visual – na parte de trás da cabeça –, atravessarem extensos territórios até às áreas motoras e modificarem a contração dos músculos que balançam o taco. É surpreendente que toda esta sequência seja exequível em menos de quatro décimos de segundo; caso contrário, ninguém conseguiria alguma vez bater numa bola rápida. Mas o mais intrigante é que a tomada de consciência demora mais tempo do que isso: cerca de meio segundo, como veremos no capítulo 2. Portanto, a bola viaja demasiado depressa para os batedores tomarem consciência dela. Não precisamos de ter consciência do que estamos a fazer quando executamos movimentos motores complexos. O leitor pode confirmá-lo quando começa a desviar-se do ramo partido de uma árvore antes de reparar que ele vem na sua direção ou quando já está a levantar-se antes de tomar consciência de que o telefone está a tocar. A mente consciente não se encontra no centro da ação que tem lugar no cérebro; está, sim, desterrada numa margem distante, ouvindo apenas os ecos da atividade em curso.
O LADO POSITIVO DA DEPOSIÇÃO
O emergente conhecimento do cérebro altera profundamente o modo como nos vemos a nós próprios, desviando-nos de uma noção intuitiva de que nos encontramos no centro das operações para uma visão mais sofisticada, esclarecedora e intrigante da situação. E a verdade é que já assistimos, no passado, a progressos desta natureza.
Numa noite estrelada no início de janeiro de 1610, um astrónomo toscano chamado Galileu Galilei ficou acordado até tarde, com o olho encostado à extremidade de um tubo por ele mesmo concebido. O tubo era um telescópio e fazia com que os objetos parecessem vinte vezes maiores do que eram a olho nu. Nessa noite, Galileu observava Júpiter e avistou aquilo que julgou serem três estrelas fixas nas suas imediações. Três estrelas distribuídas por uma linha à volta do planeta. Esta formação intrigou-o e Galileu tornou a procurá-la na noite seguinte. Contra as suas expectativas, viu que os três corpos se tinham deslocado com Júpiter. Isto não fazia sentido: as estrelas não são arrastadas com os planetas. Por isso, Galileu tornou a concentrar-se na formação, noite após noite. A 15 de janeiro já tinha resolvido o enigma: não se tratava de estrelas fixas, mas de corpos planetários que giravam à volta de Júpiter. Júpiter tinha luas.
Esta observação fez estremecer as esferas celestiais. Segundo a teoria ptolemaica, só havia um centro único – a Terra –, à volta do qual tudo o resto girava. Uma ideia alternativa fora proposta por Copérnico, segundo a qual a Terra girava à volta do Sol e a Lua à volta da Terra, mas esta ideia parecia absurda aos olhos dos cosmólogos tradicionais, porque implicava a existência de dois centros de movimento. No entanto, ali, naquela noite tranquila de janeiro, as luas de Júpiter provaram a existência de múltiplos centros: grandes pedregulhos aos trambolhões, descrevendo uma órbita à volta do planeta gigante, não podiam fazer parte da superfície das esferas celestiais. O modelo ptolemaico, segundo o qual a Terra se situava no centro de órbitas concêntricas, fora destruído. O livro em que Galileu descreve esta descoberta, Sidereus Nuncius, foi impresso em Veneza em março de 1610 e garantiu a posteridade ao seu autor. Seis meses passaram até outros astrónomos conseguirem construir instrumentos com qualidade suficiente para observar as luas de Júpiter. Em pouco tempo, deu-se um aumento súbito da procura de telescópios, e não foi preciso muito para os astrónomos se espalharem pelo planeta para fazer um mapa pormenorizado do nosso lugar no universo. Os quatro séculos seguintes garantiram-nos um desterro acelerado do centro, reduzindo-nos sem tréguas a uma ínfima partícula no universo visível, que contém 500 milhões de grupos galácticos, 10 mil milhões de galáxias grandes, 100 mil milhões de galáxias anãs e 2000 triliões de sóis. (E o universo visível, com cerca de 15 mil milhões de anos-luz de largura, pode ser uma partícula no meio de uma totalidade ainda maior, que nós não conseguimos ver.) Não admira que estes extraordinários números implicassem uma história da nossa existência muito diferente daquela que antes fora sugerida.
Para muitos, o afastamento da Terra do centro do universo causou uma profunda inquietude. A Terra já não podia continuar a ser considerada o ex-líbris da criação: era um planeta como os outros. Este desafio à autoridade exigiu uma mudança na visão filosófica do universo. Cerca de duzentos anos mais tarde, Johann Wolfgang von Goethe celebrou a dimensão da descoberta de Galileu:
De todas as descobertas e opiniões, nenhuma terá exercido maior impacto no espírito humano... O mundo mal se tornara conhecido como entidade redonda e completa em si mesma quando lhe foi exigido que renunciasse ao tremendo privilégio de ser o centro do universo. Nunca, talvez, se pediu tanto à humanidade – pois, ao reconhecê-lo, tantas coisas se sumiam em fumo e nevoeiro! Que dizer do nosso Éden, o nosso mundo de inocência, piedade e poesia; o testemunho dos sentidos; a convicção de uma fé poético-religiosa? Não admira que os seus contemporâneos não desejassem abrir mão de tudo isto e oferecessem toda a resistência que podiam a uma doutrina que, nos seus convertidos, autorizava e exigia uma abertura de espírito e uma grandeza de pensamento até então desconhecidas, aliás, nunca sequer sonhadas.
Os críticos de Galileu desacreditaram a sua nova teoria como uma deposição do homem. E, seguindo a ruína das esferas celestiais, veio a ruína de Galileu. Em 1633, foi levado ao Tribunal da Inquisição da Igreja Católica, quebrado numa masmorra e obrigado a rabiscar a sua ressentida assinatura numa geocêntrica abjuração da sua tese.
Galileu podia dar-se por feliz. Anos antes, um outro italiano, Giordano Bruno, também sugerira que a Terra não era o centro do universo e, em fevereiro de 1600, fora arrastado para a praça pública pelas heresias cometidas contra a Igreja. Os perseguidores de Giordano Bruno, temendo que a sua famosa eloquência pudesse inflamar a multidão, cobriram-lhe a cara com uma máscara de ferro que o impedia de falar. Por fim, queimaram-no vivo no poste, os seus olhos espreitando, por detrás da máscara, para uma multidão de mirones que saía de casa e acorria à praça, na ânsia de estar no centro das coisas.
Porque foi Giordano Bruno exterminado, sem direito a uma palavra sequer? Como é que um homem com o génio de Galileu acabou acorrentado no chão de uma masmorra? É evidente que nem toda a gente aprecia uma mudança radical de visão do mundo.
Se ao menos pudessem saber ao que tudo isto conduziu! O que a humanidade perdeu em certeza e egocentrismo foi substituído pelo assombro e pela maravilha perante o lugar que ocupamos no cosmos. Mesmo que a existência de vida noutros planetas seja terrivelmente improvável – digamos que as probabilidades são menos de uma para mil milhões –, ainda podemos esperar que em vários milhares de milhões de planetas a vida germine como Chia Pets. E, se houver apenas uma possibilidade num milhão de existirem planetas com vida capaz de produzir níveis significativos de inteligência (digamos, superiores ao das bactérias espaciais), isso ainda apontaria para vários milhões de esferas com criaturas misturadas em civilizações de insuspeitável estranheza. Neste sentido, o afastamento do centro abriu as nossas mentes a algo muito mais vasto.
Se a ciência do espaço o fascina, prepare-se para o que está a acontecer na ciência do cérebro: fomos derrubados da nossa intuída posição no centro de nós próprios, e revelou-se um universo ainda mais espantoso. Neste livro viajaremos para esse cosmos interior para investigar as suas alienígenas formas de vida.
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