Prólogo
Em 1634, a Companhia Holandesa das Índias Orientais era a companhia mercante mais próspera do mundo, com postos espalhados pela Ásia e o Cabo. O mais lucrativo destes era Batávia [atual Jakarta], que expedia macis, pimenta e sedas de retorno a Amesterdão a bordo da sua frota de galeões provenientes da Índia.
A viagem tinha uma duração de oito meses e estava repleta de riscos.
Em grande medida, os oceanos não estavam mapeados e os recursos de navegação eram rudimentares. Somente uma rota certa existia entre Batávia e Amesterdão, e os navios que vagueavam muito para lá dela acabavam frequentemente perdidos. Até mesmo aqueles que se mantinham dentro destas «linhas de orientação» estavam à mercê de doenças, tempestades e piratas.
Muitos daqueles que embarcaram em Batávia nunca chegaram a Amesterdão.
Capítulo 1
Arent Hayes uivou de dor quando uma pedra acertou no seu enorme costado.
Uma outra rasou-lhe a orelha e uma terceira atingiu-lhe o joelho, fazendo-o cambalear. A multidão impiedosa irrompeu em zombaria, os olhares já pousados no chão à procura de novos mísseis de arremesso. Centenas de pessoas eram impedidas de avançar pela guarda da cidade, os seus lábios salpicados de cuspo bradando insultos, os olhares negros de malícia.
— Por amor de Deus, protege-te — implorou Sammy Pipps por cima do tumulto, e as suas grilhetas brilharam à luz do sol após um passo vacilante pelo chão empoeirado. — É a mim que eles querem.
Arent tinha duas vezes a altura e três a largura da maioria dos homens em Batávia, Pipps incluído. Embora não fosse ele próprio prisioneiro, colocara o seu grande corpo entre a turba e o seu amigo reduzido, proporcionando às pessoas pouco mais do que uma nesga de espaço para pontaria.
O urso e o pardal. Assim os chamavam antes de Sammy ter caído em desgraça. Em nenhuma outra ocasião tais cognomes encaixariam melhor.
Pipps estava a ser levado das masmorras até ao porto, onde um navio esperava para o transportar até Amesterdão. Eram escoltados por quatro mosqueteiros, embora estes mantivessem a sua distância, cautelosos, não fossem os próprios tornar-se alvos.
— Pagas-me para te proteger — rosnou Arent, limpando o suor do rosto enquanto tentava medir a distância até à segurança. — Vou fazê-lo até não conseguir mais.
O porto situava-se para lá de um par de portões enormes na extremidade da avenida central de Batávia. Quando esses portões estivessem fechados atrás de si, estariam longe do alcance da multidão. Infelizmente, estavam na ponta de uma longa procissão que se movia lentamente sob o calor. Os portões pareciam tão longe como quando saíram da humidade sufocante da masmorra, ao meio-dia.
Uma pedra tombou junto dos pés de Arent, sujando-lhe as botas de areia seca. Outra fez ricochete nas grilhetas de Sammy. Os comerciantes estavam a vendê-las, tiradas de sacos, e a fazer bom dinheiro com isso.
— Raios parta Batávia — queixou-se Arent. — Estes bandalhos são incapazes de aguentar uma algibeira vazia.
Num dia normal, estas pessoas estariam a comprar de padeiros, alfaiates, sapateiros, encadernadores e veleiros espalhados pela avenida. Estariam a sorrir e a rir, a queixar-se do calor infernal. Porém, bastava mostrar-lhes um homem em grilhetas, oferecê-lo ao tormento, e até a alma mais benevolente se rendia ao diabo.
— É o meu sangue que querem — retorquiu Sammy, tentando empurrar Arent para longe. — Afasta-te e protege-te, imploro-te.
Arent baixou o olhar até ao amigo apavorado, as suas mãos pressionadas frouxamente contra o seu peito. Os seus caracóis escuros estavam colados à testa, as maçãs do rosto proeminentes roxas dos espancamentos que sofrera durante o aprisionamento. Os olhos castanhos, tipicamente sarcásticos, arregalados e desesperados.
Até mesmo maltratado, era um tipo bonito.
Como contraste, o cabelo de Arent estava rapado curto, o nariz era espalmado. Alguém arrancara um pedaço da sua orelha direita numa contenda, e uma flagelação pouco cuidadosa há uns anos deixara-o com uma longa cicatriz do queixo ao pescoço.
— Estaremos em segurança quando chegarmos às docas — disse Arent, obstinado, erguendo a voz para se sobrepor à algazarra que se fazia ouvir na frente.
A procissão era liderada pelo governador-geral Jan Haan, de costas retas em cima de um garanhão branco, uma couraça apertada sobre um gibão, uma espada a retinir à cintura.
Há treze anos, comprara a vila que ali existira em nome da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Não passara um segundo da celebração do contrato até atear fogo à vila e usar as cinzas para desenhar as estradas, os canais e os edifícios da cidade que ali iria nascer.
Batávia era agora o posto mais rentável da Companhia e Jan Haan fora chamado a Amesterdão para se juntar ao corpo legislativo, os enigmáticos 17 Cavalheiros.
A multidão chorava e bradava enquanto o garanhão abria caminho a trote pela avenida, esticavam os seus dedos em direção ao governador-geral, tentavam tocar-lhe nas pernas. Flores eram atiradas para o chão, uma bênção à sua passagem.
O homem ignorou todos os gestos, manteve o queixo erguido, o olhar fixo em frente. Calvo e de nariz pontiagudo, Jan Haan lembrava Arent de um falcão pousado sobre um cavalo.
Quatro escravos ofegantes penavam a tentar acompanhá-lo. Carregavam um palanquim dourado dentro do qual a esposa e a filha do governador-geral se sentavam, e uma criada de face ruborizada seguia apressada, abanando-se para afastar o calor.
Atrás deles, quatro mosqueteiros de pernas arqueadas seguravam os cantos de uma caixa pesada na qual repousava o Engenho. Suor escorria-lhes das testas e cobria-lhes as mãos, o que dificultava a aderência à caixa. Tropeçavam frequentemente, e o horror desenhava-se-lhes nos rostos. Tinham noção da punição que os esperava caso o prémio do governador acabasse danificado.
Ainda mais atrás, um conjunto desordenado de cortesãos e aduladores, vendedores reconhecidos e favoritos da família; os seus anos de intrigas recompensados pela oportunidade de passar uma tarde desconfortável a ver o governador-geral partir de Batávia.
Distraído pelas suas observações, Arent deixou formar espaço entre si e o amigo. Ouviu-se um silvar e uma pedra encontrou o rosto de Sammy, resultando num gotejar de sangue e mais zombaria da multidão.
Sem paciência, Arent pegou numa pedra e atirou-a ao atacante, atingindo-o no ombro. O homem rodopiou até ao chão. A turba uivou, indignada, arremessando-se contra os guardas que mal a conseguia conter.
— Boa pontaria — murmurou Sammy de forma elogiosa, baixando-se para fugir de uma chuva de pedras que se fazia cair à sua volta.
Arent manquejava quando chegaram às docas, o seu corpo massivo cheio de dores. Sammy tinha alguns ferimentos, mas de pouca dura. Mesmo assim, soltou um clamor de alívio quando os portões se abriram à sua frente.
Do outro lado, estava um amontoado de caixas e cordas enroladas, barris empilhados e galinhas que grasnavam em cestos de vime. Porcos e vacas olhavam-nos melancolicamente, e estivadores bradavam enquanto carregavam a carga para barcos a remos que boiavam na extremidade das águas, prontos para serem levados até aos sete galeões indianos ancorados no porto reluzente. De velas ferradas e mastros descobertos, assemelhavam-se a escaravelhos mortos, de patas para o ar. Porém, não tardaria até se encherem com mais de trezentos passageiros e tripulação.
As pessoas agitavam os seus porta-moedas aos ferryboats que andavam para trás e para diante, avançando quando o nome do seu navio era chamado. Crianças brincavam às escondidas por entre as caixas ou puxavam das saias das mães, enquanto os pais encaravam os céus como quem tenta intimidar as nuvens a abandonarem aquela vastidão azul.
Os passageiros mais ricos estavam mais afastados, rodeados dos seus criados e baús dispendiosos. Resmoneando por baixo dos guarda-sóis, agitavam leques em vão, o suor a permear-lhes as golas de renda.
A procissão deteve-se por momentos e os portões começaram a fechar-se, reduzindo o zurrar da populaça. Umas quantas derradeiras pedras ressaltaram das caixas e aquele assédio chegou a um fim.
Soltando um longo suspiro, Arent curvou-se, de mãos nos joelhos, o suor a escorrer-lhe da testa e a cair no chão poeirento.
— Quão maus são os teus ferimentos? — perguntou Sammy, examinando um corte na face de Arent.
— Sinto-me como se estivesse de ressaca — resmungou Arent. — Fora isso, não estou muito mal.
— Os guardas encontraram o meu estojo de alquimia?
Havia um medo genuíno na sua voz. Junto com os seus muitos talentos, Sammy era um alquimista talentoso e o seu estojo estava repleto de tinturas, pós e poções que desenvolvera para ajudar no seu trabalho de dedução. Levara anos a criar muitos deles, com ingredientes que muito dificilmente conseguiria substituir agora.
— Não, roubei-o do teu quarto antes de terem revistado a casa — respondeu Arent.
— Ótimo — aprovou Sammy. — Vais encontrar uma salva num pequeno frasco. O verde. Passa-a nas feridas de manhã e à noite.
Arent torceu o nariz, repugnado.
— É a que cheira a mijo?
— Todas elas cheiram a mijo. Não é uma boa salva se não cheirar a mijo.
Um mosqueteiro aproximou-se vindo do cais e chamando por Sammy. Trazia um chapéu desgastado com uma pluma vermelha, a aba mole puxada até perto dos olhos. Um emaranhado de cabelo louro escuro caía-lhe dos ombros e uma barba ocultava-lhe grande parte da face.
Arent examinou-o, achando-o digno.
A maioria dos mosqueteiros em Batávia fazia parte da guarda do governador-geral. Andavam bem vestidos e estavam habituados a fazer continências e até eram bons a dormir com meio olho aberto, mas o uniforme esfarrapado do homem sugeria que havia sido soldado, em tempos. Sangue seco manchava-lhe o gibão azul, pontilhado por buracos feitos por balas e espadas, cada um remendado repetidamente. Uns calções vermelhos pelo joelho tapavam parte das pernas peludas e bronzeadas cobertas por mordidas de mosquitos e cicatrizes. Frascos de cobre cheios de pólvora chocalhavam numa bandoleira contra cartucheiras de fósforos de salitre.
Ao aproximar-se de Arent, o mosqueteiro bateu o pé em continência.
— Tenente Hayes, sou Jacobi Drecht, capitão da guarda — declarou, sacudindo uma mosca do rosto. — Estou encarregue da guarda do governador-geral. Zarparei convosco para garantir a segurança da família.
Drecht virou-se para os mosqueteiros que os escoltavam.
— Para os barcos, rapazes. O governador-geral quer o Sr. Pipps em segurança a bordo do Saardam antes que...
— Ouçam, ouçam! — ordenou uma voz estridente vinda de cima.
Semicerrando os olhos contra o brilho do sol, olharam para cima, seguindo a voz.
Uma figura em farrapos erguia-se em cima de uma pilha de caixotes. Ligaduras ensanguentadas envolviam-lhe as mãos e o rosto, deixando somente uma nesga por onde era possível ver-lhe os olhos.
— Um leproso — murmurou Drecht com repulsa.
Arent deu um passo atrás instintivamente. Desde novo que lhe fora incutido um enorme medo destas pessoas devastadas, cuja mera presença era suficiente para fazer cair a ruína em qualquer cidade. Um único tossir, o mais breve toque, significava uma morte lenta e horripilante.
— Matem essa criatura e queimem o corpo — ordenou o governador-geral da frente da procissão. — Não são permitidos leprosos nesta cidade.
Levantou-se um alvoroço e os mosqueteiros trocaram olhares estupefactos. A figura estava demasiado longe para a alcançarem com lanças, os seus mosquetes já haviam sido levados para o Saardam e ninguém tinha um arco e flecha.
O leproso, aparentemente inconsciente do pânico gerado, passou o olhar por todos os presentes.
— Que seja sabido que o meu mestre navega a bordo do Saardam — disse. O seu olhar pousou em Arent e o coração do mercenário tentou fugir-lhe do peito. — É o senhor das coisas ocultas, das coisas desesperadas, das coisas sombrias. Oferece-vos este aviso de acordo com as leis antigas. A carga dentro do Saardam é feita de pecado e todos os que nele zarparem vão encontrar uma ruína impiedosa. A embarcação nunca chegará a Amesterdão.
Com aquela última palavra, o seu robe irrompeu em chamas.
As crianças desataram a chorar. A multidão expectante arquejou e gritou, aterrorizada.
O leproso não emitiu qualquer som. O fogo subiu-se-lhe pelo corpo até toda a sua figura ficar coberta em chamas.
Não se moveu.
Deixou-se queimar em silêncio, o olhar fixo em Arent.
Capítulo 2
Como se somente agora tivesse reparado nas chamas que o consumiam, o leproso começou a sacudir as vestes. Escorregou para trás, tombou dos caixotes e caiu no chão com um baque nauseante.
Arent deitou a mão a um barril de cerveja, cobriu a distância num par de passadas, puxando da tampa com as próprias mãos e despejando o conteúdo em cima das chamas.
Os trapos crepitaram, o odor a carvão a encher-lhe as narinas.
Estrebuchando em agonia, o leproso arrastou-se pelo chão poeirento. Tinha a testa horrivelmente queimada, o rosto carbonizado. Apenas os olhos detinham qualquer sinal de humanidade, as pupilas selvagens movendo-se erraticamente no meio do azul da córnea, enlouquecidas de dor.
Um grito tentou fugir-lhe da boca, mas nenhum som se fez ouvir.
— Impossível — exclamou Arent.
Olhou para Sammy de relance, que se debatia com as grilhetas ao tentar ver melhor. — Cortaram-lhe a língua — berrou Arent, tentando que a voz se sobrepusesse ao alvoroço da multidão.
—Afastem-se, sou curandeira — ouviu-se uma voz imperiosa.
Uma fidalga afastou Arent do caminho, tirando o seu chapéu de renda e empurrando-o para as mãos do mercenário, revelando o brilho de alfinetes ornamentados com joias nos seus caracóis curtos e ruivos.
Assim que o chapéu pousou nas mãos de Arent, uma criada agitada arrancou-lho dos dedos. Levava uma sombrinha que tentava manter por cima da cabeça da sua senhora enquanto insistia para que ela regressasse ao palanquim.
Arent olhou de relance para o veículo.
Na pressa de sair, a fidalga arrancara a cortina do seu gancho e atirara duas grandes almofadas de seda ao chão. Dentro do palanquim, uma jovem rapariga de rosto oval mirava-os por entre o material arrasado. De cabelos negros e olhos escuros, era a figura exímia do governador-geral, que estava sentado, hirto, no seu cavalo, o olhar reprovador pousado na esposa.
— Mamã? — chamou a rapariga.
— Só um momento, Lia — respondeu a fidalga, ajoelhada junto do leproso, alheia ao seu vestido castanho tombado sobre tripas de peixe. — Vou tentar ajudá-lo — disse-lhe, gentilmente. — Dorothea?
— Minha senhora? — inquiriu a criada.
— O meu frasco, por favor.
A criada remexeu nas mangas e produziu um pequeno frasco, que desarrolhou e passou à fidalga.
— Isto vai aliviar-lhe as dores — disse a senhora para o homem sofredor, inclinando o frasco sobre os lábios apartados do seu paciente.
— O homem veste roupas de leproso — avisou Arent ao reparar que as mangas da fidalga se aproximavam perigosamente do homem.
—Estou ciente disso— respondeu com brevidade, os olhos postos numa espessa gota que se formava na boca do frasco. — É o tenente Hayes, não é?
— Arent é suficiente.
— Arent — repetiu, provando-lhe o nome como se tivesse um travo estranho. — Sou Sara Wessel... — deteve-se e, imitando-lhe a resposta grosseira, acrescentou — Sara é suficiente.
Agitou levemente o frasco, libertando a gota que caiu na boca do leproso. O homem engoliu com esforço, estremeceu e pareceu acalmar-se. As contorções abateram-se e os olhos perderam o norte.
— A senhora é a esposa do governador-geral? — perguntou Arent, incrédulo. A maioria dos fidalgos não sairia do seu palanquim nem que estivesse a arder, quanto mais para prestar assistência a um estranho.
— E o senhor é o criado de Samuel Pipps — retorquiu ela.
— Eu... — começou, vacilante, surpreendido pela sua irritação. Sem entender o que fizera para a ter ofendido, decidiu mudar de assunto. — O que lhe deu?
— Algo para aliviar as dores — respondeu, arrolhando o frasco. — É feito de plantas locais. Uso-o de tempos em tempos. Ajuda-me a dormir.
— Há algo que possamos fazer por ele, senhora? — perguntou a criada, aceitando o frasco de volta e guardando-o no interior da manga. — Devo ir buscar o seu equipamento medicinal?
Somente um louco tentaria tal coisa, pensou Arent. Uma vida na guerra ensinara-lhe que os membros se podiam perder e ainda assim seguir em frente na vida, bem como as pequenas maleitas que acordariam qualquer um em agonia, noite após noite, até terminarem na morte, um ano depois da batalha. A carne apodrecida do leproso já era quase a sua sentença e nunca voltaria a encontrar sossego depois daquelas queimaduras. Com cuidados tomados todos os dias, poderia viver um dia, talvez uma semana, mas a sobrevivência nem sempre vale o preço que se paga por ela.
— Agradeço, mas não, Dorothea — disse Sara. — Não creio que seja necessário.
Levantando-se, Sara gesticulou para que Arent a seguisse para um lugar mais afastado de ouvidos atentos.
— Não há nada que possa fazer aqui — disse, calmamente. — Nada além de misericórdia. Será que podia... — engoliu em seco, pareceu envergonhada em fazer a pergunta seguinte. — Alguma vez matou alguém?
Arent anuiu.
— Consegue fazê-lo sem dor?
Arent anuiu novamente e recebeu de volta um sorriso grato.
— Lamento não ter a coragem para o fazer — afirmou.
Arent avançou por entre o círculo de observadores sussurrantes até um dos mosqueteiros que guardava Sammy e apontou para a sua espada. Entorpecido de horror, o jovem soldado desembainhou a arma sem qualquer protesto.
— Arent — começou Sammy, chamando o amigo. — Disseste que o leproso não tinha língua?
— Foi cortada — confirmou Arent. — Há já algum tempo, parece-me.
— Traz-me Sara Wessel quando estiveres despachado — disse Sammy, perturbado. — Este assunto requer a nossa atenção.
Enquanto Arent regressava com a espada, Sara ajoelhou-se junto do leproso enfraquecido e moveu-se para lhe segurar a mão, antes de se lembrar que não podia.
— Não tenho em mim o conhecimento para o curar — admitiu, gentilmente. — Mas posso conceder-lhe uma saída sem dor, se a aceitar.
A boca do leproso moveu-se, produzindo pouco mais do que gemidos. Lágrimas formaram-se-lhe nos olhos e ele aquiesceu.
— Vou estar sempre a seu lado —disse Sara. Olhando por cima do ombro para a rapariga que espreitava de dentro do palanquim, disse — Lia, junta-te a mim, por favor —, e estendeu-lhe uma mão.
Lia desceu do palanquim. Não tinha mais do que doze ou treze anos, embora fosse bastante alta, e o seu vestido era apertado, como uma pele da qual ainda não conseguira sair.
Um grande burburinho foi ao seu encontro, a procissão deslocando-se para a acolher. Arent estava entre os observadores curiosos. Ao contrário da mãe, que visitava a igreja todos os fins de tarde, Lia raramente era vista fora de casa. Corriam rumores de que o pai a mantinha escondida por vergonha, mas ao vê-la caminhar de modo tão irresoluto em direção ao leproso, Arent não entendia o motivo para tal.
Era uma rapariga bonita, apesar de invulgarmente pálida, como que feita de sombra e luar.
Conforme Lia se aproximava, Sara olhou de relance para o marido, sentado, austero, no seu cavalo, o maxilar movendo-se com o seu ranger de dentes. Arent sabia que isto era o mais próximo à ira que o homem chegaria em público. Pelo tique nervoso que lhe assolava o rosto, era óbvio que queria ordená-las de regresso ao palanquim, mas a maldição da autoridade é nunca poder admitir a sua perda.
Lia chegou junto da mãe e Sara apertou-lhe a mão em gesto reconfortante.
— Este homem tem dores — disse em tom suave. — Está em sofrimento e o tenente Hayes vai acabar esse sofrimento. Entendes o que quero dizer?
Os olhos da rapariga arregalaram-se, mas ela anuiu, docilmente.
— Sim, mamã — proferiu.
— Ótimo — disse Sara. — Ele tem muito medo e isto não é algo que deva enfrentar sozinho. Vamos ficar de vigília, oferecer-lhe a nossa coragem. Não deves afastar o olhar.
O leproso retirou de volta do pescoço, por entre muito esforço e dor, uma pequena peça de madeira chamuscada, as suas extremidades denteadas. Estreitou-a contra o peito e fechou os olhos.
— Quando estiver pronto — Sara indicou a Arent, que num ápice estacou a lâmina no coração do leproso. O homem arqueou as costas, enrijeceu... e afrouxou, o sangue escorrendo por baixo das suas costas. Era lustroso à luz do sol, refletindo as três figuras que rodeavam o corpo.
A rapariga estreitou o aperto à mão da mãe, mas a sua coragem não vacilou.
— Estiveste bem, meu amor — disse Sara, afagando-lhe a face delicada. — Sei que foi desagradável, mas foste muito corajosa.
Enquanto Arent limpava a lâmina numa saca de aveia, Sara soltou um dos alfinetes ornamentados do cabelo e um dos seus caracóis ruivos tombou em liberdade.
— Pelo incómodo causado — disse, oferecendo-lho.
— Não é bondade se tem de pagar o ato — respondeu ele, deixando o alfinete a reluzir na mão de Sara enquanto devolvia a espada ao soldado.
O rosto da fidalga era um misto de surpresa e confusão e o olhar deteve-se em Arent durante um instante. Como que receosa por ser vista em contemplação tão descoberta, Sara apressou-se a chamar dois estivadores que estavam sentados numa pilha de lona esfarrapada.
Os dois saltaram como se tivessem sofrido uma picada, prendendo uma mecha de cabelo atrás da orelha ao aproximarem-se.
— Vendam isto, queimem o corpo e certifiquem-se de que as cinzas recebem um enterro cristão — ordenou Sara, apertando o alfinete contra a palma calejada do homem mais próximo. — Vamos conceder-lhe na morte a paz que nunca encontrou em vida.
Os homens trocaram olhares sagazes.
— Essa joia pagará o funeral e sobrará o suficiente para quaisquer vícios que vos agradem durante o resto do ano, mas vou ter alguém sempre nos vossos calcanhares — avisou em tom suave. — Se este pobre homem acabar no sepulcro dos indesejáveis para lá das muralhas da cidade, acabam os dois na forca. Entendido?
— Sim, minha senhora — murmuraram, inclinando os chapéus num gesto de respeito.
— Tem um minuto para ouvir Sammy Pipps? — perguntou Arent, que estava junto do capitão da guarda, Jacobi Drecht.
Sara voltou a deitar um olhar de relance ao marido, medindo o seu descontentamento. Arent era incapaz de não sentir compaixão. Jan Haan era capaz de encontrar defeito numa disposição de mesa mais arrojada — ver a esposa precipitar-se pela lama como uma prostituta atrás de uma moeda teria sido intolerável.
Mas o seu olhar nem estava pousado nela. Estava fixo em Arent.
— Lia, regressa ao palanquim, por favor — indicou Sara.
— Mas, mamã — retorquiu Lia e, num tom mais baixo — é Samuel Pipps.
— É — concordou ela.
— O Samuel Pipps!
— Deveras.
— O pardal!
— Uma alcunha que, por certo, adorará — respondeu ela, friamente.
— Podias apresentar-me.
— Não me parece que esteja vestido para a ocasião, Lia.
— Mamã...
— Um leproso foi entusiasmo suficiente para um dia — insistiu Sara com finalidade, chamando Dorothea com um rápido levantar do queixo.
Um protesto ainda se formou nos lábios da filha, mas a criada afagou-lhe o braço, levando-a embora.
A multidão abriu-se num corredor que permitiu a Sara aproximar-se do prisioneiro que atentava endireitar o gibão manchado.
— A sua lenda precede-o, Sr. Pipps — disse ela com uma vénia.
Após a sua recente humilhação, este elogio inesperado apanhou Sammy de surpresa e as palavras do seu cumprimento pareceram ficar-se-lhe na garganta. Tentou fazer uma vénia, mas as grilhetas só serviram para tornar o gesto desadequado.
— Então, qual o motivo de querer falar comigo? — perguntou Sara.
— Imploro que atrase a partida do Saardam — avançou. — Por favor, tenha em consideração o aviso do leproso.
— Julguei que o leproso não passava de um louco — admitiu, surpresa.
— Por certo, um louco — concordou Sammy. — Mas, mesmo sem língua, foi capaz de falar. Manco de um pé, subiu uma pilha de caixotes.
— Reparei na língua, mas não no pé — admitiu Sara, devolvendo o olhar ao corpo do leproso. — Tem a certeza?
— Até mesmo queimado, é possível ver-se a deficiência por entre as ligaduras. Precisaria de muletas para andar, quanto mais para subir àqueles caixotes. Sem ajuda, era impossível.
— Então, não acredita que estivesse a agir sozinho?
— De todo, e há outra questão, ainda.
— Claro que há — suspirou ela. — Um mal nunca anda só, não é verdade?
— Viu-lhe as mãos? — continuou Sammy, ignorando aquele comentário. — Uma muito queimada, a outra quase intocada. Se reparar bem, o homem tem uma ferida por baixo da unha do polegar e esse mesmo dedo já foi partido, pelo menos, três vezes no passado. Daí estar torto. Os carpinteiros sofrem algumas destas lesões na sua arte, em particular os carpinteiros de navios, que batalham também contra o movimento irregular das águas enquanto praticam o seu ofício. Reparei que tinha as pernas em arco, outra característica comum de quem passa a vida em alto-mar.
— Acreditas que ele era carpinteiro num dos barcos da frota? — avançou Arent, examinando os sete navios atracados junto ao porto.
— Não sei — admitiu Sammy. — Todos os carpinteiros de Batávia já devem ter passado por algum navio proveniente da Índia. Se pudesse revistar o corpo, poderia, talvez, responder com maior certeza, mas...
— O meu marido nunca o libertará, Sr. Pipps — disse Sara de rompante. — Se é esse o seu próximo pedido.
— Não é — disse ele, ruborizando. — Conheço bem o modo de pensar do seu marido e sei bem que nunca dará ouvidos às minhas preocupações. Mas talvez desse às suas.
Sara remexeu-se, desconfortável, o olhar pousado no porto. Golfinhos brincavam nas águas, saltando e torcendo-se nos ares, mergulhando de regresso às profundezas sem chegar a encrespar a superfície.
— Por favor, minha senhora. Tem de convencer o seu marido a atrasar a partida da frota enquanto Arent investiga este assunto.
Arent olhou-o, perplexo. A última vez que investigara algo fora há três anos. Nos dias que corriam, mantinha-se afastado desse tipo de ocupação. O seu único trabalho era manter Sammy seguro e esmagar com o pé qualquer bandalho que o amigo lhe indicasse.
— As perguntas são espadas; as respostas, escudos — insistiu Sammy, o olhar fixo em Sara. — Imploro-lhe. Prepare as suas defesas. Quando o Saardam zarpar, será tarde demais.
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