9 — MONGÓIS

«Chegavam, prostravam, incendiavam,
matavam, saqueavam e partiam.»

ATA-MALIK JUVAINI SOBRE OS MONGÓIS

Nos primeiros e frios meses de 1221, chegaram a Damieta estranhas notícias do Levante. Por essa altura, a grande cidade do Delta do Nilo estava nas mãos de um exército cruzado multi­nacional. Este, durante quatro anos, havia conduzido uma entediante campanha militar contra o sultão do Egito, e, embora se tenha apoderado da cidade, não conseguiu muito mais. Combater no Egito revelava-se extremamente sufocante, dispendioso, desconfortável e insalubre. No Cairo, o sultão aiúbida Al-Kamil sentia-se irredutível, e novas conquistas à sua custa pareciam difíceis e, muito provavelmente, impossíveis. Fora investido muito dinheiro e muitas vidas se haviam perdido para se atingir uma situação que, globalmente, correspondia a um impasse. Mas as missivas chegadas a Damieta pareciam mudar tudo. 

Boemundo IV, príncipe de Antioquia, reenviara-as ao exército cruzado. Relatavam rumores chegados aos estados cruzados trazidos por mercadores de especiarias que percorriam as rotas mercantis atravessando a Pérsia até à costa ocidental da Índia. De acordo com documentos explosivos facultados por estes mercadores, um muito poderoso soberano designado por «David, rei das Índias» desbravava caminho pelos domínios islâmicos da Ásia Central, tudo pondo em debandada diante de si. Dizia-se que este rei David havia derrotado o xá da Pérsia e conquistado enormes e abastadas cidades como Samarcanda, Bucara (ambas no atual Usbequistão) e Gázni (no atual Afeganistão). Porém, estava longe de satisfeito. Dirigia-se, então, implacavelmente para oeste, arrasando os infiéis no seu avanço. «Não há poder da Terra que lhe possa resistir», ouviu um cronista. «Crê-se que seja o executor da vingança divina, o martelo da Ásia.»

É Desta Que Leio Isto: Em janeiro recebemos Dulce Garcia

Anote na sua agenda. O É Desta Que Leio Isto já tem a primeira sessão de 2023 marcada. Dulce Garcia é a convidada do próximo encontro do nosso clube de leitura, a ocorrer no dia 19 de janeiro, pelas 21h.

Nascida em 1970, Dulce Garcia foi jornalista entre 1991 e 2017, escrevendo no Diário Económico e, acima de tudo, na Sábado, publicação de que foi fundadora e subdiretora. Assinou também colaborações nas revistas Elle, GQ, Vogue e Máxima. Hoje, é assessora de imprensa na área da política, trabalhando com o Ministério da Justiça.

A sua experiência na literatura bifurca-se nos dois lados da mesma moeda: foi editora de ficção portuguesa do grupo editorial Planeta e começou a publicar ficção com “Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum”, estreia editada na Guerra & paz em 2017.

Olho da Rua” — o seu segundo romance e uma das recomendações do ano do SAPO24 — trata-se de uma sátira do panorama laboral do século XXI, fazendo do escritório uma selva onde impera a lei do mais forte.

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O homem que, em Damieta, recebeu esta alarmante mensagem dos serviços de informações foi Tiago de Vitry, bispo de Acre, um diligente e erudito religioso, cuja paixão por missivas se estendia à sua mitra episcopal feita com pergaminho.1 Vitry tinha todas as razões para acreditar no que lia, pois, aproximadamente pela mesma altura, um pequeno grupo de cruzados cativado meses antes durante as pelejas às portas de Damieta conseguira regressar à cidade, relatando cenas semelhantes na sua incrível aventura. Capturados no Egito pelas forças do sultão, haviam sido enviados como prisioneiros de guerra para a corte do califa abássida em Bagdade. Aqui, foram entregues como oferendas humanas a diplomatas ao serviço de um poderoso rei estabelecido muito mais a leste. Por sua vez, este poderoso monarca enviara-os de regresso a Damieta de forma a darem testemunho da sua força e da sua generosidade. Era uma curiosa narrativa e, como as aventuras destes cruzados os tinham levado para longe das regiões onde se falavam as línguas europeias, não teriam compreendido tudo o que conseguiram observar nem todos quantos haviam conhecido. Mas, considerando o contexto, parecia razoável supor que o seu salvador não fosse senão o rei David.

O arcebispo Tiago de Vitry divulgou as novidades por todo o Ocidente, escrevendo a altos dignatários como o Papa, o duque da Áustria e o chanceler da Universidade de Paris. A cruzada fora salva, anunciou: o rei David estava a caminho para ajudar a combater o sultão egípcio. Associando as diversas profecias cristãs aos testemunhos, sem dúvida emocionantes, dos prisioneiros de guerra, Vitry e outros religiosos consideraram que este rei David seria descendente de um mítico rei-guerreiro cristão conhecido por Preste João. No tempo dos seus ancestrais, as pessoas referiam-se a este Preste João, soberano de uma região vagamente compreendida e designada por «Três Índias», a quem dezenas de reis teriam prestado tributo — pressagiando que haveria de chegar a Jerusalém «com um grande exército adequado à glória de nossa Majestade para infligir uma humilhante derrota aos inimigos da Cruz». Infelizmente para eles, tal nunca aconteceu pela simples razão de Preste João não existir. No entanto, um suposto filho — quiçá um neto — estaria a caminho para continuar a missão. A confiar nesta combinação de relatórios secretos e profecias, os cruzados poderiam aguardar para breve a conquista de Alexandria, e depois Damasco, antes de se juntarem ao rei David numa entrada triunfante em Jerusalém.

Ao fim de algum tempo, a situação parecia querer resolver-se.

Contudo, isso não aconteceu, claro. Em Damieta, animados pela novidade de serem reforçados a todo o momento pelo rei David, os cruzados partiram para atacar o sultão e dar início à sua caminhada até à vitória final, mas foram facilmente derrotados e submersos por uma inundação do Nilo. E, nos anos seguintes, quando novos grupos de cruzados viajaram até à Terra Santa, não vislumbrariam rei David algum. As profecias de uma vitória iminente revelaram-se fantasiosas e, em breve, o nome deste rei deixaria de ser pronunciado.

Ainda assim, os boatos sobre o rei David não eram completamente infundados, pois os mercadores de especiarias indianos e os prisioneiros de guerra cruzados não mentiam ao referirem-se a um soberano que tudo conquistava no seu imparável avanço desde o Oriente. Apenas não souberam interpretar o que tiveram diante de si.

Aquele que pensaram ser o «rei David», neto do Preste João e salvador do ocidente cristão, era, na verdade, Gengis khan (ou, como muitos académicos agora preferem, Chinggis Qan), um jovem nómada oriundo da estepe da Mongólia, que evoluiu até se tornar no conquistador mais bem-sucedido da sua geração. Em dois decénios, Gengis criara uma impiedosa máquina de guerra mongol aparentemente invencível, que depois soltou pelo mundo, da Coreia à Mesopotâmia. Assim, esventrara as estruturas políticas da Ásia Central e do Médio Oriente, provocando a queda de duas das maiores dinastias imperiais do mundo: a Jin, na China, e a corásmia, na Pérsia. E não ficaria por aqui.

Entre a ascensão de Gengis, ao início do decénio de 1200, e 1259, quando a superpotência que construíra foi dividida formalmente em quatro grandes parcelas, os mongóis passaram a controlar o maior domínio terrestre contínuo do mundo. E embora o seu período de supremacia global não tivesse durado mais de cento e cinquenta anos, os seus feitos podem ser comparados com os dos antigos macedónios, persas e romanos. Os seus métodos foram mais violentos do que os de qualquer outro império global anterior à era moderna: os mongóis não hesitavam em arrasar cidades completas, eliminar populações inteiras, destruir vastas regiões e deixar metrópoles outrora agitadas em chamas e desoladas, fosse para as reconstruirem à sua maneira ou, simplesmente, para as apagar do mapa. Todavia, contra o seu terrível legado de carnificina, perdição e genocídio pesa o facto de os mongóis terem reformulado completamente a forma de fazer o comércio e as relações ao longo da Ásia e do Médio Oriente. A ordem, severamente vigiada, que impuseram nos territórios conquistados proporcionou um relativo período de paz, por vezes conhecido como Pax mongolica entre os historiadores. Possibilitou épicas viagens de exploração por terra e facilitou a transmissão de técnicas e conhecimentos, bem como a circulação de pessoas, entre o Oriente e o Ocidente. Como veremos no Capítulo 13, também terá permitido a transmissão da pior pandemia na história do mundo.

Os mongóis foram pioneiros na criação de ferramentas destinadas à administração de um império global: um excelente sistema de correio, um código jurídico universal, uma reforma militar ordenada segundo uma base decimal e uma abordagem extremamente rígida, mas eficiente, do planeamento urbano. O seu sistema imperial estabeleceu um padrão-ouro muito elevado que não era observado desde a queda de Roma e, provavelmente, não mais seria visto até ao século xix. Mais do que qualquer outro império desde os romanos anteriores ao cristianismo, os mongóis revelavam uma enorme descontração quanto aos dogmas religiosos (embora Gengis khan proibisse o ritual islâmico halal de abate de animais), mostrando-se relativamente flexíveis quanto à permissão da prática de costumes locais sob a sua autoridade, além de respeitadores dos líderes religiosos, não preferindo uma seita ou fé em detrimento de outra.

Em consequência destes e muitos outros feitos, os historiadores reconheceram um pouco de tudo aos khans mongóis, desde a revolução da banca medieval até à conceção da visão do mundo dos pais fundadores dos Estados Unidos da América. Na sua época, tanto inspiraram uma invejável admiração como um terror absoluto e assombroso. É impossível narrar a história da Idade Média e da estruturação do Ocidente sem falar dos mongóis. Por isso, é com o seu pai fundador que teremos de começar: Temudjin, o rapaz pobre da estepe que se tornaria em Gengis khan.

Gengis khan

De acordo com a "História Secreta dos Mongóis" — o relato mais contemporâneo (embora não inteiramente fiável) da vida de Gengis khan —, o grande conquistador descendia do cruzamento de um «lobo azul-cinza com o seu destino consagrado no alto do Céu» com uma corça. Os seus antepassados humanos também incluíam um ciclope que conseguia ver a dezenas de quilómetros e um incalculável número de guerreiros tribais nómadas que habitava as ondulantes planícies do atual norte da Mongólia, vivendo em tendas, deslocando-se segundo as estações do ano e caçando e pilhando para sobreviver. E, em 1162, ou por volta desse ano, viria ao mundo, nas proximidades da montanha sagrada de Burkhan Khaldun, o bebé que se tornaria em Gengis khan, supostamente «agarrando na mão direita um coágulo de sangue do tamanho do nó de um dedo». Foi-lhe dado o nome de Temudjin porque o pai, um afamado guerreiro do clã Borjigin, vinha a combater os tártaros, inimigos mortais dos mongóis, e cativara um valioso prisioneiro com o mesmo nome. Mas quando Temudjin atingiu os 9 anos, os tártaros envenenaram o seu pai. O menino e os seus seis irmãos e irmãs tiveram de ser criados pela mãe, Höelün — uma situação complicada, que se agravou quando a família foi rejeitada pela sua tribo e entregue ao seu próprio cuidado. Assim fizeram, alimentando-se com frutos silvestres e pequenos animais como os esquilos-terrestres, as designadas marmotas, nativos da estepe mongol. Não foi um grande começo de vida.

Felizmente, quando Temudjin e a família viveram estes tempos difíceis, as condições na estepe eram excecionalmente brandas. Pesquisas realizadas em antigas árvores dos pinhais da Mongólia Central revelaram que, durante a fase de crescimento de Temudjin, aquela região usufruiu de quinze anos consecutivos de clima ameno e precipitação abundante. Foi o período meteorológico mais aprazível que a região experimentou em mil e cem anos. As pastagens prosperaram, bem como as populações e os animais. Temudjin e a família sobreviveriam aos seus anos mais difíceis no meio da natureza, e quando o rapaz atingiu os meados da adolescência, aprendeu a montar, a combater, a caçar e a sobreviver. Acabariam por ser recebidos de volta ao sistema tribal. Temudjin adquiriu animais de pastoreio e para ordenhar, tendo casado com uma rapariga de nome Börte, a primeira de, pelo menos, uma dúzia de esposas e concubinas que frequentariam o seu ger (a tradicional iurta mongol, uma tenda feita de couro animal), muitas vezes em simultâneo, ao longo da sua vida. Fisicamente robusto e enérgico, com uns olhos felinos, percorria o seu caminho na sociedade nómada. Mas a rejeição modelara-o de uma forma que viria a marcar o seu futuro estilo de liderança. Ao crescer, Temudjin mostrar-se-ia extraordinariamente implacável e autodisciplinado, valorizando a autoridade acima de tudo: nunca tolerava forma alguma de traição ou desonestidade, reagindo com uma fúria desmedida em casos de rejeição, resistência ou frustração. 

A vida tribal na estepe girava em torno do pastoreio e dos animais utilizados em combate; a política organizava-se segundo complexas e, muitas vezes, instáveis alianças entre as tribos. Os conflitos entre estas eram um lugar-comum e nos quais Temudjin se destacava. Aos vinte e tantos anos, tal era a sua reputação que foi aclamado líder (khan) de uma confederação de tribos conhecida como Khamag Mongol. Era uma posição importante, o que permitia a Temudjin reunir dezenas de milhares de guerreiros a cavalo quando partia para guerrear as tribos vizinhas — nas quais se incluía, de uma forma extremamente lancinante, uma coligação rival liderada por Jamukha, amigo de infância e seu irmão de sangue, que derrotou e acabaria por matar como castigo pela sua traição. No final do século xii, Temudjin era um dos líderes mais competentes da sua região.

As razões do seu êxito eram simples, mas concretas. Além de um talento pessoal para combater e contrair matrimónios, ambos ferramentas essenciais da diplomacia da estepe, também procedera a algumas reformas radicais na organização tribal e militar da tradição mongol. Assim como Maomé unira as tribos beligerantes da Arábia, no século vii, Temudjin compreendeu que os laços de sangue e entre clãs tanto poderiam provocar uma atração como uma repulsa, decidindo enfraquecê-los e implementar um forte vínculo em torno da sua pessoa para criar um conjunto mais poderoso do que a soma das partes.

Isto exigiu passos simples, mas decididos. O primeiro foi introduzir uma forte meritocracia na sua organização militar. Habitualmente, a sociedade mongol estava organizada segundo hierarquias tribais baseadas na ancestralidade e na riqueza. Temudjin descartou esta tradição. Escolheu os seus aliados e oficiais militares numa restrita base de talento e lealdade. Depois, atribuiu unidades regulamentadas de homens para os seus oficiais comandarem. A unidade-base era uma companhia de dez homens designada por Arban, que incluía seis arqueiros ligeiros montados e quatro lanceiros com robustas armaduras. Dez companhias como esta formavam um Zuun. Cada um destes multiplicado por dez formava um Mingghan. E a maior unidade, dez mil homens robustos, correspondia a um Tumen. De capital importância para o conjunto do exército, estas unidades não se formavam a partir de agrupamentos tribais. Eram transversais às linhagens familiares e aos clãs. Assim que se destacavam os soldados para determinada unidade, não podiam ser transferidos — sob pena de morte. Mas se todos cavalgassem e vencessem juntos, poderiam esperar acumular dinheiro, mulheres e cavalos — as três recompensas mais cobiçadas na estepe.

À margem do seu exército, Temudjin também se empenhou noutras formas de unir a sociedade sob a sua soberania. Nisto, assemelhou-se a Justiniano, o grande imperador bizantino. Um código legal conhecido como Jasak, ou Yassa, obrigava todos quantos vivessem sob governação mongol a refrearem o roubo e a escravidão de outrem, a mostrarem estritos protocolos de generosidade e hospitalidade, a obedecerem à autoridade do khan acima de todos os outros e a repudiarem a violação, a sodomia, a lavagem das vestes em alturas de trovoada e a urinarem nas fontes de água. Eram aplicados castigos duros e, muitas vezes, mortais e sem problemas de consciência, a quem ofendesse Temudjin ou o seu código: a gente comum considerada culpada de crimes era decapitada com uma espada, ao passo que oficiais distintos e outros líderes sofriam fraturas vertebrais para que morressem sem derramamento de sangue. 

A inflexibilidade foi uma característica transversal da conduta mongol. No decurso das suas campanhas de conquista, Temudjin e os seus generais também funcionavam segundo estritas regras de compromisso terrivelmente sangrentas. Qualquer povo ou cidade que se submetesse de imediato ao domínio mongol seria bem acolhido. Mas o mais ligeiro indício de resistência ou insubordinação convidava ao massacre e à adoção de uma política de terra queimada. Rivais que destratassem emissários mongóis seriam perseguidos até à morte. As comunidades que mentissem sobre a dimensão da sua riqueza poderiam sofrer uma enorme carnificina, frequentemente de modo grotesco e exemplar. Tudo isto servia dois fins. Em primeiro lugar, era uma forma de guerra psicológica: Temudjin supunha que os seus inimigos sucumbiriam mais depressa a uma primeira abordagem se suspeitassem de que a alternativa à rendição imediata seria a morte. Em segundo, a eliminação de praticamente todos os seus opositores submissos garantiria a Temudjin que poderia ocupar territórios com exércitos relativamente pequenos, pois não teria de deixar muitos soldados para trás a vigiar as comunidades conquistadas.

Todavia, por oposição ao domínio pelo terror, verificava-se algum grau de surpreendente tolerância para aqueles que os mongóis deixavam com vida. Os clãs e as tribos que se renderam aos mongóis foram ativamente integrados na sociedade mongol. Esperava-se que os seus homens se juntassem ao exército e que as mulheres e as crianças fossem acolhidas pela restante comunidade. Entretanto, a maior parte dos credos religiosos era tolerada — um facto que teria uma importância cada vez maior quando o mundo mongol começasse a expandir-se para o exterior. (Em geral, Temudjin sentia-se fascinado pelos credos religiosos e costumava considerá-los como complementos úteis, e não concorrentes, ao paganismo xamânico mongol). Assim, desde sempre, Temudjin concebeu um mundo mongol caracterizado por uma arrebatadora força militar, mas também por um forte grau da coesão social forçada. Muitos ditadores da história mundial teriam ideias semelhantes. Poucos procuraram atingir ou alcançaram os seus propósitos com um êxito tão devastador como o de Temudjin.

Por volta de 1201, o Khamag Mongol de Temudjin era a mais poderosa coligação da estepe. Cinco anos depois, Temudjin derrotaria todas as outras potências vizinhas, nas quais se incluíam merquites, naimanos, tártaros e uigures. Todas se curvaram perante o seu nome — que, em 1206, passaria a ser Gengis khan («grande líder», aproximadamente), quando uma assembleia de altos chefes tribais, designada como quriltai, lhe concedeu o título em reconhecimento das suas extraordinárias façanhas e conquistas. "A História Secreta dos Mongóis" relata o sucedido: «Quando o povo das tendas de feltro foi trazido à obediência no ano do Tigre [1206], todos se reuniram na nascente do rio Onon2. Içaram o estandarte branco [de Temudjin] de nove pontas e ali [lhe] atribuíram o título de qan.» Gengis ganhava assim um precioso cognome, pois os mongóis que comandava eram o terror da estepe. Como afirmou um inimigo desesperado: «Se os enfrentarmos e combatermos até ao fim, nem piscarão os seus olhos negros. Será aconselhável combatermos estes firmes mongóis, que não recuam mesmo com os rostos perfurados e com o seu sangue escuro a jorrar-lhes do corpo?» Muitos outros milhões viveriam com a mesma dúvida no século seguinte.

A marcha dos khans

Após os triunfos de 1206, Gengis khan expandiu os seus domínios em todas as direções além das planícies mongóis. No norte da China, atacou os territórios das dinastias Xia e Jin ocidentais, arrasando exércitos chineses em batalha e massacrando centenas de milhares de guerreiros e civis. Em 1213, enviou soldados para investirem sobre a grande Muralha da China em três troços diferentes antes de descer para Zhongdu, capital do território Jin, sitiada, conquistada e saqueada em 1215. O imperador Xuanzong foi obrigado a submeter-se aos mongóis, tendo abandonado a capital e a metade norte dos seus domínios, e fugido para Bianjing (atual Kaifeng), a mais de quinhentos e sessenta quilómetros. Foi uma abjeta humilhação da qual a dinastia Jin nunca recuperaria. Mas para Gengis khan e para os mongóis não passara de mais uma vitória. Em seguida, avançaram para oeste visando o império de Qara Kitai (também conhecido como Liao Ocidental). De acordo com A História Secreta dos Mongóis, Gengis «aniquilou [Qara Kitai] até se assemelhar a um monte de troncos podres». Em 1218, os exércitos mongóis seguiram para este, na direção da Coreia, ao passo que no sentido inverso visavam já a Ásia Central e os territórios persas.

Nessa altura, quem governava a Pérsia e muitos dos territórios circundantes eram os corásmios: turcos que outrora haviam sido mamelucos, mas que foram evoluindo para se tornarem em senhores de um vasto império estabelecido ao longo das abastadas cidades e percursos da Rota da Seda da Ásia Central. Em 1218, Gengis khan planeou a negociação de um acordo comercial com o seu líder, o xá corásmio, enviando-lhe cem oficiais mongóis. Infelizmente, a caminho da corte do xá, os emissários seriam bloqueados na cidade corásmia de Otrar (no atual Cazaquistão) e executados sumariamente por suspeitas de espionagem. Escusado será dizer, Gengis não o apreciou. Jurou «vingar-se para retribuir o agravo», uma ação que implementou com extremo preconceito. 

A campanha que Gengis empreendeu contra os corásmios foi a que ecoou nos ouvidos dos participantes da Quinta Cruzada e entendida como as conquistas do «rei David». Em 1219, um exército redondamente estimado em setecentos mil homens3 atravessou os montes Alai (que se estendem pelos atuais Tajiquistão e Quirguistão), iniciando uma campanha de dois anos que deixaria a Corásmia despedaçada, as cidades destruídas e o seu xá em fuga pela Ásia Central para salvar a vida, refugiando-se na Índia para não mais regressar. Algumas das maiores cidades da Ásia Central foram passadas pelo fio da espada, incluindo Merve (no atual Turquemenistão), Herat (Afeganistão), a capital corásmia de Samarcanda (Usbequistão) e Nixapur (Irão). «Chegavam, prostravam, incendiavam, matavam, saqueavam e partiam», escreveu Ata-Malik Juvaini, um erudito persa, citando uma das raras e afortunadas almas que escapara à ofensiva mongol.

Poderes e Tronos, vol. 2
créditos: Editorial Presença

Livro: "Poderes e Tronos – Volume 2 - Uma Nova História da Idade Média"

Autor: Dan Jones

Editora: Editorial Presença

Publicação: 5 de janeiro

Preço: €20,61

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O saque de Merve foi particularmente atroz. Metrópole cosmopolita que talvez albergasse duzentas mil almas, era um belo oásis no meio de um planalto agreste, situado na encruzilhada das maiores rotas mercantis internacionais. Dispunha de inúmeras e belíssimas indústrias e de uma próspera zona rural alimentada por um sistema de irrigação de primeira categoria. Gengis mandou Tolui, seu filho, exigir a rendição da cidade. As suas instruções eram as habituais: caso Merve se vergasse imediatamente perante a autoridade mongol, não seria devastada. Tolui não desiludiu o pai. Quando Merve resistiu, Tolui distribuiu os seus soldados em torno da cidade e convidou todos os cidadãos a partir em paz com as suas posses, prometendo que estariam a salvo. Assim não aconteceu: os milhares que saíram da cidade foram logo roubados e assassinados. A seguir, saquearam e despojaram Merve de tudo quanto fosse valioso. O sistema de irrigação foi inspecionado para ser copiado e, em seguida, destruído; assim como as muralhas. Os mongóis lançaram fumo sobre alguns habitantes que se haviam escondido em caves e escoadouros e chacinaram-nos. E, quando se sentiram satisfeitos por não haver mais ninguém que lhes fizesse frente, partiram.

Repetiram o mesmo procedimento, com pequenas variantes, por todas as terras corásmias, destruindo cidades enquanto procediam a metódicos cercos às fortalezas das montanhas; por fim, o império ficou à sua mercê. Instalaram-se governadores mongóis um pouco por todo o lado, que colmataram rebeliões de formas chocantes. As decapitações eram comuns, e muitas cidades ostentavam pilhas de cabeças e troncos deixados a apodrecer ao sol. Foram mortas centenas de milhares — talvez milhões — de pessoas, a maioria civis. Muitíssimas outras viram-se recrutadas à força para o exército mongol ou enviadas até à Mongólia como escravos, destinados ao trabalho manual ou à exploração sexual. Sem liderança e indefeso, o povo corásmio fora atemorizado até à submissão e os seus domínios destruídos. Mesmo tendo em conta as debilidades estruturais no interior do Estado corásmio, destroçado por divisões e separatismos sectários entre as etnias iranianas e turcas, não deixou de ser uma experiência humilhante.

Em 1221, Gengis marcara a sua posição e preparava-se para regressar à Mongólia com os seus soldados. Não obstante tudo o que conseguira contra os corásmios, não se sentiu muito inclinado para um regresso tranquilo. Para os predadores, tudo poderá ser uma presa, e ainda havia muito para servir de alimento aos generais mongóis. Após subjugar a Pérsia, Gengis dividiu as suas forças. O próprio apontaria a leste, no sentido do seu território de origem, atacando e saqueando o Afeganistão e o norte da Índia. Por outro lado, Jebe e Subedei, os seus dois generais mais capazes, avançariam ainda mais para oeste e norte, contornando o mar Cáspio e seguindo na direção do Cáucaso e dos reinos cristãos da Arménia e da Geórgia. Aqui chegados, procederiam da forma costumeira: massacrando cidades inteiras e entregando as suas populações a terríveis destinos. Jebe e Subedei ordenaram violações em grupo, mutilaram mulheres grávidas e dilaceraram os fetos, torturando e decapitando com uma profunda dedicação. No verão de 1222, derrotaram por duas ocasiões Jorge IV da Geórgia, massacrando-o de tal forma que acabaria por morrer dos ferimentos. Pouco depois, a rainha Rusudan, irmã e sucessora de Jorge, escreveu ao papa Honório III facultando uma significativa correção aos deturpados relatos sobre o «rei David», como os de Tiago de Vitry, que haviam alimentado o imaginário do Papa. Longe de ser um povo piedoso, disse a rainha a Honório, os mongóis eram pagãos que se faziam passar por cristãos para iludir os inimigos. Eram, como afirmou, «um povo selvagem de tártaros, com uma figura demoníaca, tão vorazes como lobos […] [e] audazes como leões». Era praticamente impossível resistir-lhes. Nesse momento, já os mongóis haviam passado ao largo do seu reino. Não se detiveram para o conquistar — mas regressariam para acabar o trabalho na geração seguinte.

Da Geórgia, os generais Jebe e Subedei arremeteram pela estepe russa. Quando se aproximavam da Crimeia, foram recebidos por emissários da República de Veneza — que, poucos anos antes, na Quarta Cruzada a Constantinopla, haviam demonstrado ser quase tão impiedosos como os mongóis na demanda de proveitos. Os venezianos estabeleceram um acordo no qual os mongóis aceitavam atacar os genoveses, seus rivais no comércio com a lucrativa colónia de Soldaia, na península da Crimeia, no Mar Negro. Foi o início de uma longa parceria entre os doges venezianos e os khans mongóis, que perdurou até meados do século xiv, abrindo o caminho para as afamadas aventuras de Marco Polo (consultar o Capítulo 10) e tornando a República de Veneza muito rica. Pelo que se via, os demónios sabiam cavalgar a par.

Tendo passado o inverno na Crimeia, Jebe e Subedei iniciaram uma longa e sinuosa viagem ao reencontro de Gengis. Pelo caminho, combateram e derrotaram diversas tribos túrquicas das estepes, como os cumanos e os quipechaques. Depois, seguiram para norte, na direção de Kiev (na atual Ucrânia). As notícias do seu avanço ao longo do rio Dniestre foram divulgadas entre os russos de Kiev pelos desesperados cumanos, embora surgisse uma grande confusão sobre quem seriam realmente os mongóis. O bem informado autor da "Crónica de Novgorod" afirmou apenas que eram «tribos desconhecidas, […] ninguém sabia exatamente quem seriam, de onde viriam, qual a sua língua, a sua raça, nem qual seria o seu credo; mas chamam-lhes tártaros». Ainda assim, era evidente que aqueles misteriosos visitantes implicariam inquietações. Uma coligação de príncipes russos composta por Mistislau, o Ousado, príncipe de Novgorod, Mistislau III, grande príncipe de Kiev, e Daniel, príncipe da Galícia (ou Halych ou Aliche), ergueu um exército e tentou afugentá-los. Mas quando os príncipes executaram dez embaixadores mongóis enviados para estabelecer negociações, a inépcia transformou-se em suicídio.

No final de maio de 1223, os príncipes da Rússia de Kiev alcançaram os mongóis nas cercanias do rio Kalka. Embora tenham conseguido matar cerca de mil guerreiros da retaguarda mongol, foram derrotados quando defrontaram a principal força de Jebe e Subedei. Durante a batalha, morreram cerca de noventa por cento dos soldados russos e três dos príncipes acabaram capturados. Os mongóis não haviam esquecido a impertinência dos russos ao executarem os seus embaixadores e vingaram-se de forma macabra. Mistislau III de Kiev e dois dos seus genros foram enrolados em tapetes e enfiados debaixo do pavimento de madeira do ger dos líderes mongóis. Por cima, foi então servido um banquete de celebração, tendo sido esmagados e sufocados até à morte com o permanente ruído do festim da vitória nos ouvidos. Desta feita, os mongóis não permaneceriam na região o tempo suficiente para acrescentar os territórios da Rússia de Kiev ao seu belissimamente expandido império. Mas ficaram de olho neles, do mesmo modo que nas pastagens do extremo europeu da estepe. Tal como acontecera com a Geórgia, também haveriam de regressar.

Entretanto, para Gengis khan, seus generais e respetivos exércitos fora uma longa jornada de regresso à Mongólia, que se tornou mais demorada devido à sua vontade de dar luta a quase todos por quem passavam e de promoverem pródigos e bem regados banquetes para anunciar os seus êxitos. No entanto, em 1225, estavam todos reunidos e de regresso, de onde podiam vislumbrar o novo mundo que haviam criado. Gengis tinha 60 e poucos anos e era senhor de um domínio que se estendia do Mar Amarelo, a nascente, ao Cáspio, a poente. Aquela extensão era quase surreal. Ibn al-Athir, um cronista iraquiano que escreveu alguns anos depois, ainda no mesmo século, afirmou que «estes tártaros fizeram algo inaudito em tempos antigos ou modernos», questionando-se como poderiam os seus leitores alguma vez acreditar nos seus olhos. «Por Deus, não há dúvida que quem venha a seguir a nós, depois de muito tempo passado, e veja o registo deste acontecimento, se recuse a aceitá-lo.» E, em conjunto com a vastidão da conquista, chegaram os suculentos frutos do imperialismo. A Mongólia tornou-se mais rica do que nos sonhos mais ousados do seu povo. Os exércitos conquistadores levavam à sua frente milhares de cavalos roubados. Ouro, prata, escravos, artesãos, novos e exóticos produtos alimentares e pujantes bebidas alcoólicas, tudo isto chegara dos territórios subjugados muitos meses antes. Nunca tendo sido especialmente dogmáticos do ponto de vista cultural, os mongóis assimilaram avidamente as técnicas e os costumes dos territórios que visitaram. No exército, foram admitidos construtores navais chineses e engenheiros de cerco persas. Escribas uigures eram chamados à administração do governo, tendo sido adotado, em todo o império, um manual administrativo oficial. Em 1227, Gengis começou a emitir papel-moeda, uma técnica copiada da dinastia Jin chinesa, que também derrotara, cujo valor era estabelecido em função da prata e da seda.

Gengis, o infatigável conquistador, morreria na segunda quinzena de agosto do mesmo ano. A causa da morte é desconhecida, mas, ao longo da Idade Média, foi apresentado um bom número de imaginosas explicações: disse-se, de forma diversa, que Gengis fora atingido por um raio, envenenado por uma flecha ou ferido mortalmente por uma rainha cativa que subiu para o seu leito com uma lâmina de barbear escondida na vagina. Fosse como fosse, morreu na cama, e as suas derradeiras ordens foram adequadas: exigiu aos seus sucessores que edificassem uma nova cidade de nome Karakorum para funcionar como capital do Império Mongol; em seguida, deu instruções para a execução de Modi, imperador tangute, e da respetiva família imperial de Xia Ocidental, contra quem os seus exércitos haviam combatido recentemente. Foram amarrados a estacas e cortados em pedaços.

O lugar onde o corpo de Gengis foi enterrado é tão obscuro como a causa da sua morte, pois a sepultura manteve-se deliberadamente em segredo: o local foi pisoteado por cavalos para que não restassem vestígios, e quem participou nas exéquias fúnebres terá sido assassinado; e os seus assassinos também assassinados; bem como os coveiros. Por esta altura, o número de vidas que Gengis desperdiçara e que tinha a seu cargo para governar o mundo estava muito além de qualquer contabilização. Olhando para trás, algumas gerações depois, Marco Polo afirmaria que Gengis foi um «homem de grande sabedoria, de bom senso político e de valentia». Esta análise deixava de fora outro tanto das características de Gengis. Mas depois de uma muito célere expansão territorial e dos avanços culturais verificados na sua soberania, o futuro dos mongóis enquanto única superpotência mundial do século xiii parecia assegurado. Apenas restaria saber quem comandaria a fase seguinte do seu domínio — e quão longe poderia ir.

Notas

  1. Está hoje exposta no Musée Provincial des Arts Anciens, em Namur, na Bélgica.
  2. Este rio corre do norte da Mongólia para o território da atual Rússia, onde recebe a designação de Shilka.
  3. Esta estimativa, do cronista persa Rashid al-Din, é evidentemente um completo exagero; por esta altura, todo o exército mongol contabilizava menos de cento e cinquenta mil homens. Uma das principais vantagens táticas do exército mongol foi, na verdade, o facto de não ser muito extenso.