EXCERTO DO BONEVILLE COURIER, 27 DE ABRIL DE 1858:
Um rapaz de dez anos, residente na zona rural de Boneville, regressava a casa, perto de um grande carvalho, quando começou uma violenta trovoada. O menino refugiou-se debaixo da árvore poucos instantes antes de esta ser fulminada por um relâmpago, o que atirou o rapaz ao chão, inerte, com as roupas reduzidas a cinzas. Quis o destino que o seu arguto pai, testemunha do acontecido, o revivesse graças a um fole de lareira. A criança saiu ilesa da experiência, salvo por uma recordação peculiar: a imagem da árvore ficou-lhe gravada nas costas! Este foi um dos vários «daguerreótipos por relâmpago» documentados nos últimos anos, mais uma das maravilhosas curiosidades da ciência.
1
Foi o que aconteceu comigo e com o relâmpago que inspirou o pai a mergulhar nas ciências fotográficas, tendo sido assim que tudo começou.
O pai sempre tivera uma curiosidade inata pela fotografia, pois era oriundo da Escócia, onde florescem tais artes. Depois de se instalar no Ohio, uma região cheia de nascentes salgadas naturais (das quais se obtém o bromo, componente essencial do processo de revelação), dedicara-se por breve tempo aos daguerreótipos. Mas estes eram um empreendimento dispendioso que dava muito pouco lucro e o pai não tinha meios para se dedicar a eles. As pessoas não têm dinheiro para recordações delicadas, argumentava. E foi por isso que se tornou sapateiro. As pessoas vão sempre precisar de botas, dizia. A especialidade do pai era a bota de cano alto em couro de flor integral, à qual acrescentava um compartimento secreto no salto para se guardar tabaco ou um canivete. Este artigo tinha grande procura por parte dos clientes, pelo que nos safávamos bastante bem com os pedidos. O pai trabalhava no barracão ao lado do celeiro e todos os meses ia a Boneville com uma carroça cheia de botas puxada pela Mula, a nossa mula.
Todavia, depois de o relâmpago me ter gravado a imagem do carvalho nas costas, o pai voltou a dedicar a atenção à ciência da fotografia. Ele acreditava que a imagem ficara gravada na minha pele devido às mesmas reações químicas em jogo na fotografia. Tal como tudo o resto no universo, explicou-me, enquanto eu o observava a misturar produtos químicos que cheiravam a ovos podres e a vinagre de sidra, o corpo humano é um recipiente cheio de substâncias misteriosas, sujeitas às mesmas leis físicas. Se uma imagem pode ser preservada sobre o teu corpo através da ação da luz, ela pode ser preservada em papel através dessa mesma ação. Isso levou a que dedicasse o seu interesse a uma nova forma de fotografia, que envolvia papel embebido numa solução de ferro e sal, para onde, através da luz do sol, se transfere uma imagem positiva a partir de um negativo em vidro.
O pai rapidamente dominou a nova ciência, tornando-se um praticante bastante afamado do chamado processo de colódio, uma forma de arte quase desconhecida naquelas paragens. Era um campo arrojado, que obrigava a experiências aturadas e dava origem a imagens de uma beleza impressionante. Os ferrótipos do pai, ou pelo menos era assim que ele lhes chamava, não tinham a exatidão dos daguerreótipos, mas continham sombras subtis que os faziam parecer desenhos em carvão. Ele usava uma fórmula proprietária para o revelador, onde entrava o bromo, e deu entrada a uma patente, após o que abriu um estúdio em Boneville, ao fundo da estrada do tribunal. Pouco depois, os retratos em papel tornaram-se uma moda na região, pois não só eram muitíssimo mais baratos do que os daguerreótipos, como também podiam ser reproduzidos as vezes que se quisesse a partir de um único negativo. A juntar ao seu fascínio, por mais uns trocos, o pai tingia-os com uma mistura de clara de ovo com pigmentos corantes, o que lhes dava um aspeto vivo extraordinário de apreciar. Chegava gente vinda de todo o lado para tirar o retrato. Uma senhora elegante veio de Akron para posar. Eu ajudava no estúdio do pai, ajeitando a claraboia e limpando as placas de focagem. O pai até chegou a deixar-me polir as novas lentes de retrato de latão, as quais haviam sido um grande investimento e tinham de ser manuseadas com muita delicadeza. As nossas circunstâncias mudaram de tal modo que o pai chegou a ponderar vender o negócio de fabrico de botas, pois dizia preferir, de longe, o cheiro das misturas ao fedor dos pés das pessoas.
Foi nessa altura que a nossa vida sofreu uma alteração profunda, com a visita madrugadora de três cavaleiros e um pónei de cabeça branca.
2
Foi o Mittenwool quem, nessa noite, me acordou de um sono profundo.
— Acorda, Silas. Estão a chegar cavaleiros − anunciou.
Mentiria se dissesse que me levantei de imediato, despertado com a urgência contida no chamamento. Mas não foi esse o caso. Limitei-me a resmungar qualquer coisa e a virar-me na cama. Foi então que ele me bateu com força, o que não é coisa fácil para ele. Os fantasmas têm uma certa dificuldade em interferir com o mundo material.
— Deixa-me dormir − respondi-lhe, com maus modos.
Nessa altura ouvi o Argos a uivar lá em baixo, como uma aparição, e o pai a engatilhar a espingarda. Olhei pela janela minúscula ao lado da minha cama, mas a noite estava escura como breu e não consegui ver nada.
— Eles são três − descreveu o Mittenwool, espreitando sobre o meu ombro pela mesma janela.
— Pai? − chamei, descendo a correr das águas-furtadas. Ele estava pronto, de botas calçadas, a olhar pela janela da frente.
— Não te mostres, Silas − alertou-me.
— Acendo o candeeiro?
— Não. Viste-os da tua janela? Quantos são? − perguntou.
— Não os vi, mas o Mittenwool diz que são três.
— De armas em riste − acrescentou Mittenwool.
— Vêm de armas em riste − repeti. − O que é que eles querem, pai?
O pai não respondeu. Já ouvíamos o galope na nossa direção. O pai entreabriu a porta da rua, de espingarda pronta. Vestiu o casaco, virou-se e olhou-me.
— Não saias, Silas. Aconteça o que acontecer − ordenou ele num tom severo. − Se houver problemas corres para casa do Havelock. Vais pelas traseiras e atravessas os campos. Ouviste?
— Não vais sair, pois não?
— Segura o Argos − foi a resposta que tive. − Não o deixes sair. Prendi o Argos. − Não vais sair, pois não? − repeti, assustado.
Não parou para me responder, tendo antes aberto a porta e saído para o alpendre, com a espingarda apontada aos cavaleiros que se aproximavam. Era corajoso, o meu pai.
Puxei o Argos para mim, ao que me aproximei devagarinho da janela e espreitei. Vi os homens a avançar. Três cavaleiros, tal como o Mittenwool dissera. Atrás deles seguia um quarto cavalo, um grande e imponente garanhão negro, e, ao lado deste, o pónei de cabeça branca.
Os cavaleiros abrandaram ao acercarem-se da casa, numa espécie de deferência para com a espingarda do pai. O líder do trio, um homem de gabardina amarela num cavalo malhado, ergueu os braços num gesto de apaziguamento enquanto parava a montada.
— Então olá − disse ao pai, já a uns dez metros do alpendre. — Pode baixar a arma, ó senhor. Venho em paz.
— Baixem primeiro as vossas − retrucou o pai, com a espingarda firme no ombro.
— As nossas? − O homem olhou para as mãos vazias num gesto teatral e depois mirou os lados esquerdo e direito, fingindo, com espalhafato, só agora ter reparado nas armas empunhadas pelos companheiros. − Baixem lá isso, rapazes! Estão a causar má impressão. − Voltou a dirigir-se ao pai. − Desculpe lá isto. Não é por mal. É uma questão de hábito.
— Quem são vocês? − quis saber o pai.
— O senhor é o Mac Boat?
O pai abanou a cabeça. − Quem são vocês? Aparecem-me aqui desta maneira a meio da noite.
O homem da gabardina amarela não parecia, de todo, recear a espingarda do pai. Não o via bem no escuro, mas imaginei que fosse mais pequeno do que o pai (que era um dos homens mais altos de Boneville). E também mais novo. Usava um chapéu de coco como os cavalheiros, embora, à primeira vista, não o fosse. Parecia um rufião. De barba em bico.
— Então, vá lá, não se enerve − disse ele, num tom leve. − Eu e aqui os meus rapazes éramos para chegar ao nascer do Sol, mas despachámo-nos mais depressa do que eu esperava. Chamo-me Rufe Jones, e estes dois são o Seb e o Eben Morton. Não os tente distinguir, pois não consegue. − Só então me apercebi de que os dois calmeirões eram cópias exatas um do outro, desde os chapéus de aba larga idênticos às caras de lua cheia. − Trouxemos uma proposta interessante por parte do nosso patrão, o Roscoe Ollerenshaw. Imagino que já tenha ouvido falar dele?
O pai não respondeu.
— Bom, o senhor Ollerenshaw sabe quem você é, Mac Boat − prosseguiu Rufe Jones.
— Quem é o Mac Boat? − perguntou-me o Mittenwool num sussurro.
— Não conheço nenhum Mac Boat − adiantou o pai por trás da espingarda. − O meu nome é Martin Bird.
— Claro que é − concordou sem demoras o Rufe Jones, ao mesmo tempo que assentia com a cabeça. − Martin Bird, o fotógrafo. O senhor Ollerenshaw está bem familiarizado com o seu trabalho! Bem vê, é por isso que aqui estamos. Ele gostaria de falar consigo acerca de uma proposta de negócio. Viemos de muito longe para falar consigo. Podemos entrar um bocadinho? Passámos a noite a cavalo. Estou gelado até aos ossos. − Ergueu a gola da gabardina para ilustrar o que dizia.
— Se querem falar de negócios aparecem no meu estúdio durante o dia, como qualquer pessoa civilizada − contrapôs o pai.
— Então, para quê esse tom comigo? − indagou o Rufe Jones, fazendo-se perplexo. − A natureza do nosso assunto obriga a uma certa privacidade, só isso. Não lhe desejamos mal, nem a si nem ao seu filho, o Silas. É ele que ali está a espreitar à janela, atrás de si, não é?
Admito que engoli em seco e afastei a cabeça da janela. Atrás de mim, o Mittenwool indicou-me que me baixasse ainda mais.
— Têm cinco segundos para deixarem a minha propriedade − avisou o pai e, pelo tom da voz, percebi que estava a falar muito a sério.
O Rufe Jones, todavia, não deve ter notado o tom ameaçador nas palavras do pai, pois riu-se. − Então, então, vamos com calma. Não passo do mensageiro! − replicou com toda a calma. − O senhor Ollerenshaw mandou-nos vir buscá-lo, e é isso que estamos a fazer. É como lhe digo, ele não lhe quer mal. Se virmos bem, até quer ajudá-lo. Mandou-me dizer-lhe que tem muito dinheiro à sua espera. Uma pequena fortuna, foram as palavras exatas. E por muito pouca inconveniência de sua parte. Basta uma semana de trabalho e será rico. Até trouxemos cavalos para montarem! Um grande para si e um pequeno, muito bonito, para o seu miúdo. O senhor Ollerenshaw coleciona cavalos, por isso considere-se honrado por ele vos deixar montar os garanhões dele.
— Não estou interessado. Agora têm três segundos − foi a resposta do pai. − Dois...
— Está bem, está bem! − exclamou o Rufe Jones, levantando as mãos. − Não se preocupe, nós saímos daqui! Vamos lá, pessoal.
Puxou as rédeas do cavalo e deu meia-volta, sendo imitado pelos irmãos, de cavalos sem cavaleiros atrás deles. Começaram a avançar lentamente para as trevas, afastando-se da casa. Todavia, ainda mal tinham dado meia dúzia de passos quando Rufe Jones estacou. Estendeu os braços para os lados, qual Cristo crucificado, a mostrar que continuava desarmado, e depois olhou para trás.
— Mas amanhã voltamos, com muitos mais homens − alertou. − A verdade é que o senhor Ollerenshaw não é homem de desistir facilmente. Esta noite vim em paz, mas não garanto que amanhã faça o mesmo. Bem vê, é que o senhor Ollerenshaw, ele sabe bem o que quer.
— Vou envolver o xerife − ameaçou o pai.
— A sério, senhor Boat? − disse Rufe Jones. O tom era agora mais ameaçador, tendo perdido a anterior leveza.
— Chamo-me Bird − retrucou o pai.
— Pois é. Martin Bird, o fotógrafo de Boneville, que vive no meio do nada com o filho, o Silas Bird.
— É melhor desaparecer daqui − cuspiu o pai.
— Está bem − respondeu Rufe Jones. Mas não esporeou o cavalo. Eu observava tudo sem respirar, com o Mittenwool ao meu lado. Passaram-se alguns segundos. Ninguém se mexeu, ninguém disse nada.
3
— O problema é o seguinte − começou Rufe Jones, de braços ainda estendidos para os lados. A voz recuperou o tom quase melódico. − É uma chatice, termos de voltar atrás pelos campos, pela mata, e amanhã voltarmos, uma dúzia ou mais, armados até aos dentes. Sabe Deus o que pode acontecer com tantas armas apontadas para todo o lado. Sabe como é. Ninguém está livre de uma tragédia. Mas se o senhor Boat vier hoje connosco podemos evitar essa trapalhada toda.
Virou as mãos, ficando agora com as palmas para cima.
— Vamos despachar o assunto − continuou. − Você e o seu filho fazem uma viagem confortável nestas belas montadas. E numa semana estão os dois de volta a casa. É uma promessa solene que o patrão faz. Já agora, foi ele que me disse para usar exatamente estas palavras. Para usar a palavra solene. Vá lá, Mac Boat, é uma excelente proposta! O que é que me diz?
Vi o pai a cerrar o maxilar, a espingarda sempre apontada ao homem, o dedo sem deixar o gatilho. Nunca lhe vira aquela expressão. Não lhe reconheci os ângulos tensos do corpo.
— Não sou o Mac Boat − proferiu lentamente. − Chamo-me Martin Bird.
— Pois é, tem toda a razão, senhor Bird! As minhas desculpas − adiantou Rufe Jones, com um sorriso. − Seja lá o seu nome qual for, o que é que me diz? Vamos evitar problemas. Baixe a espingarda e venha connosco. É só uma semana. E, quando voltar, é um homem rico.
O pai hesitou mais um instante demorado. Para mim, era como se a eternidade estivesse contida naquele momento. E, de certa forma, até estava, pois foi então que a minha vida se alterou para sempre. O pai baixou a arma.
— O que está ele a fazer? − sussurrei ao Mittenwool. De repente, fiquei assustado como nunca me sentira. Era como se o meu coração tivesse parado. Como se o mundo tivesse deixado de respirar.
— Está bem, eu vou convosco − disse o pai calmamente, quebrando o silêncio da noite como um trovão. − Mas só se deixarem o meu filho fora disto. Ele fica aqui, em segurança. Ele não diz a ninguém o que aqui se passou. Seja como for, também não há quem aqui venha. E eu volto daqui a uma semana. Disse-me que tenho a garantia solene do Ollerenshaw. Nem mais um dia.
— Mmm, não sei − resmungou Rufe Jones, abanando a cabeça. — O senhor Ollerenshaw disse para vos levarmos aos dois connosco. Foi muito específico quanto a isso.
— É como lhe digo − respondeu o pai, num tom firme. − É a única maneira de ir convosco pacificamente. Caso contrário, vai haver problemas, quer seja já, quer seja quando voltarem. E não queiram arriscar. Eu tenho boa pontaria.
Rufe Jones tirou o chapéu e esfregou a testa. Olhou para os dois companheiros, mas estes não lhe responderam, ou talvez tenham encolhido os ombros. No escuro só lhes conseguia ver os rostos pálidos.
— Está bem, está bem, vamos manter as coisas pacíficas − concordou Rufe Jones. − Vem só você. Mas tem de ser já. Atire para aqui a arma. Vamos despachar isto.
— Dou-lha quando chegarmos à mata. Só lá.
— Está bem, mas vamos embora.
O pai anuiu. − Vou buscar as minhas coisas − indicou.
— Ah, não! Não me apetece ter de lidar com disparates − apressou-se Rufe Jones a responder. − Vamos já embora! Monte a cavalo e vamos embora, ou então não há acordo.
— Pai, não − gritei, correndo porta fora.
O pai virou-se para mim com aquela expressão que, tal como disse, me era completamente desconhecida. Era como se ele tivesse visto o mafarrico. O rosto dele assustou-me. Tinha os olhos reduzidos a meras fendas.
— Fica aí dentro, Silas − ordenou, apontando-me o dedo. Soou tão brusco que estaquei à entrada. Nunca na vida ele me falara assim. − Eu fico bem. Mas tu não vais sair desta casa, seja qual for o motivo. Volto daqui a uma semana. Tens comida suficiente até lá. Vai correr tudo bem. Estás a ouvir?
Não respondi. Mesmo que quisesse, seria incapaz de dizer fosse o que fosse.
— Estás a ouvir, Silas? − repetiu, mais alto.
— Mas, pai... − supliquei, com a voz a tremer.
— Tem de ser assim − afirmou ele. − Aqui ficas bem. Volto daqui a uma semana. E nem mais um dia. Agora despacha-te, volta lá para dentro.
Assim fiz.
Dirigiu-se ao gigantesco cavalo negro, montou-o e, sem voltar sequer a olhar na minha direção, virou-o e afastou-se a galopar. Daí a pouco, ele e os outros cavaleiros desapareciam no vasto negrume da noite.
Embora na altura eu não o soubesse, foi assim que o meu pai entrou ao serviço de um conhecido grupo de falsificadores.
4
Não faço ideia quanto tempo fiquei à porta, a observar o cabeço além do qual o pai desaparecera. Mas foi tempo suficiente para que o céu começasse a clarear.
— Vem sentar-te, Silas − chamou o Mittenwool gentilmente.
Abanei a cabeça. Receava desviar o olhar daquele ponto à distância para onde o pai se dirigira, temendo que, se o perdesse de vista, não conseguisse voltar a encontrá-lo. Os campos em torno da nossa casa são planos em todas as direções, salvo a caminho da elevação, que se ergue lentamente para leste e depois baixa até à mata, uma área densa de árvores vetustas rodeadas por paus-ferros tão juntos que por eles não passa nem a mais pequena das carroças. Pelo menos é o que dizem.
— Vem sentar-te, Silas − repetiu o Mittenwool. − Não há nada que possamos fazer. Temos de esperar. Ele volta daqui a uma semana.
— E se não voltar? − murmurei, de lágrimas a escorrerem-me pelas faces.
— Ele volta, Silas. O pai sabe o que está a fazer.
— O que é que querem dele? Quem é esse senhor Ren-qualquer-coisa? Quem é esse tal de Mac Boat? Não percebo o que aconteceu.
— De certeza que o pai vai explicar tudo quando regressar. Só tens de esperar.
— Uma semana inteira! − Por esta altura, as lágrimas haviam-me enchido de tal maneira os olhos, que perdera de vista o ponto em que o pai desaparecera. − Uma semana inteira!
Olhei para o Mittenwool, que estava sentado ao lado da mesa, debruçado para a frente, de cotovelos assentes nos joelhos. Por mais que tentasse ocultá-lo, parecia desalentado.
— Vai correr tudo bem, Silas − asseverou. − Eu estou contigo. E o Argos também. Nós fazemos-te companhia. Vai correr tudo bem. E quando deres por ela, o pai está de volta.
Olhei para o Argos, que estava enroscado na caixa partida de farinha que lhe servia de cama. Era um sabujo mal-amanhado, com uma orelha a menos e pernas bambas.
E depois devolvi o olhar ao Mittenwool, que me tentava transmitir confiança, de sobrancelhas erguidas. Já comentei que o Mittenwool é um fantasma, mas não tenho a certeza de que esse seja o termo correto para o designar. Espírito. Aparição. A verdade é que não sei o que lhe chamar. O pai acha que ele é um amigo imaginário, ou coisa do género, mas eu sei que não é isso que ele é. O Mittenwool é tão real como a cadeira onde está sentado, como a casa onde vivemos, como o cão. O facto de só eu o conseguir ver e ouvir não significa que ele não seja real. Mas adiante, se o pudessem ver ou ouvir diriam que era um rapaz de uns dezasseis anos, alto, magro e de olhos brilhantes, com uma melena de cabelo escuro desgrenhado e uma gargalhada rica. Desde que me lembro que ele me acompanha.
— O que vou eu fazer? − exclamei, ofegante.
— Vais sentar-te − respondeu-me, dando uma palmadinha na cadeira junto à mesa. − Vais preparar o pequeno-almoço. Vais enfiar café nessa barriga. Depois, quando estiveres pronto, vais avaliar a situação. Vamos aos armários, vemos o que temos e separamos comida para sete dias, para não nos faltar nada. Depois vamos ordenhar a Mu, trazemos os ovos e pomos feno fresco à Mula, tal como fazemos todas as manhãs. É isso que vamos fazer, Silas.
Sentei-me perante o Mittenwool enquanto este falava. Chegou-se à frente.
— Vai correr tudo bem − asseverou, com um sorriso reconfortante. − Vais ver.
Assenti, pois ele estava a esforçar-se por me consolar e eu não o queria desapontar, mas, no fundo, não acreditava que tudo fosse correr bem. E viria a revelar-se que eu tinha razão. Depois de ter ordenhado a Mu, recolhido os ovos do galinheiro e dado de comer à Mula, e após ter preparado ovos e ido buscar água ao poço, e depois de termos esvaziado a despensa para apurar o que tínhamos, reservando uma porção para cada dia da semana que se avizinhava, e ainda de varrermos o chão e termos cortado a lenha em achas para o fogão, e depois de fazemos biscoitos que eu acabaria por não comer porque não tinha fome, estando, isso sim, enjoado devido às lágrimas que engolira, olhei pela janela e vi o pónei de cabeça branca à frente da casa.
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