UMA BREVE INTRODUÇÃO
Se os gatos desaparecessem, o que mudaria no mundo? E o que mudaria na minha vida? E se eu desaparecesse? Bem, suponho que nada mudasse. As coisas iriam provavelmente continuar, dia após dia, como de costume. Provavelmente, estás a pensar que tudo isto é uma idiotice, mas gostava que acreditasses em mim. Vou contar-te o que me aconteceu nos últimos sete dias. Foi aquilo a que se poderia chamar uma semana esquisita. Ah! Já agora: vou morrer daqui a muito pouco tempo.
Então, como é que isto aconteceu? A minha carta explicará tudo. Portanto, será provavelmente uma carta muito longa, mas gostava que ficasses comigo até ao fim. Porque esta será a primeira e a última carta que te escrevo. Será também o meu testamento.
SEGUNDA-FEIRA: O DIABO ENTRA EM CENA
Nem sequer conseguia pensar em dez coisas que quisesse fazer antes de morrer. Vi uma vez um filme em que a protagonista, quando estava prestes a morrer, compilou uma lista das dez coisas que gostaria de fazer antes de partir. Que grande tanga. Bem, não vou dizer que isso está totalmente errado. Mas, a sério, que raio se pode escrever numa lista dessas? Provavelmente, um monte de coisas insignificantes. Neste momento, deves querer perguntar-me: «Mas como é que podes dizer uma coisa dessas? Como é que sabes?» Pois bem, eu sei porque tentei. E foi simplesmente embaraçoso.
Começou tudo há sete dias. Andava com uma constipação da qual não me conseguia livrar há já algum tempo, mas ia trabalhar todos os dias como se nada fosse, continuando a entregar o correio. Tinha uma febre ligeira que não subia nem descia e doía-me o lado direito da cabeça. Estava a conseguir aguentar-me (mal) com a ajuda de alguns medicamentos de venda livre (detesto ir ao médico). No entanto, depois de andar nisto há duas semanas, desisti e fui ao médico porque simplesmente não estava a melhorar.
Foi então que descobri que não se tratava de uma constipação. Era, na verdade, um tumor cerebral de grau 4. Bem, pelo menos, foi isso que o médico me disse. Também me disse que me restavam, no máximo, seis meses de vida, mas acrescentou que teria sorte se durasse mais uma semana. Depois, explicou-me as minhas opções: radioterapia, medicamentos anticancerígenos, cuidados paliativos... mas eu não ouvi nada.
Quando era pequeno, nas férias de verão, costumava ir à piscina. Saltava para dentro da água azul e gelada, lançando salpicos para todo o lado, e depois mergulhava lentamente.
— Faz um aquecimento como deve ser antes de saltares lá para dentro! — dizia-me a minha mãe. Mas debaixo de água, a voz dela ficava abafada e não a ouvia bem. Por alguma razão, foi isto que me veio à cabeça: aquela memória estranha e ruidosa. Algo de que eu me esquecera completamente até àquele momento.
Finalmente, a consulta acabou. As palavras do médico ainda pairavam no ar quando atirei a mala ao chão e saí do consultório a cambalear. Ignorei o médico, que me pedia para voltar, e saí a correr do hospital, enquanto berrava, esbarrando nas pessoas por quem passava; tropecei e caí, levantei-me novamente e continuei a correr e a agitar os braços que nem um louco. Cheguei a uma ponte quando percebi que já não conseguia dar nem mais um passo e arrastei-me pelo chão a chorar... Bem, isto é mentira. Não foi bem assim que as coisas se passaram.
A verdade é que, quando ouvem uma notícia destas, as pessoas tendem a manter-se surpreendentemente calmas. Assim que fiquei a saber o que tinha, a primeira coisa que me ocorreu foi que só me faltava um carimbo no meu cartão de fidelidade para receber uma massagem gratuita e que não devia ter comprado tanto papel higiénico e detergente. Foram trivialidades deste género que me vieram à cabeça.
Contudo, aos poucos, fui sendo tomado por uma tristeza sem fundo. Tinha apenas trinta anos. Era certo que já tinha vivido mais do que Hendrix ou Basquiat, mas fiquei com a sensação de que tinha muitos assuntos inacabados. Haveria coisas, embora eu não soubesse bem quais, que só eu conseguiria fazer neste mundo.
No entanto, não me detive a pensar nisso. Pelo contrário, continuei a caminhar sem rumo, desorientado, até passar em frente à estação de caminhos de ferro, onde dois jovens tocavam guitarra acústica e cantavam.
Um dia, esta vida acaba, por isso, antes que chegue esse dia,
faz tudo o que quiseres, faz tudo, tudo até não poderes mais,
só assim conseguirás enfrentar o dia de amanhã.
Idiotas. Ora aí está aquilo a que se chama uma total falta de imaginação. Força! Continuem a fazer isso e desperdicem assim as vossas vidas a cantar em frente a esta estação medonha. Eu estava tão irritado que não conseguia aguentar, não conseguia pensar no que havia de fazer. Demorei bastante tempo a percorrer o caminho até casa. Subi pesadamente as escadas e abri a frágil porta que dava acesso ao pequeno espaço apertado a que chamava casa. Foi então que me dei conta da situação desesperada em que me encontrava e caí literalmente numa escuridão absoluta, desmaiando mesmo à entrada.
Quando acordei, continuava estendido em frente à porta. Só Deus sabe há quanto tempo ali estaria. Vislumbrei à minha frente uma bola preta e branca com manchas cinzentas. De repente, a bola emitiu um som: «Miau». Finalmente, percebi que era o gato.
Há quatro anos que vivemos os dois juntos. Ele aproximou-se e voltou a miar, no que me pareceu ser uma manifestação de preocupação comigo. Mas eu ainda não estava morto; por isso, sentei-me. Ainda tinha febre e a dor de cabeça estava a dar comigo em doido: eu estava realmente doente.
Depois, de repente, ouvi alguém a dizer animadamente do outro canto da divisão:
— Olá! Muito prazer!
A pessoa que ali estava era eu mesmo. Quero dizer, era mesmo eu, ali de pé, a olhar para mim. Ou alguém que se parecia muito comigo. A palavra doppelgänger veio-me à mente... Li alguma coisa sobre isso num livro há séculos. É um nosso sósia que aparece quando estamos prestes a morrer. Teria eu finalmente enlouquecido ou teria o meu tempo acabado? Senti-me a ficar zonzo, mas consegui manter a compostura. Decidi pegar pelos cornos aquilo que estava à minha frente, fosse lá o que fosse.
— Hum, então, quem és tu?
— Quem achas que sou?
— Hum, serás... o Anjo da Morte?
— Quase.
— Quase?
— Sou o Diabo.
— O Diabo?
— Sim, o Diabo!
Portanto, foi assim, de uma forma ligeira e surpreendente, que o Diabo apareceu na minha vida. Alguma vez viste o Diabo? Bem, eu já vi e o verdadeiro Diabo não tem um rosto preto assustador nem uma cauda pontiaguda. E não traz cá forquilha nenhuma! Portanto, o meu sósia era o Diabo! Era muita coisa para assimilar, mas que escolha tinha eu? Além disso, ele parecia ser um tipo simpático. Por isso, decidi que teria simplesmente de entrar no jogo.
Observando-o melhor, percebi que, embora o Diabo se parecesse muito comigo, não podíamos ser mais diferentes no que tocava ao estilo. Tenho tendência para me vestir com peças básicas pretas ou brancas. Por exemplo, sou capaz de vestir calças pretas com uma camisa branca e uma camisola preta. É aborrecido, eu sei, mas eu sou mesmo assim: um tipo monótono. Lembro-me, há séculos, de a minha mãe estar farta disso e dizer-me:
— Lá estás tu outra vez a comprar o mesmo tipo de roupa...!
Mas eu não conseguia evitar escolher o mesmo tipo de coisa sempre que ia às compras.
O Diabo, porém, vestia-se, digamos, de uma forma pouco convencional. Camisas havaianas de cores garridas com palmeiras ou imagens de carros clássicos americanos, e estava sempre de calções — como alguém permanentemente de férias. E, claro está, não podiam faltar os óculos de sol (provavelmente Ray-Ban). Estava vestido como se ainda fosse verão, apesar de fazer um frio de rachar. Quando a minha impaciência estava prestes a atingir o limite, o Diabo começou a falar.
— Então, o que vais fazer agora?
— Como assim?
— Resta-te pouco tempo de vida, não é?
— Pois, assim parece...
— Então, o que vais fazer?
— Oh, bem, acho que vou começar por pensar na lista das dez coisas...
— A sério? Como naquele filme antigo?
— Bem, sim, mais ou menos, acho eu...
— Vais mesmo fazer uma coisa tão pirosa?
— Então, não te parece bem?
— Bem, quero dizer, é verdade que muita gente faz isso e algumas pessoas convencem-se de que hão de fazer mesmo tudo antes de morrerem. Conheces gente assim? Quase toda a gente passa por isso uma vez... até porque não há uma segunda!
O Diabo agarrou-se à barriga e soltou uma tremenda gargalhada.
— Desculpa, não estou a perceber a piada...
— Certo, certo... Bem, acho que nunca se sabe até se tentar, não é verdade? Vamos lá fazer uma lista rápida agora mesmo.
Assim, agarrei numa folha de papel em branco e escrevi o título no topo da página — «10 Coisas Que Quero Fazer Antes de Morrer».
Restava-me pouco tempo de vida e aquilo parecia-me uma grande perda de tempo. Enquanto escrevia, sentia-me triste, perdido e um pouco estúpido. Esquivando-me ao Diabo, que tentava espreitar por cima do meu ombro, e sendo interrompido pelo gato, que, como todos os gatos, acha que é uma boa ideia sentar-se em cima daquilo em que estivermos a tentar trabalhar ou ler, lá consegui acabar a lista.
Bem, então aqui vamos nós:
- Saltar de paraquedas.
- Escalar o Evereste.
- Conduzir um Ferrari a grande velocidade numa Autobahn.
- Comer um banquete inteiro como os dos imperadores chineses, que duravam três dias.
- Pilotar um robô gigante Gundam.
- Gritar pelo amor desde o centro do mundo.
- Ter um encontro com a Nausicaä.
- Virar uma esquina e dar de caras com uma bela mulher com uma chávena de café na mão e apaixonarmo-nos perdidamente.
- Cruzar-me com a rapariga por quem tive um fraquinho na escola enquanto nos abrigamos da chuva.
- Apaixonar-me...
— Mas que porcaria é esta?
— Hum, bem, tu sabes...
— A sério? Já não andas na escola! Francamente, sinto-me envergonhado por ti.
— Desculpa...
Sim, eu sei, sou patético. Fartei-me de pensar e isto foi o melhor que consegui arranjar. Até o gato parecia enojado e não se chegava a mim.
O Diabo aproximou-se e deu-me uma palmadinha no ombro, tentando animar-me.
— Pronto, pronto, bem... Certo, vamos lá tratar do salto de paraquedas. Vai levantar as tuas poupanças e depois seguimos para o aeródromo!
Duas horas depois, encontrava-me dentro de um avião a jato a uma altitude de três mil metros.
— OK, preparado? Força, salta!
Animado como sempre, o Diabo deu-me um empurrão e, logo em seguida, dei por mim a cair.
Sim. Era aquilo com que sempre sonhara: ver o céu azul a abrir-se, as nuvens imponentes e o horizonte que se estendia até ao infinito... Sempre pensei que as coisas nunca mais seriam as mesmas depois de ver a Terra lá do alto. Esquecer-me-ia de todas as coisas triviais e aproveitaria todas as coisas boas da vida. Acho que já ouvi alguém dizer uma coisa destas, mas não foi assim que aconteceu. Antes de saltar, já estava farto daquilo tudo. Quero dizer, a sério?! Faz frio, estamos muito lá em cima e é aterrador. Porque é que alguém saltaria de um avião de livre vontade? Era isto que desejara? Durante o salto, fui pensando nestas coisas até que, mais uma vez, caí literalmente na escuridão profunda.
Quando acordei, estava deitado na minha cama no meu apartamento minúsculo. Mais uma vez, foi o «miau» do gato que me acordou. Sentando-me com alguma dificuldade, percebi que a minha dor de cabeça continuava a matar-me. Não fora um sonho.
— Oh, vá lá, meu, dá-me um tempo...! — implorei ao Aloha (decidira que o Diabo, com as suas camisas havaianas, assim se chamaria doravante), sentado ao meu lado na cama.
— Peço desculpa por qualquer incómodo causado.
— A sério, eu podia ter morrido lá em cima... Bem, certo, eu sei que vou morrer de qualquer maneira, mas sinceramente...
O Aloha desatou a rir. Limitei-me a ficar calado e peguei no gato ao colo. Senti-o quente e suave: tinha uma bola macia e fofa nos braços. Antes, abraçava-o e fazia-lhe festas sem pensar no assunto, mas agora, pela primeira vez, isso fez-me pensar no sentido da vida.
— A questão é que... Quero dizer, não há muitas coisas que eu queira fazer antes de morrer.
— Oh, a sério?
— Pelo menos, acho que não conseguiria pensar em dez. E aquelas em que consigo pensar são provavelmente muito aborrecidas.
— Bem, suponho que a vida seja assim mesmo, não é?
— Oh, já agora, posso fazer-te uma pergunta?
— A quem, a mim?
— Sim, estava aqui a pensar... Porque é que vieste? Melhor dizendo: o que estás aqui a fazer?
O Aloha soltou uma gargalhada de escárnio.
— Queres mesmo saber? Então está bem, eu digo-te.
— Beeem, agora estás a assustar-me.
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