3.

Devo dizer, porém, que mais do que duende destruidor de pesadelos, preferiria ser um poeta encantador que resgata as namoradas da cova dos mortos. Se bem que, naquele momento, não houvesse necessidade. A pequena bailarina equilibrista na balaustrada, em vez de cair e de se estraçalhar toda no chão como acontecera com o meu avô, deu um salto elegante, aterrou na varanda e desapareceu para lá da porta envidraçada, fazendo o coração saltar-me, não pela garganta, mas pelos meus olhos enfeitiçados.

É Desta Que Leio Isto: Em janeiro recebemos Dulce Garcia

Anote na sua agenda. O É Desta Que Leio Isto já tem a primeira sessão de 2023 marcada. Dulce Garcia é a convidada do próximo encontro do nosso clube de leitura, a ocorrer no dia 19 de janeiro, pelas 21h.

Nascida em 1970, Dulce Garcia foi jornalista entre 1991 e 2017, escrevendo no Diário Económico e, acima de tudo, na Sábado, publicação de que foi fundadora e subdiretora. Assinou também colaborações nas revistas Elle, GQ, Vogue e Máxima. Hoje, é assessora de imprensa na área da política, trabalhando com o Ministério da Justiça.

A sua experiência na literatura bifurca-se nos dois lados da mesma moeda: foi editora de ficção portuguesa do grupo editorial Planeta e começou a publicar ficção com “Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum”, estreia editada na Guerra & paz em 2017.

Olho da Rua” — o seu segundo romance e uma das recomendações do ano do SAPO24 — trata-se de uma sátira do panorama laboral do século XXI, fazendo do escritório uma selva onde impera a lei do mais forte.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

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De qualquer modo, comecei a preocupar-me com ela. Receava que, embora não tivesse caído naquela altura, isso lhe acontecesse mais tarde; por isso, o tempo para travarmos conhecimento escasseava. Assim, esperei que ela reaparecesse na varanda e, quando isso aconteceu, levantei a mão para lhe acenar, mas fi-lo vagamente, sem energia, para que não me sentisse humilhado caso ela não me respondesse. De facto, não me respondeu, nem nesse dia, nem no seguinte, nem no outro ainda, fosse porque era objectivamente difícil dar-se conta do meu aceno, fosse porque não queria dar-me essa satisfação. Consequentemente, veio-me a ideia de vigiar a porta do prédio dela. Esperava que a menina saísse sozinha e queria aproveitar essa ocasião para nos tornarmos amigos, falar de tudo e nada num italiano bonito, e depois dizer-lhe: sabes que, se caíres lá em baixo, morres? O meu avô morreu assim. Parecia-me necessário dar-lhe aquela informação, para que pudesse decidir, em plena consciência, se devia, ou não, expor-se ao perigo.

Durante dias e dias, dediquei àquele fim as poucas horas em que, depois da escola e a seguir ao almoço, antes de fazer os deveres, andava pela rua a brincar, à pancada com miúdos bem mais selvagens do que eu, ou ocupando-me com coisas perigosas, como fazer reviravoltas agarrado a umas certas barras de ferro. Mas ela nunca apareceu, nem sozinha, nem com os pais. Evidentemente, tinha outros horários, ou então não tive sorte.

De qualquer forma, não me rendi, andava muito agitado naquele período. Tinha na cabeça tantas palavras e tantas fantasias, e umas e outras eram a respeito da menina. Não que houvesse qualquer coerência, as crianças, segundo me parece, não a têm, é uma doença que se contrai com o crescimento. Recordo-me que queria muitas coisas ao mesmo tempo. Queria, por um golpe de sorte, encontrar o apartamento dela no segundo andar, tocar-lhe à porta e dizer ao pai ou à mãe – melhor à mãe, os pais ainda hoje me assustam –, na língua dos livros que lia graças ao professor Benagosti, que mos emprestava: a vossa querida filha, cara senhora, dança maravilhosamente no parapeito da varanda, e é tão bela que não consigo dormir durante a noite, pensando que pode morrer no passeio a sangrar do nariz e da boca como o meu avô pedreiro. Porém, queria também ficar à janela à espera que a menina voltasse a brincar na varanda, para lhe mostrar que eu também sabia correr perigos de morte, passando da janela da casa de banho para a da cozinha, um passo a seguir ao outro, sem nunca olhar para baixo: uma façanha que já tinha conseguido fazer duas vezes – visto que era fácil, pois as janelitas tinham a balaustrada em comum – e que, se ela me tivesse acenado a sua concordância, teria repetido prontamente uma terceira. Queria, por fim, se chegasse a conseguir falar com ela, dizer-lhe – uma palavra puxa a outra – que me tinha apaixonado pela sua bela alma e que o meu amor seria eterno e que, se ela queria mesmo continuar a dançar sobre o parapeito e cair, então, poderia certamente contar comigo, iria pessoalmente buscá-la ao submundo, sem nunca fazer a asneira de me voltar para olhar para ela. Tornar-me um espião, morrer para me mostrar, resgatá-la da terra dos mortos, não eram contradições na minha cabeça, antes me pareciam momentos distintos de uma mesma aventura em que, de um modo ou de outro, eu fazia sempre uma óptima figura.

Entretanto, não só não consegui contactar a menina, como um longo período de chuva me impediu de a admirar enquanto brincava na varanda. Dediquei-me, então, entre uma chuvada e outra, à busca da cova dos mortos, com a intenção de não me deixar apanhar desprevenido por eventos trágicos. Assim que a minha avó me falara disso, fizera logo algumas tentativas, mas sem perder demasiado tempo. Graças aos livros do professor Benagosti, às revistas aos quadradinhos que me comprava a minha mãe e aos filmes que via no cinema Stadio, tinha uma data de papéis a desempenhar – o cobói, o sem família, o grumete, o náufrago, o caçador, o explorador, o cavaleiro errante, Heitor, Ulisses, o tribuno da plebe, só para mencionar alguns – e, por isso, procurar a entrada para a terra dos mortos passou a ser uma actividade secundária. Porém, com a irrupção da menina na minha vida de aventura, empenhei-me ainda mais e tive sorte.

Uma tarde em que – como dizia nervosa a minha avó – mo chiuvéva, mo schiuvéva, mo schizzichiàva1 e, por isso, não podia afastar-me muito de casa, mas somente dar uma volta com um amigo pelo pátio cheio de nuvens nas poças de água, descobri na terra, depois do grande canteiro das palmeiras, uma pedra rectangular que, se me estendesse em cima dela, era bastante mais comprida do que eu e tinha um cadeado enorme e reluzente de chuva. Vi-a e sobressaltei-me, ficando imediatamente gelado, não só por causa do frio húmido que se sentia, mas também de medo.

Vida Mortal e Imortal da Rapariga de Milão
créditos: Guerra e Paz

Livro: "Vida Mortal e Imortal da Rapariga de Milão"

Autor: Domenico Starnone

Editora: Guerra & Paz

Publicação: 10 de janeiro

Preço: €13,95

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– Que se passa? – perguntou-me, assustado, o meu amigo, que se chamava Lello, morava na escada B, e de quem eu gostava porque, se não houvesse outros amigos connosco, falava num italiano que se aproximava um pouco do dos livros.

– Está calado.

– Porquê?

– Os mortos ouvem-te.

– Quais mortos?

– Todos.

– ‘Tás a gozar.

– A sério, estão aqui em baixo. Esta é a pedra por onde, se abrirmos o cadeado e a levantarmos, saem os fantasmas.

– Não acredito.

– Toca no cadeado e vais ver o que acontece.

– Não acontece nada.

– Toca-lhe.

O Lello aproximou-se; eu mantive-me afastado. Ajoelhou-se, tocou no cadeado com muito cuidado e viu-se, de repente, um relâmpago, nunca tinha visto tanto brilho, a que se seguiu um trovejar furibundo. Fugi, ele seguiu-me de perto, cinzento de medo.

– Viste? – perguntei, sem fôlego. – Sim.

– Tu irias comigo, lá abaixo?

– Não.

– Que raio de amigo és tu?

– Está lá um cadeado.

– Rebentamos com ele.

– Não se rebentam, os cadeados.

– Dizes isso porque estás cagado de medo. Se não queres vir, levo uma amiga minha que não tem medo de nada.

Estas últimas palavras foram seguidas por algo que me deixou pasmado. O Lello sorriu com malícia e perguntou:

– A milanesa?

Descobri, naquele momento, que a menina dos meus pensamentos e suspiros era chamada daquela forma obscura – a milanesa – e tinha atraído, além da minha atenção, a de muitos outros colegas meus. E não era só isso. Era do domínio público que, quando estava sol, eu ficava a observá-la da janela como um pateta ou passava muito tempo à porta do prédio dela. A sério?

Fechei-me no meu habitual mutismo, mas primeiro atirei-lhe: vafanculostrunznunmeromperocàzz2, que era a fórmula necessária quando ninguém parecia capaz de compreender o quão especial eu era e que grandes coisas viria a fazer.

Notas:

  1. Ora chovia, ora não chovia, ora só chuviscava. (N. de T.)
  2. Vai levar no cu, monte de merda. Não me fodas a cabeça. (N. de T.)

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