O Primavera Sound Porto obrigou os jornalistas culturais e críticos musicais a seguir uma outra área profissional, a da meteorologia. E, juntamente com isso, obrigou todos os presentes a adoptar certas e determinadas tácticas de sobrevivência para que a chuva forte não incomodasse assim tanto o corpo, o que em alguns se revelou uma tentativa falhada: botas ou sapatilhas ensopadas, meias a nadar, as calças como um aquário e o tronco tão molhado como depois da natação. Lembram-se de “Frogger”, um dos mais famosos videojogos da história? Circular pelo Parque da Cidade tem sido um pouco semelhante, tirando o facto de não existirem crocodilos.
Felizmente, a segunda noite de Primavera Sound Porto não foi tão agreste quanto se temeu. Ainda que o piso não tivesse tido a oportunidade de se restabelecer, a chuva deu algumas tréguas e permitiu apreciar concertos sem ponchos, impermeáveis ou carapuços enfiados na cabeça. E, sobretudo, permitiu descansar o suficiente para aguentar mais uma série de horas de música.
Um festival é, infelizmente, sempre feito de sobreposições: artista x toca num palco a uma hora, artista y toca noutro palco à mesma hora, e assim sucessivamente. A segunda noite de Primavera Sound Porto tinha um nome extremamente apelativo ao público em geral: o de Rosalía, que veio uma vez mais apresentar o seu “Motomami” a Portugal. Os fãs que queiram saber como correu esse espetáculo só precisam de ler a reportagem escrita há uns meses, por ocasião da sua presença na Altice Arena; no Porto, Rosalía pouco mudou ao cenário e ao alinhamento, acrescentando apenas canções do EP que lançou com o namorado, Rauw Alejandro, em março.
Se a escolha era entre rever um (aceitável) espetáculo pop ou testemunhar, em palco, um grupo de lendas do punk rock, obviamente que o coração, jovem e roqueiro, escolherá o punk. Praticamente à mesma hora que a artista catalã atuou no palco principal, os Bad Religion subiram ao Palco Super Bock para cerca de uma hora de velocidade, crowdsurf, mosh, copos e plásticos e até sapatilhas lançadas para o ar – uma delas aterrou em palco e levou o guitarrista a perguntar “que raio é isto?”.
Entrando ao som de 'The Wreck of the Edmund Fitzgerald', a mais emblemática das canções de Gordon Lightfoot, falecido no mês passado, os Bad Religion fizeram as delícias de quem escolheu, conscientemente, ignorar um dos nomes mais apelativos do cartaz e optar por quem marcou presença com letras miudinhas. 'American Jesus' foi a primeira, pontuada pelos encontrões e desvarios de um grupo de britânicos alcoolizados, que claramente não sabiam quem eram os Bad Religion e estavam simplesmente a dar asas à sua patetice (rápida e felizmente, abalaram do local passados cinco minutos).
Num concerto que só pecou por não ter sido tocado a um volume capaz de provocar a surdez, que é o que se exige no rock n' roll, os Bad Religion mostraram porque é que, nos Estados Unidos, não se escreve “punk” sem mencionar o seu nome. Há Greg Graffin, o vocalista; Jay Bentley, ex-T.S.O.L. e Circle Jerks; Brian Baker, fundador dos Minor Threat e Dag Nasty (e, durante a tarde, muito surpreendeu ver uma pessoa em Portugal com uma t-shirt de Dag Nasty); Mike Dimkich, que já tocou com os Cult e Steve Jones (Sex Pistols); e Jamie Miller, antigo baterista dos ...And You Will Know Us By The Trail of Dead. É muita realeza punk junta.
Se o call and response de 'Come Join Us' levou alguns a desejar poder invadir o palco, o falso arranque de 'Generator' mostrou que os Bad Religion são apenas humanos – e o erro engrandece o artista. “Punk Rock Song”, com o verso principal a ser gritado pelas poucas centenas presentes, foi um dos momentos altos de um concerto onde a média de idades, do palco e fora dele, era superior à média do festival no seu todo. Mas, digamo-lo assim: no Primavera Sound Porto, os Bad Religion entraram em palco sem precisarem de provar o que quer que fosse, seja aos fãs de Rosalía, seja aos seus próprios fãs ou ao mundo em geral. Foi um concerto sem pressões, e é esse tipo de concertos que nos dá fé para continuar.
“onde estavam vocês em 2023”?
Não apenas esse, mas também outro tipo: o tipo de concertos que não sabemos muito bem ao que vamos, mas acabamos por sair de lá com a sensação de ter descoberto um segredo ou um tesouro. Fred Again..., que provocou uma das maiores enchentes do festival até ver, foi o sonho molhado de um melómano, a sensação de que ainda há muito (e ainda bem que assim é) por descobrir. O britânico começou por criar nome através das suas produções pop, para gente como Demi Lovato e Rita Ora, antes de se lançar a solo e gerar um hype tremendo através da sua participação num Boiler Room, em 2022. Já este ano, lançou um disco ambient, não tão interessante quanto isso, com Brian Eno. No Primavera Sound Porto, levou a uma dose saudável de loucura rave, o género de loucura que, parafraseando o Zomby de “Where Were U In '92”, nos faz querer questionar daqui a uns anos: “onde estavam vocês em 2023”?
Tudo começou com um vídeo do produtor e do seu comparsa de palco, Tony, nos bastidores. 'Kyle (I Found You)' foi o primeiro tema de um alinhamento repleto de eletrónica dançável e sentida, construída a partir de samples de vídeos ou canções alheias, que o músico descreveu como “um diário musical” de algumas coisas que lhe foram sucedendo nestes últimos anos.
Sorridente e claramente tão espantado quanto nós por se deparar com tamanha quantidade de gente (“fui passear pelo Porto e pensei que não ia ter ninguém”, disse a meio do concerto), Fred Again... encantou com a sua mestria da MPC, quase como um qualquer roqueiro a sacar um solo, debitou temas como 'Jungle' ou 'Angie (I've Been Lost)' e fez-nos acreditar que, por vezes, os hypes podem ser inteiramente justificados, mesmo que esta não tenha sido a mais extraordinária das presenças. A partir daqui, o que se segue? É a pergunta que interessa ver respondida.
Partindo de uma introdução a roçar o free, os Mars Volta foram buscar temas aos seus primeiros álbuns para deixar agradados todos os fãs acérrimos que não se importaram nem com a chuva, nem com o estado do relvado. Regressados após um hiato, os norte-americanos continuam a ter no guitarrista Omar Rodríguez-López o centro de todas as atenções: aquele é um instrumento que, nas suas mãos, ora chora copiosamente, ora rasga o infinito de eletricidade, ora soa tão alienígena que nem se parece tratar de uma guitarra.
Que dizer de uma banda que no espaço de poucos segundos passa de um rock bojudo para uma salsa? Tudo de bom, evidentemente, que é o que se deseja sempre que um artista redescobre as suas raízes e lhes acrescenta outras latitudes. O ponto alto, já depois de o vocalista Cedric Bixler-Zavala ter admitido que também queria ver Rosalía, foi mesmo uma incursão maravilhosa por 'Vitamin C', dos Can. Novamente a fé a funcionar: não se esperava muito dos Mars Volta (sobretudo após o horrendo “Octahedron”, de 2009) e acabaram a proporcionar um dos concertos do festival, até ver.
"boa tarde, somos os Rosalía"
São a banda residente do Primavera Sound e uma vez mais mostraram que vê-los ao vivo, nem que seja por dez ou quinze minutos, é absolutamente essencial de forma a obter a experiência completa deste festival. Os Shellac da América do Norte começaram por brincar com o público - "boa tarde, somos os Rosalía", atirou o baixista Bob Weston -, lançaram-se a 'Squirrel Song', homenagearam os scrappers (pessoas que, essencialmente, ganham a vida a vender o lixo alheio) de Chicago "sem conotações racistas ou classistas" e ainda mostraram temas novos, de um álbum gravado há ano e meio que ainda está por ser editado.
'Wingwalker', que é sempre um momento extremamente bem recebido por quem os vê, não apenas por ser uma excelente malha mas também pelas poses de Steve Albini e Weston a simular um avião, foi o momento mais alto de um concerto que nunca desilude. Já os vimos em praticamente todos os palcos do Primavera Sound e até fora deles. Só falta começarem a tocar à entrada.
Com uma truta insuflável posicionada no centro do palco, os neozelandeses The Beths gozaram de bom tempo e trouxeram boa onda. Talvez até demasiada, para um festival onde as críticas, nas redes sociais e fora delas, têm sido mais que muitas. Não obstante, a banda fez-se notar com um rock de sabor independente, dotado da vertigem necessária, e umas quantas belas canções: 'Future Me Hates Me' e 'Silence Is Golden', por exemplo. É absolutamente verdade que o fuzz pode salvar vidas, e o quarteto provou-o. Ainda que não tenhamos percebido aquilo da truta, mas o terreno tem estado bom é para peixes.
Já passava das 16h20 e a entrada para o recinto ainda se encontrava encerrada. Mas eis que tudo tem um jeito, e foi possível apanhar um pouco do concerto que teria início daí a meros dez minutos: o dos Fumo Ninja, banda formada por Norberto Lobo, Leonor Arnaut, Raquel Pimpão e Ricardo Martins, que trouxeram até ao Porto as canções de "Olhos de Cetim" (2022), e ainda temas novos.
Com a chuva a intercalar-se com alguns rasgos de sol (soou a ironia o verso deixei a minha alma gémea lá fora à chuva, de 'Algas'), lamentavelmente não foi possível apreciar o concerto dos Fumo Ninja na sua plenitude. Isto porque, a escassos metros, no Palco Plenitude, os Surf Curse trouxeram rock n' roll e um volume tão elevado que acabou por destruir a experiência. Mas talvez tenha sido um sinal de uma revolução por acontecer: o dia em que um artista no palco principal teve que aturar o som que vinha de um secundário. Normalmente é ao contrário.
O Primavera Sound Porto prossegue esta sexta-feira com concertos de Pet Shop Boys, Le Tigre, My Morning Jacket, Pusha T, NxWORRIES, King Kami e Tokischa, entre outros.
Comentários