Em miúda já gostava de moda e ainda se lembra de ver, no Canal Panda, os desenhos animados das Navegantes da Lua e de ir a correr para o quarto desenhar as suas roupas. "Eram umas bonecas estilizadas, com poderes mágicos, que se transformavam e mudavam o que tinham vestido. O máximo", conta Matilde Mariano.
O bichinho da moda nunca mais desapareceu, mas quando chegou a altura de ir para a faculdade Arquitetura apresentava-se como "um plano mais seguro. E eu gostava e gosto muito", acrescenta. "Sou muito grata pelas bases que me deu, a noção da geometria, do espaço, o contacto com diversos softwares, tudo". Fez a licenciatura e o mestrado, entregou a tese em fevereiro, recebeu 19 valores.
Era nos Açores que estava, com o pai, na viagem prometida de final de curso, quando recebe uma notificação: a AI Fashion Week 2023 publicou um post. Na verdade, não foi um, foram dez, todos de seguida, a anunciar os nomes do Top 10 do concurso internacional de moda com recurso à Inteligência Artificial, em que participaram mais de 400 candidatos de todo o mundo.
"Estávamos a almoçar nas Furnas, a comida tinha acabado de chegar à mesa. Vou ver e estava lá o meu nome, nem queria acreditar. O meu pai levantou-se e abraçou-me, foi muito emotivo".
Matilde não sabia ainda, mas a história estava longe de acabar. Antes de avançar, o melhor é saber como tudo começou e conhecer o percurso até chegar aos dez finalistas. E à vitória, com o prémio de produzir em Los Angeles, em parceria com a Revolve, uma coleção de prêt-à-porter da sua autoria.
O poder da informação
Curiosa, Matilde Mariano estava "espojada no sofá da sala a ler notícias sobre Inteligência Artificial" no seu iPhone. "Há centenas de sites e é muito difícil estar a par. Todos os dias, várias vezes ao dia, aparecem novidades. Num site internacional tropeço no concurso: IA Fashion Week". Interessou-se.
A fase seguinte foi ler as regras, saber o que implicava submeter um projeto. "Podíamos utilizar as ferramentas que quiséssemos, desde que recorrêssemos à Inteligência Artificial, e tínhamos que gerar uma coleção coerente de 30 imagens, 30 peças, 30 looks com backstage: cenários, convidados, acessórios (sapatos, carteiras, chapéus, óculos, o que fosse), e a coleção principal tinha de ser num cenário de passerelle".
Este era o desafio, um mês para fazer tudo. "Passei muitas noites em claro, sobretudo por causa do critério da coerência, que era fator de desqualificação, e que não é tão fácil como parece". Utilizar a Inteligência Artificial também deu alguma luta: "A IA é acima de tudo uma ferramenta para chegar a um fim, mas tem de ser humanizada. A criatividade é nossa, as referências são nossas. Quanto mais alimentarmos estas ferramentas com este conhecimento, mais perto do que queremos fica o resultado final. Costumo comparar isto com contar um sonho a alguém. Por mais que o descreva, nunca essa pessoa vai ver o que eu vi. Tenho de lhe dar um nível quase excessivo de pormenores para que a imagem seja o mais clara possível. E é isto que a máquina faz. Muitas vezes os programas geram imagens exageradas, e também fui aprendendo muito pelo caminho".
De resto, a organização permitia e até incentivava a pós-produção, ou seja, a utilização de programas de manipulação ou edição de imagem, como o Photoshop e outros, para aperfeiçoar detalhes. "Foi um trabalho denso, olhar para os pormenores e ver se batiam certo, corrigir cor, luz, mãos - porque nas primeiras versões destes softwares havia dificuldade em tudo o que fosse padrões ou extremidades, como narinas, mãos, orelhas, que era preciso afinar", explica.
No fim, Matilde Mariano submeteu mais de 70 imagens. "Entusiasmei-me", ri-se.
O dilema de estar ou falhar a exposição em Nova Iorque
Uma vez submetida a candidatura, havia agora que ultrapassar as quatro fases eliminatórias do concurso promovido pela Maison Meta em parceria com a Revolve, uma das maiores empresas de moda e de e-commerce do mundo". A começar pela primeira triagem, que excluía liminarmente todos os que não cumprissem algum dos parâmetros definidos no regulamento. Foram aceites mais de 400 concorrentes de todo o mundo: China, Japão, Europa, Estados Unidos, América Latina.
"Fui muito às cegas, sem saber o que esperar. O regulamento era claro, as regras estavam bem definidas e o projeto tinha de incluir uma coleção de ponto-a-vestir que pudesse ser produzida para vender a retalho. Sabia que o grande patrocinador era a Revolve, sediada em Los Angeles, e imaginava que, sendo uma empresa americana, o mais provável é que pelo menos um dos três primeiros prémios fosse para um americano", confessa.
A segunda etapa era ficar no Top 40. "Estava em casa e recebi um email. A mensagem dizia que tinha passado à fase seguinte e que a minha coleção (e outras tantas) seria exposta em Nova Iorque, onde haveria imprensa. E convidava-me a estar presente". Só mais tarde lhe caiu a ficha: "Como assim, a minha coleção vai estar exposta em Nova Iorque?!"
De repente, Matilde Mariano era tema da "Elle", da "Forbes" e do "New York Post". "Foi surreal", admite. "Na altura, foi um pouco um dilema. Eu não estava ali ao lado, em Boston, por exemplo, e a viagem era por conta dos concorrentes. A minha coleção ia estar exposta em Nova Iorque, num edifício com uma vista belíssima para Manhattan, mas valia a pena investir tanto dinheiro para ir lá? Só um bilhete de avião custava cerca de 700 euros".
Era preciso ponderar. Matilde não estava sozinha. José Sobral, que conheceu na faculdade, encontrava-se na mesma situação. "Conversámos sobre isto. Eu não sabia se passaria à terceira fase; se não passasse, perdia a oportunidade de falar com certas pessoas, conhecer o meio, fazer contactos. Por outro lado, se fosse a Nova Iorque e passasse à terceira fase, gastava muito dinheiro, quando na realidade teria a oportunidade de voltar mais tarde. Se calhar, não valia assim tanto a pena. Não fui", recorda Matilde. "Era fazer figas e esperar pelo que aí viesse, já não estava nas minhas mãos".
Veio a terceira etapa e os que foram selecionados para a exposição em Nova Iorque seriam agora submetidos a uma votação aberta. Os dez mais votados passariam à fase seguinte. "Era preciso conseguir votos do público. A votação online era anónima, cada vez que se entrava no site os candidatos apareciam de forma aleatória, para não induzir o voto. Foi assim ao longo de duas semanas".
E foi este o resultado que Matilde recebeu quando estava nos Açores. Agora, vinha o pior (ou o melhor): a escolha dos três finalistas, desta vez por um júri internacional constituído por pessoas influentes no mundo da moda, como a vice-presidente da Adidas, Erika Wykes-Sneyd, ou o CEO do Revolve Group, Michael Mente.
Um prego, um croquete e uma imperial no Galeto
Matilde passou o dia em que a organização ia anunciar os três vencedores da AI Fashion Week 2023 colada ao ecrã do telemóvel. "Nunca na vida o júri ia dar dois de três prémios a Portugal, no máximo daria um, até para diversificar. Por isso, eu e o José Sobral decidimos que um ficaria feliz pelo outro caso algum dos dois ganhasse. Se ganhasse, íamos ao Galeto comer um croquete e beber uma imperial. Se não ganhasse, íamos ao Galeto comer um croquete e beber uma imperial".
Na data prevista, "chega a hora de almoço e, anúncio nenhum". Sempre agarrada ao telefone e já com alguma fome, é hora de ir comer qualquer coisa, sempre a fazer refresh e a recarregar a bateria. A tarde passa e, nada. "Um desespero". "Às 19 horas há um chuvisco e é dentro do meu Honda que resolvemos fazer uma pausa para ver um vídeo no YouTube, para distrair", recapitula Matilde.
Às oito da noite o vídeo acaba e, mal baixam o ecrã, o telemóvel vibra. Mensagem no Instagram: "Parabéns, sempre soube que ias ganhar, sempre acreditei em ti!" "Hã? Calma, ganhar o quê?!" O meio de comunicação privilegiado da organização do evento era a plataforma Discord, que há mais de 40 minutos tinha anunciado os vencedores do concurso. "E nós nas calmas, a fazer refresh no Instagram e a ver vídeos", ri-se Matilde.
É então que Matilde Mariano descobre que nos dois primeiros lugares ficaram dois portugueses, Matilde Mariano (2.º) e José Sobral (1.º). O terceiro lugar foi atribuído aos Estados Unidos, à estilista americana Opé.
"Fiquei a tremer. Vamos produzir uma coleção. Vamos produzir uma coleção nos Estados Unidos para vender na Revolve. Em todo o mundo". E lá foi ao Galeto comer um prego, um croquete e beber uma imperial. "Brindámos e ficámos à espera do que se seguiria".
As últimas semanas de Matilde foram passadas nos Estados Unidos, em Los Angeles, a acompanhar a par e passo a produção da sua coleção, que em breve será apresentada ao público. "Fazia sentido que estivessem aqui!", disse a Revolve. E embarcaram rumo aos States.
O plano era ficar um mês, mas correu tão bem que acabou por se estender. Da logística tratou a Revolve. "Deram-nos um gabinete a cada um, na sede deles, de frente para o atelier de costura. A equipa, gerida Bobby e por Miguel, era extraordinária. Foram as pessoas com quem trabalhei de perto a acompanhar a produção de tudo. E tudo, é tudo, da compra de tecidos aos botões, dos fechos às linhas. Fizemos os desenhos técnicos para cada peça, moldes, padrões, cortes", descreve Matilde. Inicialmente, a coleção terá cerca de dez a onze modelos.
Matilde Mariano não gosta de dar nada como garantido, mas sabe que a sua vida "deu uma volta de 180 graus por estar atenta à informação. Há um ano não sonhava que hoje estaria a dias de apresentar em Nova Iorque uma coleção que criei. E que bom que foi não ter cruzado os braços e ter arriscado. Além de tudo, valeu uma data de conversas divertidas à mesa, em que as pessoas ainda estão a rapar o resto da mousse de chocolate e querem saber o resto da história. Mudou tudo".
Comentários