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SER MAIS BELA
–Tenho pensado em pôr implantes mamários.
Tinham passado três meses desde que a Makiko me ligou para fazer aquela declaração.
A princípio, perguntou-me o que pensava e ouviu com atenção o que respondi, mas as coisas mudaram quando os telefonemas se tornaram mais frequentes, até três noites por semana e sempre à uma da manhã, depois de a Makiko chegar a casa do trabalho. Ficou cada vez mais claro que não queria a minha opinião. Ligava-me só para se ouvir a pensar alto.
Os seus monólogos tinham dois refrões: «Vou fazê-lo, vou ter mamas grandes» e «vou mesmo levar isto avante?». Nos dez anos que vivo em Tóquio, a Makiko raramente me tinha ligado a meio da noite, e sem dúvida que isso nunca se tornou um hábito. Não estava preparada para aquilo. Que devia dizer?
– Claro, porque não? – disse sem pensar muito quando ela o referiu pela primeira vez, esperando que fosse o fim. Mas dizer «claro, porque não?» abriu as comportas. Era uma luz verde e, dali em diante, mal me deixou falar. Enquanto isso, a Makiko deu-me uma educação de primeira acerca do estado da cirurgia de aumento mamário. Explicou os diferentes custos, como e o que doeria e tudo sobre o período de recuperação que os médicos eufemizavam como «recobro». De vez em quando, chegávamos a uma espécie de coro em que a Makiko se tornava a sua própria oradora motivacional.
– Eu consigo. Vou mesmo fazê-lo.
Mas, na maior parte das vezes, parecia que lia para si mesma toda a informação que tinha encontrado durante o dia.
Durante estes debates acalorados, tentei lembrar-me do aspeto dos seios da Makiko, mas não consegui. Suponho que será natural porque nem sequer consigo imaginar os meus próprios seios, mesmo que estejam presos a mim. A Makiko conseguia falar sem parar acerca de todos os pormenores dos implantes e partilhar todas as suas opiniões e observações, mas eu não conseguia encontrar uma relação entre ela e seios e, muito menos, entre ela e aumento mamário. Enquanto a ouvia falar, senti algo completamente distinto de desconforto ou desinteresse. Tive de perguntar a mim mesma: «Falamos agora dos seios de quem… e porquê?»
As coisas entre ela e a Midoriko estavam tensas (como há meses). Quando a Makiko caía num dos seus «transes de implantes mamários», tentava arrancá-la àquilo falando na filha. Mas, se perguntasse «como está a Midoriko?», ela limitava-se a dizer «sim, está boa» com uma voz que deixava claro que era a última coisa que queria discutir.
Pensar-se-ia que teria outras preocupações. A Makiko caminhava para os quarenta. Para onde a levava a sua vida? Como se saía a nível financeiro? E a filha? Havia muitas outras coisas de que poderia ter falado e todas elas eram mais importantes que os implantes.
Mas quem era eu para a julgar? Tinha-me mudado para Tóquio para estar sozinha e era solteira da forma mais absoluta possível. Não era mãe. Não tinha qualquer direito de lhe dizer como devia educar a sua filha. Se alguém estivesse preocupada com a Midoriko, seria claramente a sua mãe.
Gostava de ter dinheiro. Ou um emprego normal, alguma coisa mais sustentável. Mas, se a Makiko tivesse qualquer outra alternativa, não trabalharia à noite no bar nem deixaria a Midoriko sozinha. Se tivesse escolha, nunca deixaria a filha vê-la voltar para casa bêbada, mesmo que isso fizesse parte do seu trabalho. Não tinha perspetivas. O seu único consolo era que tinha amigas próximas que podiam ir a sua casa num ápice se alguma coisa acontecesse.
Mas, mesmo que as coisas estivessem más, preocupava-me sinceramente que pudessem piorar se continuassem assim. Como trabalhar à noite. Quando a Midoriko crescesse mais, a Makiko não podia deixá-la sozinha à noite assim.
Não estava certo. Nem pensar. As coisas teriam de mudar, e em breve. Mas que outra coisa poderia fazer?
A Makiko não tinha talentos e eu não podia ajudá-la quando ganhava o salário mínimo. A Midoriko era só uma criança e as crianças davam despesa. Não tínhamos parentes a que pudéssemos pedir ajuda e nenhuma hipótese de casar com alguém rico. As hipóteses disso eram menos que zero. Era tão provável como ganhar a lotaria. Mas havia sempre a segurança social… Tínhamos falado disso uma vez, pouco depois da minha mudança para Tóquio. A Makiko sentiu-se zonza e caiu.
Nunca descobrimos porquê. Durante semanas, pensámos que podia ter alguma coisa. Alguma coisa séria, digo. Teve de fazer um monte de exames e, basicamente, vivia no hospital. Deu cabo dela. Porque não conseguiu ir trabalhar, perdeu a sua fonte de rendimento. Por isso, falámos sobre a forma de sobreviverem no futuro próximo.
– E a segurança social? – Tentei que visse aquilo como uma opção, mas a Makiko não aceitou. Até ficou rancorosa comigo por fazer a sugestão e acabámos a dizer umas coisas bastante desagradáveis uma à outra. A Makiko tinha decidido que «viver da segurança social» era um motivo de vergonha.
Pensava que a segurança social transformava alguém numa espécie de parasita, que vivia às custas do governo e era um fardo para a sociedade. Acreditava que, de alguma forma, manchava a dignidade humana.
Eu via as coisas de maneira diferente. Para mim, a assistência social era só dinheiro, puro e simples, e não tinha nada que ver com vergonha ou dignidade. Perguntei-lhe para que servia o governo se não para ajudar as pessoas em momentos de necessidade. Quando as coisas ficavam difíceis, tínhamos de nos levantar e exercer os nossos direitos. Há um motivo para se chamar segurança social. Mas a Makiko não aceitava aquilo. Em lágrimas, contou-me que isso anularia todo o trabalho que tinha feito até ali na sua vida. Chorou e disse que nunca tinha pedido esmolas e que se limitava a trabalhar tão arduamente quanto conseguia, manhã, tarde e noite. Deixei de lhe dizer o contrário. Todos os seus exames deram negativo e, graças ao dinheiro que o bar lhe avançou, as coisas não demoraram a voltar ao normal. Mas o normal estava muito longe do sustentável.
– É neste sítio que estou a pensar fazê-lo.
A Makiko mostrou-me a primeira brochura da pilha.
– Acredita que pesquisei por Osaka inteira e falei com todas as clínicas diferentes, mas este sítio é a minha escolha. Nem saberia dizer-vos quantas brochuras tinha. De todas as formas e tamanhos. Teria bem mais de trinta. A Makiko continuava a não ter um computador. Imaginá-la a localizar todas aquelas clínicas diferentes sem usar a Internet era tão deprimente que decidi não lhe perguntar como o tinha feito. Demorei-me a olhar para a sua primeira escolha por um momento e folheei algumas das outras brochuras, mais interessada em todas as clínicas que não tinham conseguido estar à altura dos seus critérios. A maioria tinha raparigas brancas louras à frente, quase nuas, para dar uma ideia do aspeto dos seios. As brochuras estavam decoradas com fitas cor-de-rosa ou bonitos padrões florais.
– Tenho a minha consulta amanhã. O ponto alto do meu verão. Trouxe estas comigo para perceberes como é. Tenho muitas mais em casa, mas estas são as melhores. Dentro de uma das brochuras, encontrei um médico de bata branca a retribuir-me o olhar com um sorriso alucinado na cara. Mesmo reduzido àquela escala, os seus dentes pareciam assustadoramente brancos. As palavras «a experiência é tudo» estavam escritas com letras grandes por cima da sua cabeça. Devo ter olhado fixamente porque a Makiko disse:
– Esquece isso, vê isto – e passou-me a brochura da clínica que tinha escolhido.
– Isto é uma clínica? – perguntei. – Parece mais um spa de luxo.
A brochura do seu sítio preferido era preta e brilhante, impressa em cartão grosso. Tinha uma coisa que não estava nas outras brochuras. Poderiam dizer que parecia cara, mas eu achei que parecia agressiva. As letras eram grossas e douradas. Sem sinais da pureza adorável, feliz e descomprometida que se encontrava normalmente em anúncios de clínicas para mulheres comuns. O seu estilo evocava todo o drama do bairro da luz vermelha e de todos os que lá ganhavam a vida. A cirurgia de aumento mamário não é simples.
Uma mulher tem muitas perguntas e espera-se um pouco mais de leveza de espírito, um toque mais delicado, uma compreensão, mesmo que seja tudo encenado. O que levaria alguém a ir à faca numa clínica com brochuras que pareciam panfletos de um clube noturno VIP? A minha imaginação levou-me a melhor, mas a Makiko ignorou o meu silêncio e continuou.
– Como te disse ao telefone, há formas diferentes de o fazer. Mas, basicamente, há três opções. Lembras-te?
Estava prestes a dizer não, mas forcei um aceno afirmativo com a cabeça.
– Primeiro, há o silicone. Depois, há o ácido hialurónico. Ou podem tirar gordura doutro sítio no corpo e usar isso. O silicone é o mais popular, sem dúvida. Também se conseguem os melhores resultados, mas é também o mais caro. Isto é silicone, vês?
A Makiko bateu com as unhas contra as fotografias de silicone cor de pele distribuídas pelo papel negro.
– Também há vários tipos de bolsas. Era isto o que queria mostrar-te. Todas as clínicas dizem uma coisa um pouco diferente, o que torna difícil escolher, mas isto é o melhor, o topo de gama. Gel de silicone, cem por cento. Chamam-nos de implantes de ursos de goma. Seja como for, este é um pouco mais duro que o gel, mas é mais resistente a fugas. Mesmo que se rompa, é perfeitamente seguro. Só parece um pouco duro. Algumas pessoas pensam que não parece natural. Depois, há a solução salina. O melhor dos implantes salinos é que não enchem os sacos até estarem dentro e, por isso, podem fazer um corte mais pequeno.
Mas a maioria das pessoas escolhe o gel de silicone. É o que todas fazem. Sim, pensei muito nisto e quero silicone. Este sítio só cobra um milhão e quinhentos mil ienes pelos dois seios. Com anestesia geral, são só mais cem mil.
Quando acabou, a Makiko fez uma cara como se perguntasse «então?» e olhou fixamente para mim. A princípio, limitei-me a retribuir o olhar, pensando porque olhava para mim daquela forma, mas, a seguir, percebi que tinha parado para eu poder partilhar a minha opinião.
– Uau – disse, tentando sorrir. Ela continuava a olhar fixamente e, por isso, acrescentei: – Mas um milhão e quinhentos mil ienes? É muito dinheiro! – Não era tanto uma opinião e sim um facto, mas, mal o disse, pensei se teria dito as palavras erradas.
A verdade é que 1 500 000 ienes era muita massa. Difícil de imaginar. Nenhuma de nós tinha essa quantidade de dinheiro. Nem sequer parecia um número real. Disse-me 1 500 000 ienes como se não fosse nada, mas receei que a forma como eu o disse transmitisse a ideia de que era demasiado para os seios dela…. Tinha-lhe perguntado: «Vales mesmo assim tanto?
Os teus seios valem esse tipo de investimento?» Teria sido uma pergunta válida, mas esforçava-me para parecer que a apoiava.
– Bom… não sei – disse eu. – Quer dizer, é muito dinheiro, mas é o teu corpo, certo? É pena que o seguro não cubra a despesa, mas… talvez não seja assim tão mau!
– É isso o que acho. – A Makiko sorriu e acenou devagar com a cabeça antes de continuar com voz mais delicada. –
Olha para esta, Natsu. A brochura diz quatrocentos e cinquenta mil ienes, certo? Mas, quando vais ver a clínica, é impossível que isso seja tudo o que vais pagar. A estratégia deles gira em torno de te apanhar lá dentro. Depois de lá estares, as coisas começam a somar-se. Além disso, se aceitares os preços promocionais que eles puseram na brochura, nem sequer podes escolher o cirurgião. É provável que te ponham nas mãos de um cirurgião de vinte e dois anos sem experiência. Há muita coisa em que pensar… Falamos de um processo muito longo. É uma verdadeira viagem.
A Makiko fez uma pausa e fechou os olhos antes de os abrir para me olhar.
– Sim, depois de pensar em tudo isso, decidi que era esta! Estas coisas correm mal com frequência. Fora da cidade, as mulheres não têm muitas opções e, por isso, vão onde podem. Aqueles médicos de cidade pequena não têm prática suficiente e depende tudo da experiência, percebes? É por isso que as pessoas que levam isto a sério e as pessoas que alteram os seios vêm todas aqui.
– Estou a perceber… mas olha, Maki. Esta diz que o ácido hilo… hialurónico é uma simples injeção. E a brochura diz que é natural. Isso significa que não há cirurgia, não cortam nada. Porque não podes fazer isto?
– O problema do ácido hialurónico é que o corpo o absorve e desaparece. – Pressionou os lábios. – Por oitocentos mil ienes? Não, obrigada. Mas tens razão. Não deixa cicatrizes. Nem sequer dói. Na verdade, seria a melhor coisa de sempre se durasse. É mais para modelos e celebridades.
Para aqueles momentos importantes em que precisam de um pouco mais. Mas acaba por ser mais caro a longo prazo. Pareceu-me que tinha decorado a brochura toda. Nem sequer olhou para ela enquanto me falava das desvantagens.
– Vês a parte sobre as injeções de gordura? – perguntou.
– O único motivo para dizerem que são seguras é o facto de a gordura vir do teu próprio corpo, mas, mesmo assim, têm de abrir uns buracos em ti. E fazem-no com a maior agulha que já viste. Exige tempo e muita anestesia. A sério, viram-te do avesso para conseguir isso. Sabes aquelas máquinas que usam para abrir buracos no asfalto? É assim, mas o teu corpo é o estaleiro de obras. Não estou a brincar.
As coisas podem correr muito mal. Às vezes, as pessoas morrem. Além disso – A Makiko tentou manter o sorriso. –, não tenho gordura para dispensar.
Após meses a ouvir aquelas coisas ao telefone, tinha certeza de que tinha percebido os elementos básicos, mas ouvir a Makiko em pessoa fez-me ver as coisas de forma diferente. Na verdade, deixava-me triste. Era a mesma sensação de estar numa estação de comboio, num hospital ou na rua e parar a uma distância segura de alguém que parecia não conseguir parar de falar, quer alguém lá estivesse para ouvir ou não. Senti-me assim enquanto via a Makiko a fazer isto. Não por não me importar com ela ou com o que tinha para dizer ou por não ser solidária com ela. Mas percebi que tinha pena dela de uma forma que não tinha nada que ver com qualquer uma dessas coisas e isso fazia-me sentir culpada. Sem pensar, comecei a puxar a pele do lábio com uma unha e, quando lambi os lábios, senti o sabor a sangue.
– Ah, isso lembra-me outra coisa. Isto é muito importante. Conseguem pôr o silicone de duas formas diferentes. Tens de escolher. Se for debaixo do músculo, por baixo da gordura, fica muito lá em baixo e é mais difícil perceber que o fizemos. A outra forma é mais superficial. Por baixo das glândulas mamárias. Essa é mais fácil para o corpo e é mais rápido, mas não é boa ideia para alguém tão magra como eu. Sabes aquelas mulheres que têm mamas que parecem ter sido puxadas para fora com um desentupidor? Estás a ver o tipo? Sim? Não? Não têm carne em lado nenhum no corpo, só nas mamas. Não posso fazer isso. Parece tão falso. Por isso, tomei uma decisão. Tem de ser por baixo do músculo. Pelo menos, acho que é isso o que vou fazer.
Querido Diário,
Depois de começar a ter o período, todos os meses até parar, sangue vai sair do meu corpo e isso assusta-me tanto. Não posso fazer nada para impedir que aconteça. Também não tenho pensos higiénicos em casa. Basta isso para me deixar em pânico.
Quando acontecer, não vou dizer à minha mãe. Vou escondê-lo. Na maioria dos livros, quando uma rapariga tem o seu primeiro período (descrevem isso sempre como se fosse uma espécie de presente), há sempre uma cena em que a rapariga pensa: boa, agora posso ser mãe, obrigada por me teres, mãe, agora faço parte do ciclo da vida, estou tão feliz por estar viva. Quando vi uma história dessas pela primeira vez, não acreditei no que lia.
A rapariga fica sempre tão feliz. Vai ter com a mãe com um sorriso enorme na cara. Conta-lhe que aconteceu e a mãe retribui o sorriso e diz: agora és uma mulher, parabéns. Poupem-me.
Em algumas dessas histórias, as raparigas contam à família inteira e aos colegas da escola. Há uma em que a mãe faz arroz vermelho e comem-no em família, mas isso é ir longe demais. Parece que os livros se esforçam demasiado para que pareça uma coisa boa. Estes livros são para raparigas que ainda não tiveram o período, certo? Parece que tudo o que querem é fazer as raparigas pensar que tudo vai correr bem.
No outro dia, na escola, entre aulas, alguém, não me lembro quem, dizia: «Nasci rapariga e, por isso, sem dúvida que quero ter um bebé meu, um dia.» Mas de onde vem isso? O sangue que sai do nosso corpo transforma-nos em mulheres? Em potenciais mães? E o que torna isso assim tão fantástico? Alguém acredita realmente nisso? Obrigarem-nos a ler estes livros estúpidos não faz com que seja verdade. Odeio-o tanto.
Sinto que estou presa dentro do meu corpo. É ele que decide quando tenho fome e quando terei o meu período. Do nascimento até à morte, é preciso continuar a comer e a ganhar dinheiro só para continuarmos vivos. Vejo o que trabalhar todas as noites faz à minha mãe. Dá cabo dela. Mas para quê? A vida é dura que chegue só com um corpo. Porque quereria alguém fazer outro? Nem consigo imaginar porque alguém se daria ao trabalho, mas as pessoas fingem que é a melhor coisa de sempre. Mas acreditam nisso? Quer dizer, alguma vez pensaram a sério nisso? Quando estou sozinha e penso nestas coisas, fico sempre triste. Sei que não é para mim, pelo menos.
Depois de ter o período, o corpo consegue fertilizar espermatozoides. E isso significa que podemos engravidar. E, depois, temos mais pessoas para pensar, comer e encher o mundo. É demais. Fico um bocado deprimida só a pensar nisso. Nunca o farei. Nunca terei filhos. Nunca.
Midoriko
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