
Num enclave rodeado de betão e cimento, nasceu um pequeno retângulo verde florescente na avenida Avelino Teixeira da Mota, em Chelas, na zona oriental de Lisboa.
Sufocado por uma fila infindável de prédios que decoram a paisagem do bairro da Flamenga, bem vigiado por dezenas de janelas e vizinho de vista de hortas urbanas, este novo espaço de inclusão está aberto a rapazes e raparigas, brancos, pretos, ciganos e toda a espécie humana e credos religiosos, sem fronteiras, nem barreiras.
Trata-se do primeiro campo de futebol Lay’s RePlay em Portugal, o 12 a nível mundial, um tapete de relva sintética criado a partir de material reciclável produzido por películas das embalagens da marca de snacks da multinacional norte-americana.
Através destes campos, a bola e o futebol assumem-se como personagens principais da transformação social e propulsores para quebrar barreiras e eliminar de estigmas sociais, além de proporcionar a prática desportiva a todos num espaço inclusivo, promotor da igualdade, conforme escrito nos sete mandamentos à entrada do recinto, um antigo ringe de cimento.
Ricardo Quaresma, ex-internacional português e Tatiana Pinto, atual jogadora do Atlético de Madrid e embaixadora do projeto, pisaram e subiram ao relvado do novo estádio do bairro de Chelas na passada quinta-feira.
Deixaram o testemunho das vicissitudes de jogar à bola na rua, da capacidade de integração social operada por este desporto, em particular, e do crescimento do futebol no feminino, horas antes da final feminina da Liga dos Campeões que opõem este sábado, no Estádio de Alvalade XXI, o FC Barcelona e Arsenal.
“O futebol tem falta de futebol de rua”
"Esta juventude merece ter condições para jogar. Até para saírem de casa e deixarem um bocado as redes sociais, os computadores, os telemóveis, e voltarem a jogar futebol de rua”, disse Ricardo Quaresma, o menino que nasceu na rua, despontou no Domingos Sávio antes de vestir a camisola do Sporting Clube de Portugal que o transportou para o mundo das estrelas planetárias.
“O futebol tem falta de futebol de rua. Os melhores de sempre vieram da rua e faz falta estas iniciativas para dar condições a estes miúdos poderem crescerem e desfrutar do futebol. Cada vez há menos miúdos a virem da rua para o futebol", lamentou à margem da apresentação do campo do bairro de Chelas, um projeto pela PepsiCo e Lay’s, em parceria com a UEFA Foundation for Children e a Common Goal, Câmara Municipal de Lisboa e a Associação CAIS.
“A verdade é que, pelo menos falando por mim, não me dá prazer nenhum ver futebol. É tudo igual", lamentou na conversa com os jornalistas, referindo-se à excessiva robotização do jogo e dos jogadores.
O futebol une as pessoas. Não importa se és cigano, preto ou branco
Questionado pelo SAPO24 sobre de que forma o futebol pode servir de ferramenta no combate à crescente maré de ódio, xenofobia e racismo que explode, em particular, mas não só, nas redes sociais, Quaresma, que se orgulha de ser uma mistura cigana (pai) e africana (mãe), levou o discurso para um patamar acima.
"Os culpados disso tudo somos nós. Nós é que incentivamos esse ódio, essa raiva. Não é por seres preto, seres cigano, seres branco, amarelo, seja o que for, que vai mudar alguma coisa. Somos todos iguais, cada um com a sua personalidade, a sua maneira de pensar, a sua maneira de estar na vida, mas não deixamos de ser todos seres humanos, não deixamos de ter sentimentos. Por isso, acho que os culpados disto tudo somos nós, que criamos essas diferenças”, sustentou o ex-internacional português, campeão europeu em 2016.
Sem pausas, continuou. “Acho que não vale a pena entrarmos por esses caminhos de racismo e de tanto ódio, porque todos vamos acabar no mesmo sítio, que é num buraco", apontou. "O futebol é isso, o futebol (e outras modalidades) une as pessoas. É importante para esquecer um bocado as cores", rematou Ricardo Quaresma, 41 anos.
“Há muita miúda hoje em dia que gosta de jogar futebol”
O rapaz Quaresma, nascido para o futebol na rua, sem os luxos dos dias de hoje e onde “qualquer buraco” servia para dar uns pontapés na bola, comentou ainda o crescimento do futebol de saltos altos.
"O futebol feminino está a crescer e estão de parabéns, por terem crescido tanto, em tão pouco tempo. Temos jogadoras com muita qualidade e acho que temos de pôr os olhos nelas. E estas iniciativas também ajudam”, enalteceu.
“Há muita miúda hoje em dia que gosta de jogar futebol. Antes havia aquele preconceito que, porque é menina, não pode jogar. Hoje em dia já não há isso. Esta iniciativa, tanto é para homem, como para mulher”, concluiu o antigo jogador do Porto, Barcelona, Inter, entre outros.
Oportunidades iguais para todos da comunidade
Depois das trivelas do antigo Hary Porter, a bola aterrou no pé de Tatiana Pinto, internacional portuguesa e jogadora do Atlético de Madrid.
O primeiro toque recordou memórias de infância. "Quando comecei (a jogar) não tive essa oportunidade, jogava com o que tinha e agora que vejo este campo espetacular e penso o que seria se tivesse tido um campo assim", disse Tatiana Pinto.
“Comecei na rua num meio muito pequeno (perto de Aveiro), com pouca gente e poucas infraestruturas e por isso mesmo aceitei ser parte deste projeto”, justificou.
“No fundo o que quero para todos os meninos e meninas, para os mais jovens, é que tenham oportunidades iguais e este campo dá-lhes essa oportunidade e tenho a certeza que vai ter um impacto super positivo nesta comunidade, aqui em Chelas, em Lisboa”, atestou a médio de 31 anos, ex-Sporting.
"O futebol dá-nos esta paixão pelo desporto, de unir toda gente, mas hoje não é só sobre futebol e sobre o desporto, é antes sobre trazer oportunidades para toda a gente, para a comunidade, para que se sintam importantes e continuem a sonhar, para que possam treinar e a jogar e isso é o mais importante", acrescentou a colchonera.
“O futebol feminino tem este poder, somos diferentes”
Instada a comentar a final feminina da Liga dos Campeões, Tatiana Pinto não teve dúvidas na hora de apontar a preferência do emblema vencedor, que recai na equipa de uma colega de seleção.
“Vou torcer pela Kika (Francisca Nazareth), é portuguesa e acho que é o mínimo. Vou torcer pelo Barcelona, acho que é a melhor equipa do mundo e acredito que vai ser uma vitória do Barcelona”, informou a jogadora que está “muito feliz” em Madrid.
Lisboa tem sido testemunha da adesão do público ao futebol no feminino. Tatiana Pinto pegou no assunto e dissertou. “Há uns anos seria impensável colocar um jogo de futebol feminino em estádios acima de 20 mil lugares”, assinalou, numa referências à final há 12 anos no Estádio do Restelo e, agora, tendo Alvalade como palco. “Hoje em dia tem de ser norma, e quem não apostar e quem não investir, fica para trás”, avisou.
“O futebol feminino tem este poder, somos diferentes. É um sentido de pertença, autêntico, de ver famílias no estádio, desde avós a crianças, bebés. É um local seguro, as famílias sentem-se seguras e, no masculino não acontece tanto. As pessoas ainda pensam se levam as suas crianças, ou não”, comparou. “O feminino tem esta diferença, é difícil explicar. Não há tanta rivalidade, esse é o lado bonito do futebol”, finalizou Tatiana Pinto, embaixadora do campo Lay’s Replay Chelas, instantes da fadista Sara Correia, nascida no bairro, cantar um dos seus sucesso, “Chelas”.
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