Nove da noite
No interior do quarto no dormitório – De dia
Ficar não é opção. Foi por isso que Charlie aceitou entrar no carro de um perfeito desconhecido.
Prometeu ao Robbie – prometeu a si mesma – que desistiria da viagem se alguma coisa lhe parecesse suspeita. Todo o cuidado é pouco. Hoje em dia.
Depois do que aconteceu a Maddy.
Charlie já se preparou para a eventualidade de ter de fugir, listando mentalmente todos os cenários em que não deverá seguir viagem. Se o carro estiver em mau estado e/ou tiver vidros fumados. Se houver mais alguém dentro do carro, seja qual for a razão. Se ele parecer demasiado ansioso por partir ou se, pelo contrário, não parecer suficientemente apressado. Prometeu – ao Robbie, a si mesma, a Maddy, com quem ainda fala às vezes, apesar de ela já ter morrido há dois meses – que, se sentir nem que seja um pingo de apreensão, volta a correr para o dormitório.
Ela duvida que isso vá acontecer. Porque ele parece ser simpático. Amigável. Não é, absolutamente, o tipo de pessoa que faria as coisas que fizeram a Maddy e às outras.
Além disso, ele não é um desconhecido. Não propriamente. Já se tinham visto uma vez, em frente ao quadro de boleias no interior do campus, atulhado de anúncios de estudantes desesperados por voltar para casa e de estudantes desejosos de os levar até lá em troca de dinheiro para a gasolina. Charlie tinha acabado de afixar o seu anúncio – cuidadosamente impresso, com o seu número de telefone escrito em cada uma das tiras que cortou meticulosamente – quando ele surgiu ao seu lado.
– Vais para Youngstown? – perguntou ele, olhando alternadamente para ela e para o anúncio.
Charlie hesitou antes de responder. Um hábito que tinha adquirido pós-Maddy. Nunca falava espontaneamente com pessoas que não conhecia. Pelo menos, não até ter uma ideia de quais seriam as suas intenções. Ele podia estar só a meter conversa ou a tentar engatá-la. Improvável, mas não inteiramente impossível. Afinal de contas, foi assim que conheceu Robbie. Já fora bonita, antes de as garras da culpa e da dor se terem cravado nela.
– Sim – acabou por dizer, depois de ele voltar a olhar para o quadro de boleias, fazendo com que decidisse acreditar que ele estava ali pela mesma razão que ela. – É para lá que vais?
– Akron – retorquiu ele.
A resposta fez com que Charlie lhe prestasse mais atenção. Não era propriamente Youngstown, mas era lá perto. Uma paragem rápida a caminho do seu destino.
– Pendura ou condutor? – perguntou ela.
– Condutor. Contava encontrar alguém que quisesse dividir a gasolina.
– Eu podia ser esse alguém – disse ela, deixando-o observá-la, dando-lhe a oportunidade de decidir se ela era o tipo de pessoa com quem ele quereria passar várias horas sozinho dentro de um carro. Ela sabia a imagem que passava: trombuda, o que fazia com que tipos como ele lhe dissessem para sorrir mais, não fosse terem medo de que ela lhes desse um murro por causa disso. A desgraça e a tristeza pairavam sobre ela como uma nuvem carregada.
Charlie fez o mesmo, examinou-o de alto a baixo. Ele parecia ser uns anos mais velho do que o aluno típico, embora isso se pudesse ficar a dever ao seu tamanho. Era grande. Alto, de ombros largos e maxilar quadrado. Trazia umas calças de ganga e uma suéter da Universidade de Olyphant, parecia, pensou Charlie, o herói de uma comédia universitária dos anos 40. Ou o vilão de uma dos anos 80.
Presumiu que ele era um aluno de mestrado, como Robbie. Uma daquelas pessoas que tinha gostado tanto da vida universitária que decidira nunca mais sair de lá. Porém, ele tinha um cabelo bonito, algo em que Charlie ainda notava, apesar de ter deixado o seu ficar fraco e estragado. Também tinha um sorriso bonito, que exibiu quando disse:
– É possível. Quando é que querias ir?
Charlie apontou para o seu anúncio e para as quatro letras em maiúsculas no centro da página:
ASAP (1)
Ele arrancou uma tira da parte de baixo do anúncio, deixando um espaço que fez com que Charlie se lembrasse de um dente em falta. A ideia fê-la arrepiar-se.
O homem guardou a tira com o número na carteira.
– Vou ver o que posso fazer.
Charlie não estava à espera de ter uma resposta. A semana já ia a meio, em meados de Novembro, a apenas dez dias do Dia de Acção de Graças. Ninguém estava a pensar sair do campus nesta altura. Ninguém a não ser ela.
Porém, nessa mesma noite, o seu telemóvel tocou e ouviu uma voz vagamente familiar do outro lado da linha dizer: «Olá, é o Josh. Do quadro de boleias.»
Charlie, que estava sentada no seu quarto a olhar para a metade que outrora estivera repleta com as coisas de Maddy, mas que agora estava apenas ali, vazia e sem vida, divertiu-se ao responder: «Olá, Josh do quadro de boleias».
– Olá… – Josh fez uma pausa, decerto para ver na tira de papel como é que ela se chamava. – Charlie. Era só para te dizer que posso ir embora amanhã, mas apenas ao fim do dia. Pelas nove da noite. Se quiseres, tenho um lugar à pendura com o teu nome.
– Fico com ele.
E foi assim.
Agora, o amanhã é já hoje, e Charlie passa os olhos pelo quarto para onde provavelmente nunca mais voltará. O seu olhar percorre lentamente a divisão, garantindo que assimila cada centímetro do lugar a que chamou casa nos últimos três anos. As secretárias desarrumadas. As camas apilhadas de almofadas. A iluminação decorativa que Maddy pendurou no primeiro Natal, e que nunca se deu ao trabalho de tirar, piscava agora intensamente.
A luz dourada do Sol de uma tarde de Outono entra pela janela, dando a tudo um brilho sépia e fazendo com que Charlie se sinta simultaneamente alegre e triste. Nostalgia. Essa bela agrura.
Alguém entra no quarto, atrás dela.
Maddy.
Charlie sente o perfume dela. Chanel n.º 5.
– Que espelunca – afirma Maddy.
Um sorriso melancólico percorre os lábios de Charlie.
– Acho que…
– Charlie.
No interior do quarto no dormitório – À noite
O som da voz de Robbie, vindo da porta aberta, quebra o feitiço como um estalar de dedos. Num piscar de olhos, o quarto perdeu a sua magia. As secretárias estão vazias. As camas estão despidas. A iluminação decorativa continua lá, só que está desligada e está assim há meses. Pela janela, Charlie não vê a luz quente do sol, mas um rectângulo de absoluta escuridão.
Quanto a Maddy, já se foi há muito. Nem o mais pequeno vestígio do seu perfume subsiste.
– São nove – diz o Robbie. – Devíamos ir andando.
Charlie está no centro do quarto, ainda momentaneamente perdida. Quão estranho é – quão profundamente chocante – passar da imagem na sua cabeça para a dura realidade. Não resta qualquer felicidade naquele quarto, percebe isso agora. É só uma caixa de paredes brancas que contém apenas memórias, amargadas pela tragédia.
Robbie observa-a da porta. Ele sabe o que acabou de acontecer.
Um filme na cabeça dela.
O facto de Robbie nunca se ter sentido incomodado com eles é uma das coisas que ela adora nele. Ele conhece a história dela, conhece as suas obsessões, compreende o resto.
– Tomaste o teu comprimido hoje?
Charlie engole e acena com a cabeça.
– Sim.
– E já emalaste tudo? – pergunta Robbie, como se ela fosse simplesmente passar o fim-de-semana fora e não, com toda a certeza, para sempre.
– Acho que sim. Não foi fácil.
Ela passou a maior parte do dia a separar as suas coisas em duas pilhas: levar ou deixar para trás. Acabou por levar muito pouca coisa. Apenas duas malas com toda a sua roupa enfiada lá dentro e uma caixa cheia de memorabília e das suas adoradas cassetes VHS. O resto foi posto em caixas escrupulosamente colocadas no meio do quarto, facilitando assim a tarefa do encarregado que tiver de deitar tudo fora quando se aperceberem de que ela nunca mais irá voltar.
– Podes ficar mais um pouco, se precisares – diz Robbie. – Não tens de ir hoje à noite. Eu posso levar-te, se puderes esperar pelo fim de semana.
Charlie percebe. No entanto, para ela, esperar – mesmo que sejam só mais uns dias – é tão impensável como ficar.
– Acho que agora é demasiado tarde para desistir.
Ela agarra no seu casaco. Bem, no casaco de Maddy. Um casaco que era da avó de Maddy e que fora acidentalmente esquecido quando levaram todos os seus pertences. Charlie encontrou -o debaixo da cama de Maddy e ficou logo com ele para si. É vintage – dos anos 50 – e atipicamente dramático para Charlie, que, por norma, prefere coisas que a façam misturar-se com a multidão. Feito de lã vermelho-vivo, o casaco tem uma enorme gola em forma de asas de borboleta que se juntam quando Charlie o abotoa até ao queixo.
Robbie leva-lhe as malas de viagem, deixando Charlie a balançar a caixa e a mochila JanSport que ela usa em vez de uma mala de mão. Charlie não tranca a porta atrás de si. Para quê dar-se a esse trabalho? O seu último acto antes de se ir embora é apagar os nomes rabiscados com marcador lavável no quadro branco afixado na porta.
Charlie + Maddy
As palavras deixam-lhe uma mancha de tinta na palma da mão.
Eles saem rápida e silenciosamente, sem que as outras raparigas do andar se apercebam; a maioria está reunida na sala da televisão ao fundo do corredor. Charlie ouve a voz de Roseanne Barr, seguida de gargalhadas gravadas. Embora nunca tenha percebido a obsessão por televisão que havia no seu dormitório – porquê ver televisão se ver filmes é muito melhor? –, esta noite, Charlie agradece a distracção. O seu plano era ir-se embora sem ter de se despedir. Apesar de ter feito boas amizades com muitas das raparigas do seu andar, quando Maddy morreu, tudo mudou. Agora, era melhor simplesmente desaparecer. Num momento, estava aqui, no momento seguinte já não estava. Tal como acontecera com Maddy.
– Isto vai ser bom para ti – afirma Robbie, enquanto apanham o elevador para o primeiro andar. Charlie percebe-lhe o fingimento da voz, o que deixa claro que ele pensa o contrário. – Só precisas de te afastar daqui por um tempo.
Nos três dias que passaram desde que Charlie anunciou a sua intenção de deixar a universidade, Robbie manteve-se em adorável negação quanto ao que isso significaria para eles, enquanto casal. Apesar de terem prometido manterem-se fiéis um ao outro e de se terem precipitado a fazer planos para Robbie ir visitar Youngstown durante as férias de Natal, Charlie sabe o que é que realmente vai acontecer.
A sua relação está a chegar ao fim.
Não ao estilo de vamos-ambos-seguir-caminhos-diferentes. Definitivamente, não ao estilo de Rhett Butler: «Francamente, minha querida, estou-me nas tintas». Contudo, Charlie sabe que a separação será inevitável. Ela estará a dois estados e a seiscentos quilómetros de distância. Ele irá continuar a estar na Olyphant e a ser, para usar a frase da Maddy depois de o ter conhecido, um bom partido. Robbie Wilson, o cromo de matemática do campus e o assistente do treinador de natação, com o queixo do Richard Gere e os abdominais do Brad Pitt. Mesmo agora, as raparigas já pairam à sua volta, ansiosas por ocupar o lugar dela. Charlie terá de aceitar que, mais dia menos dia, alguma acabará por ser bem-sucedida.
É esse o preço que está disposta a pagar para sair deste lugar. Só lhe resta esperar que não se venha a arrepender disso.
(1) ASAP significa, em inglês, «as soon as possible», ou seja, «o mais depressa possível». (N. de T.)
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