Primeira parte

EM CASO DE APOCALIPSE

Em novembro de 2015, dei por mim em Paris para assistir à conferência das Nações Unidas sobre a emergência climática. Digo que dei por mim não porque não tivesse sido eu a procurar aquela situação: pelo contrário, a questão ambiental consumia‐me o pensamento e as leituras havia algum tempo. Porém, se não estivesse prevista uma conferência sobre o clima, é provável que tivesse inventado uma outra desculpa para partir, um conflito armado, uma crise humanitária, uma preocupação diferente e maior do que as minhas, pela qual me deixasse absorver. Talvez não seja mais do que isso a fixação de alguns de nós com os desastres iminentes, essa inclinação para as tragédias que tomamos como nobre, e que constituirá, julgo, o centro desta história: na necessidade de encontrar a cada passo complicadíssimo da nossa vida algo ainda mais complicado, mais urgente e ameaçador no qual diluir o sofri‐ mento pessoal. E talvez a nobreza não tenha de todo algo a ver com isto.

Era um período estranho. Eu e a minha mulher tentáramos por diversas vezes ter um filho, insistíramos ao longo de cerca de três anos, submetendo‐nos a procedimentos médicos cada vez mais humilhantes. Embora eu devesse dizer, mais precisamente, submetendo‐se sobretudo ela a esses procedimentos, pois no meu caso, a partir de um certo ponto, tratara‐se na maioria das vezes de desempenhar o papel do espectador aflito. Apesar da nossa determinação cega e de uma razoável quantidade de dinheiro investida, o plano não funcionara. Nem as injeções de gonadotropinas, nem os processos in vitro e nem sequer três viagens desesperantes ao estrangeiro das quais não faláramos a ninguém. A mensagem divina contida nesses fracassos repetidos era clara: isto não faz parte do vosso destino. Dado que eu me recusava a admiti‐lo, Lorenza decidira também na minha vez. Uma noite, com as lágrimas já enxutas ou sem de facto chorar (nunca saberei), comunicara‐me que já não fazia tenções de. Usara essa expressão suspensa, já não faço tenções de, eu rodara o corpo, virando‐lhe por meu turno as costas, e acolhera a raiva que estava a crescer por uma escolha que me parecia injusta e unilateral.

Nesses tempos, eu levava a minha pequena catástrofe pessoal mais a peito do que a planetária, do que a acumulação dos gases com efeito de estufa na atmosfera, do que a diminuição dos glaciares e do que a subida das águas dos oceanos. Mais para desaparecer do que qualquer outra coisa, solicitei ao Corriere della Sera que me creditasse para a conferência sobre o clima de Paris, embora já tivesse expirado o prazo para apresentação de pedidos. Tive de lhes suplicar, aliás, como se para mim se tratasse de um encontro irrenunciável. Só teriam de me pagar o voo e as peças que escrevesse. Em relação à dormida, safar‐me‐ia em casa de um amigo.

Madalena Sá Fernandes junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de novembro, pelas 21h00. A autora traz "Leme", o seu primeiro livro, editado pela Companhia das Letras.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Madalena Sá Fernandes nasceu em Lisboa, em 1993. Licenciou-se em Línguas, Literaturas e Culturas pela Universidade Nova de Lisboa e escreve crónicas no jornal Público.

Este livro apresenta "o relato da vivência de uma rapariga que assiste, durante anos, à erosão dos pilares que sustentam as ligações humanas: vê a mãe subjugada à violência do homem com quem mantém uma relação amorosa disfuncional; vive na pele a distorção dos papéis desempenhados por pais e filhos; alimenta-se da solidão para ultrapassar um quotidiano de medo e fúria; disputa um lugar só para si no meio do caos familiar; aprende a reconhecer o consolo das pequenas vitórias; e, por fim, reconstrói-se a si e às suas memórias", é referido na sinopse.

"Nenhuma criança conhece de antemão os nomes das coisas, mas todas as crianças reconhecem instintivamente o perigo. Para a protagonista desta história, o perigo tem o nome de um homem, e é sinónimo de obsessão, desequilíbrio, solidão, desamparo, poucas certezas e muitas dúvidas", pode ler-se.

Assim, "Leme" é entendido como "um golpe de escrita para regressar à vida. Uma cintilação plena de vida e um soco no escuro que nos engole: eis um livro que aponta diretamente aos limites do bem e do mal".

Giulio arrendava um T1 sombrio no décimo quarto, Rue de la Gaîté. Rua da alegria?, disse‐lhe ao entrar. Não casa lá muito bem contigo.

Sem dúvida. Se fosse a ti, não acalentaria grandes ilusões.

Partilháramos um apartamento em Turim anos antes, Giulio enquanto estudante deslocado, eu enquanto privilegiado que desejava ter a primeira experiência fora de casa, embora com os pais a meia hora de autocarro. Ao contrário de mim, após a licenciatura, Giulio mantivera‐se na Física. Mudara inúmeras vezes de posto, sem sair da Europa, pois nutria uma aversão política invencível pelos Estados Unidos. Entretanto, casara e separara‐se, tivera um filho e fixara‐se finalmente em França, com uma bolsa de investigação da École Polytechnique, onde se dedicava a modelos do caos aplicados à finança.

Jantáramos duas doses de massa como uns miúdos de vinte anos, sem pôr a mesa, e eu falei‐lhe do motivo pelo qual estava em Paris, do motivo oficial. Giulio procurou um livro na prateleira. Já leste este?

Respondi que não, fazendo o rebordo das páginas desfilar sob o polegar. Colapso, murmurei, parece‐me perfeito.

Tem um ponto de vista interessante sobre a extinção. Guarda‐o.

Fiquei algum tempo com a palavra «extinção» às voltas na cabeça, como a etiqueta de um destino pessoal. Levantei os pratos enquanto Giulio me punha rapidamente a par de Adriano, que já fizera quatro anos. Assaltara‐me uma certa sonolência devida aos hidratos de carbono, mas, tendo terminado o vinho, saímos de casa para continuar a beber.

Lá fora, Paris estava militarizada, tétrica. Dias antes, um grupo levara a cabo um atentado entrando numa sala de concertos, durante a atuação dos Eagles of Death Metal, e disparando durante vários minutos sobre a multidão compacta. Outros terroristas tinham atacado alguns bistrôs e dois deles tinham‐se feito explodir às portas do Stade de France. Nessa noite, eu e Lorenza convidáramos um casal de amigos para jantar e tinha sido a sua mãe a avisar‐nos. Lorenza não atendera o primeiro telefonema, nem o segundo, mas aquela insistência era suspeita e ela acabaria por se render. A mãe dissera acendam a televisão, só isso, ao mesmo tempo que as mensagens iam chegando em catadupa aos telemóveis de todos nós. Durante mais de uma hora, acompanháramos as atualizações em direto, calados, até que os amigos se foram embora, instigados pela necessidade inteiramente irracional de ver se o filho estava bem em casa. Eu e Lorenza mantivéramos a televisão ligada ainda durante algum tempo, com a faixa vermelha das notícias de última hora a desfilar em baixo, ininterruptamente, embora as legendas já se tivessem tornado cíclicas. Os pratos estavam na mesa, frios, enquanto uma outra coisa se juntava ao nosso pavor: um terror privado, uma sensação de luto sem perda que pesava sobre o aparta‐ mento havia já alguns dias, precisamente desde a noite em que ela dissera já não faço tenções de e eu me virara para o lado oposto.

Eu e Giulio fomos andando durante algum tempo, passando pelos centros de massagens com os vidros escurecidos, pelas lojas de sex toys e pelas gastronomias asiáticas. Depois, sentámo‐nos num estabelecimento ao acaso, com as cadeiras viradas para a rua, e pedimos duas cervejas. Ele recomeçou a falar dos livros que lera: manuais sobre a vigilância digital, sobre as primaveras árabes e os novos populismos. Giulio lia uma infinidade de livros. Tinha uma visão da realidade muito mais complexa do que a minha, muito mais comprometida, e assim era desde que o conhecera. Na universidade, coordenara dois anos seguidos a associação da sala B1, na cave, onde havia cartazes No Nuke pendurados e uma fotografia de Oriana Fallaci com o nome deturpado para ORINA, ao passo que eu só descia à B1 no intervalo do almoço e só para estar com ele, como se estar perto dele bastasse para fazer com que eu me tornasse um pouco mais consciente, um pouco mais ético.

Ali, na Rue de la Gaîté, fiquei a ouvi‐lo a falar, bebericando a minha cerveja. Deixei que me lavassem o espírito a sua competência infalível, o barulho dos carros e o movimento browniano das pessoas. Nas curtas pausas da conversa, ambos passávamos os olhos por outras bandas e parecia‐me que, nesses instantes, víamos acontecer à nossa frente a mesma cena: um fantasma negro a surgir do meio da multidão e a erguer os braços para o céu antes de varrer o estabelecimento a rajadas de metralhadora. Pela forma como eu me sentia no meu âmago – estéril, desprovido de futuro –, parte de mim desejava que isso acontecesse realmente. Era um devaneio idiota e culpado, repleto de autocomiseração, mas dei‐me espaço para o ter, mesmo que não o tivesse dito a Giulio. Nunca lhe falara da questão dos filhos. Sempre tivéramos uma amizade em que se discutia o mundo exterior, evitando‐nos a nós mesmos o mais possível, e talvez por isso tivesse durado tanto tempo.

Livro: "Tasmânia"

Autor: Paolo Giordano

Editora: Dom Quixote

Data de Lançamento: 14 de novembro de 2023

Preço: € 18,80

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Na manhã seguinte, apanhei a RER B e depois um auto‐ carro para ir até Le Bourget, onde estava a decorrer a COP21. As verificações à entrada eram enervantes, mas uma vez lá dentro havia liberdade de movimentos. Pavilhões, salas pequenas ou médias, sessões plenárias e paralelas divididas por cores. Uma hospedeira mostrou‐me a sala de imprensa com um espaço exclusivo, ligação por cabo e tudo o que era necessário. Aparentei uma familiaridade que não possuía.

Após alguns dias de participação em painéis de todo o tipo, escolhidos um pouco ao acaso no programa, tive de admitir que não havia muito que contar. Nas assembleias, discutiam‐se alíneas e parágrafos específicos, inclusivamente termos particulares que acabariam por figurar no tratado, as intervenções eram rígidas ou excessivamente genéricas. O ambiente era um assunto aborrecido. Lento, desprovido de ação e de tragédia, a não ser as potenciais. Sobrecarregado, em compensação, de boas intenções. Eis o problema oculto da emergência climática: o tédio atroz. Assistir à elaboração de um acordo internacional chegava a ser soporífero. Deveria testemunhar cada avanço milimétrico apresentando‐o como uma revolução, mas quem haveria de se interessar por aquilo? Quem, se era eu o primeiro a passar pelas brasas nas saletas penumbrosas, entorpecido pelas sanduíches que comia de enfiada, embalado pelas intervenções monocórdicas dos dele‐ gados senegaleses, cubanos, ou que apareciam em túnicas tradicionais do Tibete?

Ao cabo de cinco dias, eu não produzira um artigo sequer. Começaram a perguntar‐me do jornal quais seriam as minhas intenções. Estou a pensar no assunto, garanti, estou quase lá.

Ao jantar, abordei a questão com Giulio. O mais interessante que encontrei é uma instalação, uma Torre Eiffel em miniatura, construída com cadeiras encaixadas umas nas outras. Mas não me parece suficiente para um artigo.

Como assim, em miniatura?

É assim desta altura.

Não, então não é suficiente.

Eu preparara bifes para ambos, comprados em vácuo num supermercado bio. Pretendia ser um gesto de agradecimento. Ao cozinhá‐los, tinham deitado imenso fumo, mas Giulio, ao entrar, não dissera nada.

Sim, o clima é uma verdadeira chatice, admitiu.

Julguei que a conversa teria terminado ali. Ao invés, após um instante de reflexão, ele disse: Podias ir ter com o Novelli. Talvez ele te conte algo diferente.

E quem é esse?

Um físico, como nós.

Idade?

Menos de cinquenta. Fazia exercícios de métodos em Roma. Todo simpático durante o curso e depois um ignóbil na oral. Nesse tempo era um furioso anticapitalista.

Como tu?

Giulio sorriu: Pior. Reencontrei‐o aqui em Paris. Dedica‐se agora a modelos climáticos, algo relacionado com as nuvens. Se quiseres, ponho‐vos em contacto.

Terei encolhido os ombros, fingindo que estava a ponderar, embora já me tivesse agarrado àquela possibilidade. Tudo para evitar mais um dia a vaguear entre os pavilhões ecoantes de Le Bourget, com frases feitas sobre o mal‐estar do planeta a rodopiar na cabeça.

O que não esperava era que Novelli me convocasse nessa mesma noite para uma cervejaria na Rue Monge. Fui lá ter a pé, embora fossem quase três quilómetros. Durante o percurso inteiro, não arredei os olhos do telemóvel, recolhendo o maior número de informações possível sobre Jacopo Novelli, PhD. Não que houvesse muita coisa na Internet, ainda não era suficientemente conhecido naquela altura (nem suficientemente famigerado) para ter uma página na Wikipedia, embora tivesse uma própria, um pouco tosca, ao jeito de autodidata do WordPress. Listava os papers mais recentes e fornecia indicações relacionadas com o seu curso de sistemas complexos. Havia também uma galeria onde surgiam fotografias de céus nublados, acompanhadas de breves legendas que classificavam o tipo de formação gasosa: alto‐estratos, cirros, cúmulo‐nimbos, a nomenclatura que eu me recusara a aprender para o exame de Meteorologia, que só valia três créditos.

Não esperei por si para pedir, disse‐me Novelli, sem o menor ar de culpa. Tinha calculado que demoraria menos tempo.

Vim a pé.

Do décimo quarto?

Parecia perplexo, mas não acrescentou nada. Seguiu antes o meu olhar até ao seu prato, até à montanha de comida que lá estava.

Admirável, hã? Venho cá de propósito. Embora não devêssemos comer hambúrgueres com estas dimensões. Devido às emissões de CO2, obviamente. Mas sobretudo por causa das artérias. Só que estes são verdadeiramente irresistíveis. Está a ver?

Ergueu a sanduíche para me mostrar a secção lateral. Todas as camadas estão bem separadas. Alface, queijo, carne, cebola. Não é como aquelas mixórdias que costumam trazer‐nos. Peça um.

Já comi, obrigado.

Pior para si.

Deu uma dentada na sanduíche, enquanto eu me demorava a estudá‐lo. Tinha o aspeto um pouco aprumado de certos cientistas no auge da carreira. Se tinha sido desleixado a vestir‐ ‐se em miúdo, como muitos estudantes de Física (eu incluído), levaria agora o assunto muito a peito.

Conhece a síndrome de Kessler?, perguntou‐me. Abanei a cabeça.

O Giulio disse‐me que gostaria de falar sobre o fim do mundo. Tal como toda a gente hoje em dia, de resto. Embora conviesse apercebermo‐nos antes de mais de que não estamos a falar do fim do mundo, mas do fim da civilização humana, o que é muito diferente. E, de certa forma, enquanto estava aqui à sua espera, veio‐me à cabeça a síndrome de Kessler.

Chupou a maionese do indicador antes de pegar no telefone para procurar uma imagem. O que vê aqui?

Ovnis?, arrisquei, mais em jeito de brincadeira.

Ovnis, exato, é o que todos dizem. É uma pena que os ovnis não existam e esta seja uma fotografia verdadeira. São satélites lançados sequencialmente por uma dessas novas empresas de Internet chinesas. Não imagina a quantidade de metal que está a girar sobre as nossas cabeças, já saturámos as órbitas baixas, basicamente.

Rodou o hambúrguer, atacando‐o novamente na beira. Tal‐ vez quisesse deixar a parte central, mais suculenta, para o fim.

Imagine que um parafuso se solta de um desses satélites. Deve acontecer a toda a hora, não é? Os parafusos soltam‐se. Bom, esse parafuso viaja a cerca de trinta mil quilómetros por hora, é um projétil. A essa velocidade, pode furar como se nada fosse uma espessura de aço. Imagine agora que o para‐ fuso embate noutro satélite, que esse se estilhaça e dispara em volta uma quantidade de outros projéteis metálicos, que vão embater noutros satélites.

Uma reação em cadeia.

Justamente, uma reação em cadeia. No fim, o que será de todo esse material turbilhonante? Ninguém faz ideia. Mas uma parte poderá até precipitar‐se para a Terra, como uma espécie de chuva de asteroides. Chama‐se síndrome de Kessler, e sabe que mais? É uma ameaça real. As pessoas não pensam no assunto porque não sabem. Quem sabe são as mesmas pessoas que disparam os satélites para o ar, e com o dinheiro que ganham constroem refúgios antiatómicos. Mas as pessoas sentadas a estas mesas não. Agora anda tudo com o Estado Islâmico e o aquecimento global na cabeça, mas a verdade é que há uma infinidade de ameaças mais originais. A seca, o envenenamento das reservas hídricas, as pandemias – eu bem disse, fartei‐me de o dizer! –, a revolta das inteligências artificiais. Além, obviamente, das que já nos parecem fora de moda. Como o velho inverno nuclear.

Por instantes, ao ouvi‐lo, pensei no meu pai. Quando andava atrás da minha mãe por casa ao domingo, perseguindo‐a como um drone: na lavandaria, na varanda, na cozinha, falando sem parar da crise do petróleo, da poluição atmosférica e da luminosa. Uma catástrofe por mês. Interroguei‐me se Novelli não seria também um marido assim. Se, ao fim e ao cabo, não seria também eu um marido assim.

E as nuvens?, perguntei‐lhe.

Novelli fez um esgar. As nuvens são complicadas. As altas retêm a humidade, contribuindo assim para sobreaquecer o planeta. As baixas refletem a luz solar, arrefecendo‐o. Fazem tanto bem como mal, é uma trapalhada, no fundo. Há quem ache que as alterações climáticas nos trarão um mundo sem nuvens. Céu limpo de dia e de noite, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Suponho que seria do agrado de alguns. Do meu, não.

Vi que reúne fotografias no seu sítio.

É uma competição para os estudantes. Fotografar a nuvem mais interessante. Mas também está aberta a outros. Pode participar, se quiser.

Eu não fotografo.

Como queira.

Não sei reconstituir o que mais dissemos um ao outro nessa noite, até porque ficámos juntos bastante tempo, inicial‐ mente na esplanada da cervejaria, sob o calor excessivo dos cogumelos a gás, depois na rua, rente ao Jardin des Plantes. Falámos com certeza da conferência das Nações Unidas, a respeito da qual Novelli nutria uma esperança morna, e falámos das saudades que ambos sentíamos de uma certa física desligada do mundo. E com certeza que, passado algum tempo, ele me terá perguntado se por acaso não estaria a entrevistá‐lo.

Julgo que não, não propriamente.

Pode entrevistar‐me se quiser, disse ele e eu tomei nota daquele momento de vaidade no meio de toda aquela con‐ versa sobre o fim do mundo.

A dada altura do passeio, ele perguntou‐me se tinha filhos. Devolvi‐lhe de imediato a pergunta: ele? Dois. O segundo viera um pouco distante da primeira, que já tinha sete anos. Comentei que talvez fosse uma contradição quando se via pela frente um futuro tal como o que ele via. Sem que o quisesse, eu endurecera um pouco. Novelli disse: Como é que se pode pensar em sobreviver a tudo, senão confiando nos filhos?

Quando chegámos à porta do seu prédio, a conversa extinguira‐se, limitáramo‐nos a andar e mais nada nos últimos dez minutos. Já não havia ninguém na rua. Com o silêncio, voltara a ter a sugestão dos atentados e pensei que evitaria o metro no regresso, mesmo que não fizesse grande sentido. Os atentados kamikazes pressupunham uma multidão, uma certa espetacularidade.

Mas então a que é que se dedica ao certo?, perguntou‐me Novelli, como se tivesse passado a noite inteira com essa dúvida a rondar‐lhe os pensamentos.

Sou escritor.

O Giulio disse‐me que trabalha para um jornal.

Trabalho para um jornal, mas sou escritor.

Por algum motivo, fiquei desagradado. Como se tivesse falhado o sentido da noite e Novelli me tivesse dispensado um tratamento típico, da síndrome de Kessler em diante, noções apelativas que proporia de igual modo a um aluno seu.

Atrapalhou‐se com as chaves, abriu a porta. Bem. Então boa sorte com o seu artigo. Tem o meu número se se lembrar de mais alguma coisa.