The Beatles: Get Back
Em 2020, quando se celebravam os 50 anos do lançamento de “Let It Be”, o último álbum dos The Beatles, um anúncio importante foi feito: Peter Jackson, realizador responsável pela saga “Senhor dos Anéis” no grande ecrã, ia pegar em 60 horas de filmagens da banda britânica (na altura em que estava a gravar este projeto) e reeditá-las enquanto documentário para a Disney Plus sob o nome “The Beatles: Get Back”.
Em 1968, os The Beatles não estavam a passar por uma boa fase. Depois de todo o sucesso, a química entre John Lennon e Paul McCartney já não era a melhor: passavam menos tempo em estúdio juntos, já não escreviam tanto em conjunto e, no mais recente “The White Album”, apenas metade das músicas tinham sido produzidas com os quatro membros da banda no mesmo espaço. Por um lado, tratava-se de algum cansaço por parte da banda, que tinha passado toda a década de 60 na estrada e a produzir alguns dos maiores hitsde sempre. Por outro, a banda encontrava-se perdida depois do seu manager Brian Epstein, que os tinha guiado na sua subida à ribalta, ter morrido precocemente aos 32 anos.
Por isso, decidiram testar algo diferente. Nos últimos anos, depois de uma série de incidentes, os The Beatles tinham deixado de dar concertos ao vivo e tinham-se tornado puramente uma banda de estúdio, focada em encontrar novas sonoridades. E ainda bem, porque essa mudança deu-nos projetos como "Sgt. Pepper Lonely Hearts Club Band". Mas, agora, a ideia era recuperar a magia de tocar ao vivo e em conjunto, como tinham feito durante tantos anos, quando tocavam nos palcos de Hamburgo à procura de aperfeiçoar a sua arte.
Como é que iam fazer isso? Com uma tarefa quase impossível só ao nível de uma banda que queria provar ao mundo e a si própria que ainda era capaz de funcionar: em apenas duas semanas (o prazo curto deveu-se ao facto de Ringo Starr estar em vias de começar a gravar um filme no qual ia ser protagonista), os The Beatles iam criar uma série de músicas originais, com letras e arranjos, e iam tocá-las todas de seguida num concerto ao vivo, que marcaria o seu regresso aos palcos e que seria tornado num especial de televisão. Adicionalmente, todo o processo de criação deste novo projeto ia ser transformado num documentário, que iria mostrar os bastidores do trabalho de Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr: os bons momentos da amizade que tinham desde a adolescência, as quezílias geradas por diferenças criativas, a magia que era ver a melhor banda do mundo criar algo do nada, os olhares das pessoas que os rodeavam e dependiam do seu sucesso.
Como uma mosca
As músicas foram criadas, a atuação ao vivo marcou o último concerto dado pelos The Beatles e o documentário “Let It Be” ficou para a História como o último registo dos The Beatles. No entanto, houve várias coisas que ficaram de fora e que “Get Back” recupera, não para criar uma nova narrativa, mas para dar mais nuances ao estado da banda britânica naquela altura. É uma espécie de cápsula do tempo, que nos leva diretamente para perto da banda e que nos aproxima imediatamente do seu talento, dos seus problemas e da personalidade de cada um dos seus membros. E para isso muito contribuiu a tecnologia de Peter Jackson, que transformou imagens dos anos 60 em algo que, se não soubéssemos de que época é, admitiríamos que poderia ter sido gravado este ano.
Vemos Paul McCartney como o líder, que muitas vezes tenta impor a sua vontade ou vê a sua iniciativa ser interpretada como uma limitação à criatividade dos seus amigos. John Lennon como o génio extrovertido, que parece muitas vezes desligado da banda e mais preocupado com a sua namorada Yuki Ono (literalmente, sempre colada a si). George Harrison como alguém a tentar ganhar mais protagonismo no grupo e progressivamente descontente com o rumo da banda e por ver as suas opiniões menosprezadas. Ringo Starr como o membro mais descontraído dos The Beatles, à procura de fazer da sua bateria a cola entre as propostas musicais que os seus colegas vão desenvolvendo, sem levantar grandes problemas.
“Get Back” permite-nos ser uma mosca e observar todas as dinâmicas que tornavam a banda britânica tão boa, mas que inevitavelmente levariam ao seu fim. Ao longo das quase oito horas de documentário, distribuídas por três partes (a.k.a episódios), há momentos deliciosos para o comum fã de música; sejam os diálogos entre McCartney e Lennon e os primeiros acordes de canções que crescemos a conhecer, sejam os ensaios com músicas de bandas e artistas que faziam parte da sua Era e os momentos cómicos que partilhavam entre si quando faziam um intervalo.
Faz tudo parte da experiência
É verdade que, em muitos momentos, “Get Back” parece estar a arrastar-se. Os momentos em que os quatro estão um pouco na maionese ou a tocar pela décima vez a “Let It Be” ou a “Don’t Let Me Down” podem parecer repetitivos ou pouco interessantes, mas esse é o processo de gravação e é parte da experiência da banda que o documentário quer mostrar, para o mal e para o bem. São também esses eventos que ajudam a melhorar um pouco a imagem tóxica associada ao fim da banda. Sim, provavelmente, durante a gravação deste álbum eles já sabiam que o fim estava próximo. Sim, provavelmente, McCartney era demasiado autoritário e Lennon já tinha o pensamento numa carreira a solo. Mas, no final do dia, a imagem passa é que aquilo eram só quatro pessoas que se preocupavam umas com as outras, cuja relação artística simplesmente já não tinha pernas para andar.
Contudo, o que mais gostei de observar foi as inseguranças e incertezas que aquilo que viria a ser o álbum “Let It Be” gerou nos The Beatles. Se uma banda que já tinha conquistado tudo o que havia para conquistar (em tão pouco tempo) tinha tantas dúvidas sobre o rumo que deveria tomar, talvez isso possa servir de lição para nós quando stressamos com decisões do nosso dia-a-dia. Basta parar um pouco para respirar e pensar “Nem os The Beatles sabiam bem o que estavam a fazer e vê onde chegaram”.
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