“Emídio Santana era antes de mais um homem bom, bem formado, de caráter, amigo de seus amigos, que traduzia na prática essas qualidades em solidariedade fraterna com os outros. Um genuíno, convicto e praticante anarquista. Até ao fim da sua vida manteve-se firmemente fiel aos seus ideais e convicções. Qualidades que são cada vez mais raras, mas que Emídio Santana claramente tinha”, escreveu João Soares.

O editor e antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa considerou que a obra “repõe também, de alguma maneira, o papel na história dos anarcossindicalistas portugueses, a mais importante corrente da esquerda portuguesa e do nosso movimento operário e revolucionário durante a Primeira República, e depois no combate contra a ditadura” nas décadas de 1930 e 1940, mais tarde “ofuscada” pelo trabalho do Partido Comunista Português.

“Um exemplo para mim bem claro: [o secretário-geral do PCP, que morreu no Tarrafal] Bento Gonçalves é, a muito justo título, sempre lembrado, mas Mário Castelhano, secretário-geral da CGT e director de A Batalha, é infelizmente muito esquecido. Emídio Santana, a sua vida e a sua obra repuseram algum justo equilíbrio nessa memória. Tão importante para a compreensão da história do nosso século passado”, acrescentou Soares, num texto datado do final de 2022.

Emídio Santana nasceu em 1906, em Lisboa, e “foi o mais conhecido e importante militante anarcossindicalista da geração que ainda conheceu o período da República”, como se pode ler na sua entrada biográfica no Arquivo Histórico-Social.

Dirigente sindical, foi autor do plano do atentado falhado contra o ditador António de Oliveira Salazar em 1937, na sequência do qual veio a ser preso durante 16 anos e que relatou no livro “História de um Atentado”, lançado em 1976. Santana morreu em 1988.

No seu próprio prefácio às memórias, Emídio Santana escreveu que “as gerações presentes sabem que houve um passado, que certamente teve vida e movimento, mas não é conhecido na sua verdadeira identidade porque ainda continua envolto na densa bruma de um período de obscuridades e desfigurações que eram indispensáveis a um modelo político, hoje com outras adaptações”.

“Está muito incompleta a história deste século, pela densidade dos seus acontecimentos e, em especial, a do movimento operário e sindical. Não é minha intenção empreender esse trabalho mas apenas fazer o meu depoimento sobre o que assisti, do que vi e vivi ou dos acontecimentos em que participei”, escreveu o homem que foi também diretor do jornal A Batalha.

No livro, conta a sua vida desde a infância até para lá da prisão pelo atentado falhado: “Julgados por homicídio com todas as agravantes fomos condenados a penas e prisão maior penitenciária e degredo. Daqui para a frente seria o penoso percurso do cumprimento da sentença ou, como julgávamos, o sepulcro do Tarrafal. O ministério da justiça, que rivalizava com o ministério do interior na querela de quem descobrira o atentado, a [polícia política] PVDE ou a Judiciária, acaba por prevalecer para nos levar à sua jurisdição penal condenados pelo tribunal militar. Foi assim que não fomos levados para o Tarrafal, mas destinados à noite penitenciária. A sentença destinava-me 8 anos de prisão maior celular seguidos de 12 de degredo”, pode ler-se no livro.

Saído da prisão, em 1953, e a retomar atividade profissional, é chamado pela agora designada PIDE “para atualizar a ficha”: “Tiraram-me novas fotografias e tomaram notas de morada e emprego. Foi o Rosa Casaco [que veio a liderar o grupo que matou o general Humberto Delgado], já inspetor, e que conhecera ainda praticante de polícia quando fui preso, que me interrogou, perguntando-me ‘se já tinha juízo’, ao que lhe retorqui ‘que nunca me vira bater com a cabeça pelas paredes’. Riu-se e emendou: ‘não vais agora conspirar’?”

A versão de 1987 termina, no epílogo, com a seguinte frase: “Para além da Rutura só a Utopia pode sugerir um mundo humano e harmónico.”

Emídio Santana foi ainda alvo de um documentário, em 2019, realizado por Edgar Feldman, com produção de Paulo Guerra e textos e entrevistas do jornalista Pedro Caldeira Rodrigues.