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É como se dentro de casa estivesse um animal. Não um animal pré-histórico e desastrado, nem um animal encurralado, embora tivesse alguma coisa de tudo isso. É um homem encolerizado não se sabe bem porquê. Pelo menos ela pensa que nada do que lhes aconteceu na vida pode justificar essa cólera. Nada que ela tenha feito ou dito ou sequer sentido pode justificar essa energia que vem de montes longínquos ou das profundezas da Terra. Dos mesmos montes e da mesma cova chegam às vezes as palavras ou a ternura. A dada altura da manhã, o ar enviesou-se. Qual foi o momento exato, que milímetro do lençol, que passo inoportuno em direção à cozinha, que gesto? Agora já não consegue pensar em nada, no meio da batalha, o oxigénio dificilmente chega ao cérebro.
Os gritos são como lanças que atravessam a casa. Alguma coisa muito importante deve estar a acontecer na cabeça do homem, uma explosão devastadora que lhe desfigurou o rosto. O que a mulher vê são uns olhos que, de qualquer modo, já viu antes, semicerrados pela ira, cortantes, que olham para ela às vezes, porque nem sempre querem fazê-lo, com uma dureza sobrenatural. Ela tentou falar, mas o discurso diluiu-se na sombra. Agora tem também de gritar, grita para gritar não me grites, grita para gritar que estás a fazer, grita que diacho se passa contigo 12 e não fales assim comigo, grita para entender ou para se fazer entender, mas a garganta falha-lhe, é um choro rouco que lhe sai ao abrir a boca; teria de ser mais sólida, mais alta, mais robusta. Teria de ser minúscula, um inseto venenoso, alguma coisa que pudesse cravar-se nesse globo que não pára de crescer e fazê-lo explodir. Mas não pode. Vai de um extremo ao outro da casa, cada vez mais nervosa, e não sabe se é indignação ou medo ou ambas as coisas, só abana a cabeça de um lado para o outro, isto não pode estar a acontecer-me a mim, e não se atreve a gritar, vai-te embora, nunca mais voltes, aferra-se às palavras e ao bom senso com a sua voz rouca e o seu choro, como se isso lhe servisse de alguma coisa. A litania do homem vai crescendo e nela não há nada que consiga aplacá-lo. Está a culpá-la, está a uivar um desespero indómito, e ela meteu-se no quarto da filha, que está em casa do pai, e começa aí a vestir-se e vê-se a si própria como que fora do mundo, a representar um papel que não lhe pertence. Então, ele entra também nesse quarto, não para olhar para ela, nem para a vencer, quer alcançar uma mala que está na parte de cima do armário e empurra-a para chegar ao lugar concreto, talvez por ela se ter interposto no seu caminho, que fazes, que estás a fazer, vou-me embora daqui, grita ele, isto é insuportável, no fundo não são palavras o que o homem articula, é só uma atitude, um desprezo. Ela sabe que é tudo uma ficção. Que há uma vela avariada ali dentro, algo aprendido numa gruta e que permite encenar a agonia, o desvario, porque só interessa a cascata, não o conteúdo: que significado, que parte se salva depois de tudo isto? Que aconteceu para estar ali, agora, o que voltou a quebrar-se? Deixar-se ir, contra tudo. Ao baixar a mala das alturas, há um encontrão contra os braços fortes do homem, uma pancada absurda, e ela olha-o apavorada, como se vê nos seus olhos esta consternação, que cor tem? Que fez ela para que tudo isto ocorra, que quer dizer-lhe, para onde pretende atirá-la? Não consegue perceber nada, porque nada disto está a acontecer-lhe a ela, não é o seu filme. Apesar de tudo, é ele quem se indigna, porque ela se afastou, pôs as mãos na cara, deu um salto, e o simples reflexo de fuga provoca nele outro ataque, será que ela está a insinuar que ele pretendia magoá-la? Como se atreve? Será que está louca? Estás louca, porra, não aguento mais.
Louca, deve estar louca, mas o animal não vai chamar-lhe louca. O dinossauro desastrado não vai chamar-lhe louca, o cão ferido, a fera sem a sua jaula, ela não está louca neste momento, está surda, muda, está cega, não está louca. O homem arrasta a mala até ao quarto e, como uma marioneta robusta, começa a apanhar roupa do chão e abre gavetas e ela ainda cega e surda e muda por um impulso racional vai atrás dele e diz-lhe que já chega, que estás a fazer, que diacho te fiz eu, pára de uma vez, e ele com toda a sua bravura da gruta responde-lhe como o que fizeste? Deixa-me em paz de uma vez, merda, e essas palavras parecem ter algum sentido, embora ela não consiga ouvi-las muito bem porque ele e as suas costas grandes e o seu pescoço de leão e a cor brilhante da sua pele se debruçam pela janela num espasmo e ela tenta agarrá-lo, as janelas abertas, os vizinhos, estará ela a pensar nos vizinhos do silencioso pátio interior, receia que se atire para o vazio? Não é possível, não há vizinhos nem há queda, porque aquilo é a cascata absurda desta representação e os gritos e ela sabe, sente, que é tudo uma enorme mentira, um efeito sonoro, uma armadilha mortal, um método ridículo e intolerável que ensinaram ao homem há muito tempo para vencer uma batalha absurda, uma batalha sem início, sem razão, sem detonador, uma batalha sem final e sem vitória, não se pode ganhar o que já se possui, não se pode ganhar o que nunca se poderá ter, é a música oca do delírio, o troar vazio do poder, o teatro sórdido, sem corpo, sem palavra, sem luzes. A guerra para nada. Só para a ferida. Que ridícula é a ira quando não há nada verdadeiro para atirar ao outro. Agitação, braços, ferradura. Seria necessário uma injeção de escopolamina, um remédio milagroso, voltar aos inícios, que ele fosse capaz de olhar para ela, de a ver através da hostilidade, seria necessário a carícia de uma criança, que o Universo estivesse escorado por agulhas.
Tem de se ir embora dali, agora mesmo. Sai do quarto, percorre o corredor, atravessa a sala, faz tudo isto com a sua nova pele de fantasma. O coração deve estar em algum lugar dentro do tórax, grita-lhe também, em fanicos. Pega na carteira, sai de casa e claro que bate com a porta. No elevador está a tremer. A sua cara enrugada no espelho, vermelha de tanto a apertar, os olhos ameixas já caídas, o elevador desce até à entrada, ela vê uma sombra através do vidro da porta metálica e quando a abre, ou abriram-na de fora?, está ali a polícia. É um agente calvo e sério, um polícia com o seu uniforme e a sua autoridade que olha para ela e a interroga. Está aqui por ela. Isto está a acontecer e, mais do que vergonha, percorre-a um calafrio. Os vizinhos telefonaram. E interroga-a. E pede-lhe que lhe mostre os documentos, ela fá-lo, e ele toma nota. E interroga. E ela diz uma coisa assim como nervos, torrente de voz, não me fez mal. Tem de dizer isto porque que pode saber o polícia sobre o seu coração em fanicos e as suas entranhas e a irrealidade e a surdez e a cegueira e a mudez? Não me fez mal. Essa é a verdade. É isso que o polícia está justamente a perguntar, nenhuma outra coisa. Está lá em cima, em casa? Sim. Temos de subir. Eu posso ir-me embora? Sim, pode ir-se embora. Ao passar a entrada, ao descer com dignidade os quatro degraus de mármore, cruza-se com outro agente, este mais alto, mais novo, que também não tem cara para ela. Metem-se ambos no elevador. Ela dirige-se para a praça.
É uma das praças mais bonitas de Madrid. Uma praça inclinada, protegida atrás da parede de pedra cinzenta de uma igreja, com terra e árvores esbeltas e altas. As esplanadas estão quase vazias e ela sobe e sobe e deixa a praça para trás e contorna a rua da igreja e fica parada numa esquina, entre a pedra e os bares e as pombas. Não sabe a quem telefonar. Não pode telefonar a ninguém. Não consegue explicar. Agarra no telefone com as mãos como se agarrasse numa corda que a mantém presa a algum lugar. Está calor, são duas da tarde, início de julho. Não há bulício, só alguns turistas a ocupar as cadeiras onde a sombra bate. Já não pode chorar. Está no meio da rua, no centro da sua cidade, e não quer mover-se. Aonde poderia ir? A sua casa fica lá em baixo, e dá uns passos e espreita. Os dois agentes, que já devem ter feito o seu trabalho, estão diante da entrada do prédio, no outro lado, perto da porta dos jardins. Esperam. Ela não sabe nada acerca de protocolos policiais nem de selvas. Recebe uma mensagem: Oliva, onde estás? Apareceu a polícia e queriam deter-me.
No mercado de La Cebada restam poucos bistrôs abertos. Só há movimento ao fim de semana, quando algumas peixarias vendem bandejas de marisco já cozido, latas de cerveja e garrafas de sidra, e o bar que fica diante do talho grande faz hambúrgueres e espetadas e as pessoas vão ali almoçar e beber. Durante a semana, é um mercado a meio-gás. Tanto no andar de cima como no de baixo há corredores inteiros com os cadeados fechados. Agora é um mercado grande demais e no inverno é frio, mas no verão é um bom refúgio.
Oliva pára diante da charcutaria situada assim que se desce as escadas, na primeira esquina. O senhor é simpático, faz sempre conversa, agradece-lhe, com os olhos, que compre ali. Não é a sua loja preferida, é uma charcutaria pela qual o tempo não passou: a mortadela conserva o rosa-fúcsia que tinha na sua infância, o salame brilha, fosforescente, os salsichões suam, comprimidos, junto da sobrasada e dos presuntos apagados. Oliva devia evitar comer tudo isso. Mas o homem vende um queijo curado belíssimo e, cada vez que ela lho pede, ele conta-lhe de onde vem, quem o traz, quanto tempo tem de cura no secador e por que razão é mais caro do que o normal. Oliva ouve-o e sorri e diz-lhe põe-me mais um pedacinho, e o homem limpa a faca com esmero e embrulha o pedaço de queijo num papel branco e escorregadio do princípio do século passado. E depois queixa-se. Queixa-se de que às segundas-feiras há muitos espaços que não abrem e que isso é mau. Os clientes não podem chegar numa segunda-feira ao mercado e deparar com as duas lojas de frangos fechadas ou só com uma peixaria aberta no rés do chão. Não se põem de acordo, diz o homem, e temos de nos pôr de acordo. Isto está a morrer e entre todos temos de o manter. Se o Daniel fechar, por exemplo, eu não posso fazê-lo, não se pode deixar as pessoas sem o seu chouriço. E depois há os fins de semana, com as festas. Não vivemos disso, vivemos das nossas lojas. Temos de coordenar as folgas, mas qual quê, aqui cada um trata de si. Um dia destes ficamos sem mercado. O dono da charcutaria tem uma barriga grande e redonda debaixo do avental, uma calva que brilha sob as lâmpadas pálidas do seu pequeno habitáculo e umas pálpebras cerosas que só cobrem metade dos tristes globos oculares. Quando Oliva chegou ao bairro, passava sempre ao largo daquela loja, porque o salsicheiro, visto de longe, lhe parecia um homem desagradável. No entanto, agora provoca-lhe ternura. Imagina-o solteiro; cada vez que ele explana a situação, o suave protesto de sindicato, não consegue evitar imaginá-lo a chegar a casa, um pequeno apartamento no bairro, de tetos altos, com as cortinas que a própria mãe pendurou quando vivia, naturezas-mortas sombrias nas paredes e cheiro a refogado e o aquecimento central, não consegue imaginá-lo de outra forma senão sentado, só, numa poltrona de orelhas diante da televisão, a jantar pão com queijo curado e um ovo estrelado com uns rábanos picantes a flutuar numa tacinha branca que nem sequer é de porcelana, mas dessas que vinham com os iogurtes em 1983. Gostaria de estar enganada. Oliva diz-lhe: se o mercado fecha, dá-me um ataque. Já não gosto de comprar nas grandes superfícies. Nem nos supermercados expresso, que agora decoraram de verde para que as pessoas pensem que comem de forma saudável. Quando diz isto, observa as azeitonas afogadas na mortadela cor-de-rosa da vitrina da charcutaria e sabe que é impossível comer saudavelmente. Que mais te sirvo. Ela não quer mais nada, mas pede: um pouco de queijo fresco de cabra, mas não ponhas muito, porque em casa mais ninguém come, é só para mim. E ele agarra no queijo com cuidado e pergunta, assim?, mais um pouco, responde ela, depois ele pesa e embrulha e guarda e já está, hoje não preciso de mais nada e quanto te devo, são quatro e oitenta, não tenho dinheiro comigo, acontece-me sempre o mesmo, aqui não posso pagar com cartão, pois não?, não, mas não te preocupes, pagas-me noutro dia, não, não, pago-te já, saio e levanto, mas não, não te preocupes, dás-me amanhã, quando voltares ou quando te lembrares. Oliva não pode abraçar o homem, acariciar-lhe a calva, dar-lhe umas palmadas no ombro, mas tenta sorrir-lhe com energia e agradece-lhe movendo a cabeça. São estas as coisas pelas quais vale a pena cá vir. Despede-se do charcuteiro e dirige-se para o corredor central à procura da filha.
Irena não aparece logo, mas ela não se alarma. Ainda tem de ir ao talho e de comprar frutas e hortaliças e a miúda não se vai perder no mercado. Irena queixa-se sempre quando Oliva lhe pede que a acompanhe, mas depois entra a correr, escorrega pelas rampas de cimento junto das escadas para os carrinhos de compras e desaparece por entre os corredores. Às vezes encontra-se com a filha dos donos da loja de vinhos, que tem a mesma idade, e brincam juntas às escondidas pelas múltiplas aberturas do edifício. Outras vezes, a maior parte delas, Oliva encontra-a na esquina da entrada traseira, onde há uma montra enorme com uma exposição de bonecos Playmobil, cenas de guerra com os seus abundantes exércitos de terra e mar, aldeias da Idade Média, desportos aquáticos ou herdades inacreditáveis a que não falta nenhum pormenor. É muito mais do que um presépio sofisticado. É uma maqueta de como devia ser o mundo, ordenado, silencioso, com cada elemento a uma distância prudente do outro. Enquanto a atendem no talho, vê-a finalmente aparecer. Irena vem a correr do fundo do corredor e choca com a mãe, abraçando-a com um empurrão. Tem o cabelo acobreado despenteado, os ganchos que Oliva lhe pôs de manhã de cada lado da cabeça pendem agora do cabelo, sem finalidade. Mamã, vamos ver a exposição agora? Não a viste já? Sim, mas quero vê-la outra vez contigo, porque te quero mostrar uma coisa. Oliva sabe que quando acabar as compras estará demasiado carregada, não trouxe o carrinho, mal feito, talvez tenha pensado que mais tarde ele poderia ajudá-la, mas não, olhou para o telemóvel várias vezes e não há mensagens, de modo que irá carregada demais, com as mãos e os ombros a doer e com pressa de voltar, mas diz-lhe que sim, que claro, que já vão, embora quando segurar nos sacos com as beringelas e a meia melancia e os pêssegos e as cebolas e as batatas e os abacates, depois de carregada de bananas e de maçãs e talvez de uma dúzia de ovos ecológicos e do pão torrado que se vende na loja do azeite, vá começar a ficar nervosa e também muito triste, embora lute para combater essa tristeza, porque que mal tem, é uma manhã de fim de agosto e ela vai sozinha ao mercado com a filha porque mais ninguém tem de ir com ela, por alguma coisa está separada do pai de Irena, para fazer essas coisas sozinha com a filha, e tenta afastar essa pena de si mesma, mas não consegue totalmente porque vai muito carregada e porque foi generosa nas compras, tentando que depois do esforço o frigorífico de casa fique repleto e seja alegria, provisões para as manhãs, para as tardes e para as madrugadas, e doem-lhe as costas e terá contraturas depois se descer a ladeira carregada com tantos sacos, parando de vez em quando, de modo que em vez de afastar a tristeza transforma-a numa má vontade sem direção que casualmente cai em cheio sobre a menina de seis anos que a acompanha ao mercado, agora não pode ser, Irena, não vês como vou carregada?, temos de voltar para casa, mas, mamã, disseste-me que íamos ver os Playmobil, sim, mas tu já os viste, mas é que quero mostrar-te uma coisa, mamã, porque em cada um há um boneco que não devia lá estar e é preciso encontrá-lo e é muito divertido e, não pode ser, Irena, não insistas, viremos outro dia, não vês que estou carregada como uma mula?, será que não vês?, preciso de chegar a casa, já te disse que nos vamos embora. E vão. A menina obedece, aborrecida, mas de qualquer forma quando passarem pela loja dos chineses que fica em frente do mercado quererá parar na montra para ver os peluches e depois a programação do teatro da ruela que fica em frente da igreja, para ver se tem algum ilusionista que ela ainda não viu e ao passar diante da papelaria da praça, que felizmente está fechada, perguntará à mãe se pode comprar-lhe alguma coisa, qualquer coisa, quando abrir, outro dia, e Oliva irá adiando, e adiando, negativa atrás de negativa, parando de vez em quando para descansar, pousando os sacos no chão para redistribuir o peso, e olhará ainda para o telemóvel para ver se há mensagens, mas não há, e por fim chegarão as duas à entrada do prédio 21 e ela tirará as chaves da carteira e abrirá a porta, e pousará a carga no elevador e olhará para as mãos e para o desenho cortante das asas de plástico nas palmas, e já estão em casa.
Irena entra a correr e atravessa a sala e o corredor e chega à cozinha porque tem muita sede e também porque Oliva lhe prometeu que pode comer uma porcaria de chocolate que guarda no frigorífico. A mãe sabe que ninguém se mexeu, que está tudo igual a quando saíram, por isso não tem nenhuma mensagem no telemóvel. A porta do seu quarto está fechada, como a deixou. Irena grita: O Max ainda está a dormir? Max, acorda, é hora de almoço, és um dorminhoco! Oliva entrou na cozinha, arrastando o peso dos sacos. Deixa-o, Irena, cala-te. Vai ver televisão. Vou fazer o almoço. Apoia-se na bancada, observa os vestígios do pequeno-almoço das duas, tudo o que deixou por levantar. Agora terá de limpar e de pôr cada coisa nova no lugar. São quase duas da tarde. Despir-se-ia, se pudesse, e entraria no quarto fechado, para descansar, para mergulhar na cama grande junto do corpo quente que jaz simplesmente, a dormir um sono escuro e alheado.
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