É normal que um artista nos leve a fazer coisas loucas, anormais. A conexão que temos com a sua arte, e o seu impacto direto – como num concerto –, podem provocar reações mais extemporâneas. Gritamos, pulamos, sofremos, cantamos, somos corpos em movimento e por vezes menos dados à lei da gravidade. Inventámos o mosh, o crowdsurf, zonas autónomas temporárias, porque a música se sente; cruzar os braços ou permanecer quieto, de forma macambúzia, é praticamente anátema num concerto pop/rock. É compreensível que uma pessoa se dedique a algo mais físico enquanto está num espetáculo, rodeada de fãs que pensam como ela.

O que não é compreensível é que alguém seja capaz de arruinar aquilo que poderia, ou deveria, ser uma experiência coletiva fotografando constantemente, com flash, um artista mais dado ao negrume – como o é o caso de Tricky, que tem alguma reputação no que toca a interromper concertos por causa de fãs mais afoitos, que querem levar para casa recordações dos seus concertos em formato .jpeg. Também não é compreensível que em canções mais calmas, propícias à introspeção, haja quem assobie de cinco em cinco segundos, por um motivo oculto à restante audiência. E tampouco se compreende quem berra sem cessar um único verso, durante sete minutos intensos de rock n' roll, que pediam outra coisa que não um desafinado. Tudo isto se passou no Lisboa Ao Vivo, nas filas da frente, e arruinou o que poderia ter sido um concerto memorável, por outro motivo.



Esse motivo é Tricky, rapaz dos subúrbios, agora adulto, que trouxe consigo "ununiform", o seu novo álbum, em novo encontro com os fãs portugueses. Foi o seu 13º concerto por cá, e o 14º realiza-se já esta quarta-feira, no Hard Club, no Porto. Intenso, como o rock n' roll supracitado; a tensão presente na sua música é palpável, uma tensão que parte não de um jovem rapaz negro enraivecido, mas de algo muito mais forte – até porque ele sempre rejeitou esse mesmo estereótipo, vestindo-se por exemplo de mulher em fotos e vídeos de promoção a "Maxinquaye", o seu álbum de estreia. É uma tensão política (não o podia ser de outra forma), uma tensão teológica (porque aquela música, aquele ritmo, pode por vezes soar a Deus), uma tensão sexual (tendo em conta os seus movimentos em palco, a forma como vai quase despindo a manga cava, o saracotear da anca).

É tensão, suor, sangue e lágrimas. E é uma música que rejeita rótulos, ainda que esta noite, acompanhado por baterista e guitarrista e por Martha, cantora que fez as partes mais femininas das suas canções, Tricky tenha mostrado uma faceta muito mais rock, em especial daquele que se escutou nos anos 90 e que inspirou gerações subsequentes (a sua versão para "Doll Parts", das Hole, é disto exemplo). Mas, mais do que de electricidade, este som é feito de partes diversas: soul, funk, hip-hop, electrónica, dub. Uma história completa, ou um caldeirão, de toda a música negra do século XX. Em ambos os sentidos: nos seus versos, assim como em palco, há sempre uma luz que falta.

Durante cerca de hora e meia, Tricky foi dando as ordens necessárias aos seus comparsas. Apontava, e o ritmo ia crescendo; apontava uma vez mais, e um riff soava algures no espaço; voltava a apontar, e a bateria parava, e conseguíamos perceber a sua voz por entre a névoa de ruído, tímida mas tóxica, suave mas aguerrida, pacífica mas combativa. O paradoxo faz parte, e sempre fez, de Tricky. Num minuto ouvimos Martha debitar versos da ansiosa "Overcome", no outro o rock dançável de "Dark Days", que se estendeu por tanto tempo quanto ele quis. No final, a imagem principal que fica, para além dos seus 'muito obrigados', é a de Tricky segurando um isqueiro, imóvel em palco, para que lhe pudéssemos perceber um rosto calcificado por anos e anos de experiência. Experiência essa que leva a que nos repitamos: só há um como ele.