“O rock nasceu em Almada”. Foi com este mote provocatório, ao seu estilo, que os UHF arrancaram as celebrações dos 45 anos de carreira no dia 18 de novembro com um concerto na Incrível Almadense e a bilheteira esgotada numa hora, dias depois de terem editado o novo álbum “Novas Canções de Bem Dizer”.
Em 1978, a banda de Almada, que hoje tem apenas António Manuel Ribeiro como único elemento da formação inicial, tinha dado nesse mesmo dia o seu primeiro concerto em Lisboa, na discoteca Brown’s.
Esta é a data oficial de aniversário. Para celebrar os 45 anos encerram o ano com um concerto na Casa da Música, no Porto, no sábado.
Em entrevista à agência Lusa, António Manuel Ribeiro conta um pouco da história da banda, de como começaram a juntar-se no café Central em Almada ainda com o nome “À Flor da Pele” que acabou por ser abandonado porque alguém disse que “era psicadélico e já não se usava”, mas mesmo assim permaneceu na sua história, tornando-se o título do primeiro álbum do grupo.
“O que trouxemos à música pop rock pós-25 de Abril foi a capacidade de construir uma carreira sem saber que estávamos a construir uma carreira”, disse o músico, confidenciando que nunca pensou que chegaria aos 45 dias quanto mais aos 45 anos de carreira.
Almada começa a fervilhar em termos musicais por essa altura, recorda. Os jovens encontravam-se no café Central, após as aulas, e foi assim que alguns músicos se foram conhecendo.
A banda formou-se desta forma espontânea e um dia foram tocar a Lisboa, ficando conhecida pela banda misteriosa porque tocava e desaparecia.
“Para nós era pragmatismo puro. Ninguém tinha carro, íamos de transportes, tínhamos de sair cedo porque se não chegássemos a horas ao barco em Lisboa, ficávamos a dormir ao relento. Saíamos porque tínhamos de apanhar o metro e o barco para este lado do rio”, explica, sorrindo.
“Cavalos de Corrida” é o primeiro ‘single’ e a segunda gravação da banda, um tema que nasceu numa capela abandonada na Torre da Marinha, no Seixal, onde ensaiavam, e que atingiu nos primeiros meses de 1980 a liderança do top nacional de vendas, tornando-se no primeiro ‘single’ de rock português a receber um disco de prata.
Depois deste sucesso inicia-se um processo conturbado na relação com editoras. Hoje a banda tem uma discográfica própria.
“Em 82, quando decidimos sair da Valentim, rompemos contrato, fomos transferidos de uma editora para outra através de pagamento de ‘luvas’ e entrámos numa editora que não existe neste momento e ainda bem. Vendíamos bem, mas nunca soubemos o que vendemos. Mais tarde saímos e entrámos [noutra] editora portuguesa, onde voltámos a ser enganados”, disse.
O que aconteceu com os UHF, afirmou, também aconteceu com outros músicos.
“Em 89 lançámos um maxi single ‘Hesitar’ que foi considerado o que mais vendeu em Portugal. Sabe quanto nos pagaram? Não chegou aos 1.700 exemplares. O estranho é que chegava a Bragança e as pessoas conheciam a canção e não seria só um fenómeno de rádio, era também de vendas”.
Face a estes contratempos, diz António Manuel Ribeiro, o que manteve os UHF foi a determinação de saber exatamente para onde ia e o que queria, caso contrário teria acabado como muitos grupos que desapareceram ao longo dos tempos.
“Há uma coisa que costumo dizer aos músicos novos: Em Portugal para se ser artista é preciso 50 por cento de inspiração e 50 por cento de organização. Se não houver essa capacidade de organizar isto desmorona”, revelou.
António Manuel Ribeiro é perentório em afirmar que se os UHF têm hoje fãs, um grupo consistente que os segue de norte a sul do país, é porque escreveram e escrevem boas e interessantes canções: “Sem canções e sem as pessoas que gostam das canções não havia hipótese”.
E as canções dos UHF contam histórias, assumem uma posição em relação a alguns temas da atualidade nacional e internacional como é o caso de “Sarajevo”, “Vernáculo”, “Ucrânia livre” e “O Indigente”, este último do novo álbum “Novas Canções de Bem Dizer”, tudo canções repletas de mensagens à maneira da música de intervenção inspirada em José Afonso e em tantos outros músicos da época.
“É a minha escola sabe, a do José Afonso. A censura portuguesa no tempo da nossa ditadura ajudou a criar a melhor poesia cantada do mundo”, defende a inconfundível voz da banda composta também por Antonio Côrte Real (guitarra), Ivan Cristiano (bateria e coros) e Nuno Correia (baixo).
Na opinião de António Manuel Ribeiro, a arte, nomeadamente a arte cantada pode ajudar à construção de uma sociedade mais equilibrada e mais harmoniosa.
A melhor poesia é aquela que inquieta e a canção, acrescenta, “faz esse filtro, faz pensar”.
“Um livro que seja bom é um livro que nos inquieta, que nos deixa a pensar. Se não for isso, então a arte é, como dizia o meu amigo João Grande dos Táxi, ‘mastiga e deita fora'”.
Tal como nas canções, também no que afirma dia-a-dia, e na entrevista à Lusa, António Manuel Ribeiro faz questão de deixar a sua marca interventiva, lembrando que nos tempos de hoje é necessário ter memória para que ninguém esqueça o que foi uma ditadura.
“Eu vivi em ditadura. Não, obrigado. Nem aquela nem a outra. Não quero nenhuma”, diz.
Celebrar uma carreira de 45 anos é celebrar todo este legado musical e poético de que António Manuel Ribeiro fala com orgulho.
“Acho que temos direito a celebrar com os nossos o que fizemos e trouxemos à música portuguesa”, vincou.
No que se refere ao novo disco, considera que só poderia ter sido feito nesta altura, enquanto escritor de canções, quer da parte poética quer da produção musical.
“Precisei de viver. Há dez anos não conseguia fazer este disco”, disse, lembrando o impacto que a pandemia teve nos artistas “deixando-os sem chão”, levando muitos a sair do mundo do espetáculo.
“A pandemia mudou-nos”, confessa, porque um artista vive do palco e os UHF sempre foram uma banda de muito palco e é nele que comunicam com o seu público há 45 anos, num constante “Bora lá” porque, tal como canta António Manuel Ribeiro neste tema, “se cheguei aqui, nunca estive só”.
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