No que toca a figuras eternas da literatura, se nós temos unanimemente Eça de Queiroz como o grande romancista português, o Brasil tem Machado de Assis. No entanto, dado o tamanho desse imenso país e a vida humana que nele fervilha, os brasileiros podem dar-se ao luxo de ter um rol significativo de figuras gigantes da sua literatura de tal ordem que algumas nem sequer têm as suas obras editadas deste lado do Atlântico. Tal é o caso de Júlia Lopes de Almeida.
A culpa é partilhada, atenção: escritora de relevo dos anos 20, a sua obra foi esquecida após a morte em 1934, condenada aos alfarrabistas e bibliófilos. No entanto, nos últimos anos a sua escrita tem merecido renovada atenção, o que valeu a reedição do mais importante livro, “A Falência”, por lá e agora também por cá, através do selo da Penguin Clássicos.
Publicado em 1901, este romance, tido por exemplo de excelência da escola realista, tem como personagens o português Francisco Teodoro, comerciante de café radicado no Rio de Janeiro, e Camila, a mulher com quem se casa. O que no início é uma relação frutuosa — da qual nascem três filhos — descamba em tragédia com infidelidades e o suicídio do patriarca. Atirados para uma situação social desfavorável, Camila e os filhos têm de se adaptar a uma nova realidade. Um dos primeiros exemplos de uma literatura feminista, preocupada com a condição feminina — e pela violência a que a mulher era (e é) sujeita —, a triste ironia é que Júlia Lopes de Almeida, não obstante o seu talento e verve intelectual, seria ela mesma, por ser mulher, barrada de entrar na Academia Brasileira de Letras que ajudou a idealizar.
Os tempos hoje, felizmente, são outros, não obstante haver muito que melhorar — mesmo que muitos considerem que já podemos baixar os braços. Chegámos a um estado de coisas onde, pelo menos, as mulheres já são possibilitadas de ter uma carreira literária de sucesso e reconhecida. No entanto, para Giovanna Madalosso, publicar a sua obra inaugural — o livro de contos “A Teta Racional”, foi difícil, por objeção das editoras perante uma obra focada nos aspetos menos glamourosos da maternidade e da amamentação. A escritora de Curitiba acabou por rir melhor, já que esse trabalho foi mesmo considerado para o prestigiado Prémio Literário Biblioteca Nacional, em 2017.
“Sou feminista, minha literatura, não”, disse em entrevista, considerando que isso “apequena” os seus livros dentro de rótulos. Um deles, “Tudo Pode Ser Roubado”, é editado entre nós pela Tinta da China. Localizada em São Paulo, a narrativa segue uma empregada de mesa de alcunha sugestiva que, por trás da aparência de trabalhadora humilde, se ocupa a marcar encontros casuais para roubar artigos luxuosos aos incautos caídos na sua teia de sedução. A parada sobe, porém, quando um homem propõe-lhe que roube uma primeira edição extremamente valiosa de “O Guarani” — clássico do séc. XIX de José de Alencar — a um professor universitário que leva uma vida de solidão.
Algumas histórias resultam de pôr personagens aparentemente banais perante situações extraordinárias. Outras são de imediato fadadas a viver vidas onde o comum é a exceção. Foi pela segunda perspetiva que Maggie Shipstead escreveu “O Grande Círculo”, editado em Portugal pela Porto Editora. Foram precisos sete anos para criar uma obra que se estende por 100. De um extremo, Marian Graves, sobrevivente de um naufrágio transatlântico em 1914, criada pelo tio na zona rural de Montana e inesperada piloto aérea que se aventura numa viagem de circum-navegação que abrange tanto o Pólo Sul como o Pólo Norte. Do outro, Hadley Baxter, atriz de Hollywood acossada por polémicas que vê na oportunidade de encarnar Graves num filme independente a possibilidade de relançar a carreira, em 2014.
Graves — que misteriosamente desapareceu durante a viagem — e a mulher que a vai interpretar dialogam assim a um século de distância, mesmo que sem palavras, e são os contornos sombrios da primeira e a dedicação a essa vida surpreendente da segunda o que faz levantar voo esta história. Shipstead — ela própria uma viajante nata que passou por alguns dos sítios que levou para o papel — viu este livro levá-la a ser considerada para o Prémio Booker de 2021 e concorre este ano para o não menos importante Women's Prize for Fiction.
No que toca a viagens, é sabido que esse é um fenómeno intrínseco ao ser humano — mas não apenas por lazer. Ao longo da história foram inúmeras as situações em que pessoas ou foram deslocadas forçosamente para um lugar que não o seu — seja por exílio, seja por escravidão — ou sentiram-se forçadas a isso mesmo, em busca de uma vida melhor. Em “Afropeu – A diáspora negra na Europa”, o escritor britânico Johny Pitts explora o que é ser um europeu de ascendência africana — ou seja, alguém que já nasceu num sítio fruto das viagens dos seus antepassados.
Nascido na Europa, europeu de gema, certo? Infelizmente, não. Apesar da fama de continente tolerante e recetivo que veio a cultivar, a diáspora negra não só continua invisível em muitos lugares, como é forçada a seguir regras sociais e económicas que punitivamente parecem ser aplicadas só a si. O também fotógrafo e personalidade televisiva viajou pelo Velho Continente para dar-lhes voz e mostrar como criou as suas próprias dinâmicas, desde a economia clandestina da Cova da Moura, em Portugal, até à Universidade Patrice Lumumba em Moscovo, onde os estudantes oeste-africanos continuam a aproveitar ao máximo as ligações com a URSS surgidas durante a Guerra Fria. Agraciado com múltiplos prémios — entre os quais, o Prémio Europeu de Ensaio 2021 — este livro chega a Portugal pela Temas e Debates, com direito a tradução de Bruno Vieira Amaral.
Por fim, se a esta lista pode parecer faltar uma certa dose de escapismo, há uma nova saga de fantasia que se arrisca a arrebatar os seus antecessores, até porque já era um sucesso ainda antes de o ser. Altamente requisitada em leilão, os direitos dos primeiros três livros da saga “Skandar Smith”, da escritora A.F. Steadman foram adquiridos pela Simon & Schuster num valor que chegou aos sete dígitos. Além disso, não só os direitos para a adaptação ao cinema foram garantidos por valor similar pela Sony, como o primeiro livro já foi traduzido para 48 línguas. Mas a que se deve este fenómeno?
Bebendo de inspirações como a saga “Harry Potter” ou “Percy Jackson”, assim como de figuras como Ursula K. Le Guin e Phillip Pullman, Steadman trocou o Direito que exercia pela fantasia, publicando “Skandar e o Roubo do Unicórnio”, editado por cá pela Nuvem de Letras. Mas há aqui um senão. Em vez de emanarem doces aromas a lavanda e possuírem olhares carinhosos, os unicórnios que integram esta história têm olhos vermelhos-sangue, tresandam a morte e têm a pele pútrida. São monstros, portanto, e com perigosos poderes elementais, apenas contrariando a sua natureza brutal se uma pessoa os treinar e se afeiçoar a eles mal saiam do ovo (sim, nascem de ovos), vivendo numa ilha isolados dos humanos. É aqui que entra Skandar, rapaz de 13 anos que desde cedo viveu fascinado por estas criaturas. Neste primeiro livro, o jovem acaba mesmo por ser levado para a dita ilha por uma força misteriosa, descobrindo que tem de combater uma força igualmente intrigante que rouba o unicórnio mais poderoso com o intuito de destruir o mundo. Um sucesso imediato, chegou às páginas do New York Times, e é de prever que continuemos a ouvir falar de unicórnios sem ser na Web Summit.
Outras sugestões:
- A autobiografia poética e filosófica "Outra Vida para Viver" (Quetzal), do grego Theodor Kallifatides;
- O romance pioneiro e feminista do século XVII "Desenganos Amorosos" (Sibila), da espanhola María de Zayas;
- A continuação das cómicas peripécias de Rufo Batalla em "A Repartição do Yin e do Yang" (Porto Editora), do espanhol Eduardo Mendoza;
- A edição em Portugal de "Falso Amanhecer" (Guerra e Paz), de Edith Wharton, escritora norte-americana do século XIX e autora do clássico "A Idade da Inocência";
- O multipremiado thriller "O Fim é o Princípio" (Bertrand), do britânico Chris Whitaker;
- A poesia de Mônica de Aquino e de outros autores do Brasil em "Linha, Labirinto" (Não Edições)
- O segundo volume da obra de Bernardo Santareno em "Teatro II - Obras Completas, Vol. II" (E-Primatur)
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