Passaram muitos anos, e esta manhã tenho um desejo repentino: queria as cinzas do meu pai.

Depois da cremação, mandaram-me um pequeno objeto que tinha resistido ao fogo. Um prego. Restituíram-no intacto. Perguntei-me, então, se o tinham realmente deixado no bolso do fato. Tem de arder com Johannes, disse aos funcionários do crematório. Não lho deviam ter tirado do bolso. Nas mãos estaria demasiado visível. Hoje, queria as cinzas dele. Será uma urna como tantas. O nome gravado numa chapa. Um pouco como as placas dos soldados. Como é que então não me ocorreu pedir as cinzas?

Naquela época, não pensava nos mortos. Eles vêm tarde ao nosso encontro. Chamam quando sentem que nos tornámos presas e é hora de ir à caça. Quando Johannes morreu, não pensei que tivesse morrido realmente. Participei nas exéquias. Nada mais. Depois da cerimónia fúnebre, fui-me logo embora. Era um dia azul, tudo tinha acabado. A menina Gerda tratou de todos os pormenores. Estou-lhe grata por isso. Marcou-me a ida ao cabeleireiro. Arranjou-me um tailleur preto. Modesto. Cumpriu escrupulosamente as vontades de Johannes.

Vi o meu pai pela última vez num lugar frio. Disse-lhe adeus. Ao meu lado estava a menina Gerda. Eu dependia dela em tudo. Não sabia o que se faz quando uma pessoa morre. Ela conhecia com precisão todas as formalidades. É eficiente, silenciosa, timidamente triste. Avança como um machado nos meandros do luto. Sabe escolher, não tem dúvidas. Foi muito diligente. Não pude sequer ficar um pouco triste. Ela apropriara-se da tristeza. Ter-lha-ia dado, em todo o caso, a tristeza. A mim nada me restava.

Maria Francisca Gama junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de outubro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu mais recente livro "A Cicatriz", editado pela Suma de Letras, chancela da Penguin Random House.

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"A Cicatriz" é o segundo livro de Maria Francisca Gama e vai já na 7.ª edição, com mais de 25 mil exemplares vendidos e um fenómeno nas redes sociais, em particular no TikTok.

Disse-lhe que queria ficar sozinha um momento. Só uns minutos. A câmara mortuária estava gelada. Durante aqueles poucos minutos, meti o prego no bolso do fato cinzento de Johannes. Não queria olhar para ele. Tenho o seu rosto na minha mente, nos meus olhos. Não preciso de olhar para ele. No entanto, fiz o contrário. Olhei bem para ele, para ver, e saber, se mostrava sinais de sofrimento. E foi um erro. Porque, ao olhá-lo tão atentamente, o seu rosto fugiu-me. Esqueci a sua fisionomia, o rosto verdadeiro, o de sempre.

A menina Gerda veio buscar-me. Tentei beijar Johannes na testa. Ela fez um gesto de aversão. Impediu-me. Foi um desejo tão repentino, esta manhã, o de querer as cinzas de Johannes. Agora, desvaneceu-se.

Conhecia pouco o meu pai. Durante umas férias da Páscoa, levou-me consigo num cruzeiro. O navio estava atracado em Veneza. Chamava-se Proleterka. Proletária. Durante anos, a ocasião dos nossos encontros foi um cortejo. Participávamos os dois. Desfilá-mos juntos nas ruas de uma cidade à beira do lago. Ele de tricórnio na cabeça. Eu com o traje regional, a Tracht, e uma coifa preta debruada de renda branca. Sapatos pretos de verniz com fivela de gorgorão. Avental de seda sobre o traje vermelho, uma cor por onde espreitava um violeta-escuro. E o corpete de seda adamascada. Numa praça, sobre uma pilha de madeira, queimavam um boneco. O Böögg. Homens a cavalo galopam em círculo à roda do fogo. Rufam os tambores. Erguem-se os estandartes. Diziam adeus ao inverno. A mim parecia-me estar a dizer adeus a uma coisa que nunca tinha tido. As chamas atraíam-me. Foi há muito tempo.

O meu pai, Johannes H., fazia parte de uma Corporação, uma Zunft, para a qual entrara quando era estudante. Tinha escrito um relatório intitulado O que fez e o que poderia ter feito a Corporação durante a guerra. A Corporação a que Johannes pertencia fora fundada em 1336.

Na noite anterior, era o baile das crianças. Uma grande sala a abarrotar de trajes regionais e risadas. Só esperava que tudo terminasse. Talvez Johannes também. Eu não gostava de bailes. E queria despir o traje. A primeira vez em que participei no cortejo (ainda não andava na escola), puseram-me numa liteira azul. Da janela, saudava as outras crianças que, do passeio, assistiam ao cortejo. Quando os carregadores me pousaram no chão, abri a portinhola e fui-me embora. Não tinha pensado fugir. Não era rebelião, mas puro instinto. Um desejo de desconhecido. Durante horas vagueei pela cidade. Até à extenuação. Foi a polícia que me encontrou. E entregaram-me ao meu legítimo proprietário, Johannes. Tive pena. Dadas as circunstâncias, a possibilidade de pai e filha se conhecerem mais aprofundadamente era bastante limitada. Observar e calar. Caminham os dois perto, no cortejo. Não trocam uma só palavra. O pai em dificuldade em caminhar ao ritmo das marchas. Duas sombras: uma move-se lentamente, com visível esforço; a outra, mais inquieta. Avançam em filas de quatro. Ao lado deles, um casal, o homem de uniforme militar, a mulher em traje regional. Mantêm o ritmo, andam majestosamente, dignos, orgulhosos, de cabeça erguida. De noite, por vezes, de pálpebras cerradas, vinha-me à cabeça o boneco a arder. O rufo dos tambores ainda mais marcial, com um som póstumo. Ao fim de dois dias, deixava Johannes num quarto de hotel. O prazo da minha visita expirara.

O Proleterka fora fretado por uns senhores que pertenciam à mesma Corporação de Johannes. Aqueles que, no mês de abril, desfilavam pela cidade. Seriam os nossos companheiros de viagem. Partimos, o meu pai e eu, de comboio para Veneza. A carruagem estava vazia. Daí em diante, eu estaria com Johannes, o meu pai. Ainda não tem setenta anos. Cabelo branco, liso, com risca ao meio. Olhos claros e gélidos, inaturais. Como uma fábula infantil do gelo. Olhos invernais. Entrevê-se um clarão de capricho romântico. Íris verdes e desbotadas, límpidas, a ponto de intimidarem. Quase não têm a consistência de um olhar. Como se houvesse uma anomalia de gerações. Johannes tinha um irmão gémeo, de olhos semelhantes. Os olhos do gémeo estavam muitas vezes escondidos pelas pálpebras. Passava horas num jardim. Numa cadeira de rodas. Conseguia dizer: «Es ist kalt», «faz frio». No seu tom uniam-se a consciência de uma imposição divina e a mera constatação terrena de que o frio é transitório. Assim era a sua doença. Naquele tempo, chamavam-lhe a doença do sono.

*

No compartimento, Johannes lê o jornal. Lê demoradamente. Talvez não saiba o que me dizer. Observo os dedos que seguram o jornal, e os sapatos. Procuro um assunto de conversa. Não o encontro. Penso na palavra Proleterka, o nome do navio jugoslavo. Há nomes de navios mais bonitos. Como o Indómito, onde enforcaram Billy Budd. Lembram-se da visita do capelão ao marinheiro preso para lhe insinuar a ideia da morte? As últimas palavras de Billy Budd foram: «Deus abençoe o capitão Vere!» Abençoa quem deu a ordem de execução. Abençoava o verdugo. Queria falar-vos de Billy Budd, em vez de contar esta história breve içada num mastro, que baloiça com o vento de proa à mercê do nada. Billy Budd, vejo a sua figura enquanto desfila a paisagem, enquanto desfilam as horas na companhia de Johannes. Não se sabia quem era o pai de Billy Budd, nem o lugar onde nasceu. Encontraram-no num bonito cesto forrado de seda. Conheço muito melhor Billy Budd do que o meu pai. «Chegámos», diz Johannes. Não temos bagagem. Estou no navio. O Proleterka.

Livro: "Viagem no Proleterka"

Autor: Fleur Jaeggy

Editora: Alfaguara

Data de Lançamento: 23 de setembro de 2024

Preço: € 14,95

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Pai e filha apanham o vaporetto até à praça de São Marcos. A filha olha sempre mais em frente, quer ver o navio. Veneza aparece e desaparece. Caminham pela Riva degli Schiavoni. A filha está impaciente. Johannes caminha lentamente. Tem um defeito no pé. Usa sapa- tos um pouco altos, até aos tornozelos.

Pensava que ele tinha nascido assim. E que sempre tinha tido dificuldade em caminhar. Mas, afinal, foi por causa de um carcinoma. Li-o num álbum, um daqueles que se costuma oferecer quando um bebé nasce, onde se registam os primeiros anos de vida, os primeiros meses, quase dia a dia. Aos dezoito meses, Johannes anota que a filha o foi visitar ao hospital. Se quer alguma informação sobre os seus primeiros anos de existência, ela só tem de folhear o álbum. É uma prova. É a confirmação de uma existência. Lacónico, Johannes apontava o que a filha fazia, aonde a levavam, o estado de saúde. Frases breves, sem comentários. Como respostas a um questionário. Não há ali impressões, sentimentos. A vida é simplificada, como se não existisse. Johannes anota: a filha nunca chorou. Não teve gestos de rebeldia, comporta- -se com correção. Uma infância correta. Tudo fica à superfície. Sobre ele, Johannes, duas anotações pessoais. Um enfarte ligeiro e o carcinoma. Quando a filha tem dois anos, anota Johannes, o avô (escreve o nome e o apelido do avô) morre. Na cremação, muitos amigos. A filha mostra-se gentil e descobre tudo. Johannes não escreve «percebe», mas «descobre». Portanto, o homem observa a filha. Aos dois anos, segundo Johannes, a filha descobre o que significa morrer. Deve ter sido verdadeiramente amável e bem-educada, aquela menina, por ocasião da morte do avô. Talvez Johannes já então pensasse na própria morte e desejasse que a menina fosse gentil com todos. Que fosse gentil com o mundo. Com a dor. Quando era ainda pequena, teve de separar-se de Johannes. As crianças desinteressam-se dos pais quando são abandonadas. Não são sentimentais. São passionais e frias. De certa forma, algumas abandonam os afetos, os sentimentos, como se fossem coisas. Com determinação, sem tristeza. Tornam-se alheias. Por vezes, hostis.

Já não são elas os seres abandonados, mas são elas que batem mentalmente em retirada. E vão-se embora. Em direção a um mundo sombrio, fantástico e miserável. E, no entanto, por vezes exibem felicidade. Como um exercício de funâmbulos. Os pais não são necessários. Pouco é necessário. Algumas crianças governam-se sozinhas. O coração, cristal incorruptível. Aprendem a fingir. E a ficção torna-se a parte mais ativa, mais real, atraente como os sonhos. Ocupa o lugar do que consideramos verdadeiro. Talvez seja apenas isto: algumas crianças têm a dádiva do desapego.

Pai e filha estão diante do navio. Parece um navio militar. A estrela vermelha brilha na chaminé. Vejo de imediato a inscrição Proleterka. Escurecida, com manchas de ferrugem, esquecida. Uma inscrição soberana. É a hora do ocaso. O navio é grande, esconde o Sol que está prestes a cair na água. É escuro, pez e mistério. Escapou às intempéries, aos naufrágios, um navio corsário construído como uma fortaleza. Subimos a escada. Os oficiais estão à nossa espera. Somos os últimos. Johannes sobe a custo, um oficial ajuda-o. Mostram-nos o camarote. Pequeno. Ali dormiria com Johannes. Duas camas, uma sobre a outra. Terei de dormir por cima. O Proleterka levanta ferro às dezoito. Suavemente, desliza sobre a água. Um som rouco precede a partida. Um som de adeus. Não se pode voltar atrás. Olho pela vigia. Pergunto-me como faria para sair, para entrar no mar, se quisesse ir-me embora como Martin Eden.

*

Mudo de roupa. Dentro de uma hora, na sala de refeições. No convés, os passageiros olham o pôr do sol. Não o podem perder. Johannes também olha o pôr do sol. Agora já não ilumina nada. É a escuridão, a viagem começa. Ao primeiro pôr do sol seguir-se-ão outros, durante catorze dias. Os da Corporação estão convencidos de que organizaram tudo da melhor forma possível. Até as condições meteorológicas. Um marinheiro convida os senhores a entrarem na sala de refeições. Um após outro, quase em silêncio, os passageiros em fila. O meu pai e eu somos novamente os últimos. Temos uma mesa ao canto. Johannes lê o menu, escolhe o vinho. Cumprimenta os amigos, eu faço-lhes um sorriso fechado. Calor húmido. Navegamos tranquilamente. O lustre de cristal balança ao de leve. Como um pêndulo quieto, movido pela inércia. Johannes está vestido de escuro. Impecável. Quase não nos dirigimos a palavra. As senhoras estão vestidas de seda, um ou outro decote sóbrio. Na sala, um balanço contínuo, lento, persistente. Um calmo ritmo maligno, como se as ondas do mar entoassem uma lengalenga antes de atordoarem os passageiros. O lustre oscila um pouco mais. Projeta as suas luzes sobre os passageiros e, em seguida, deixa-os na sombra, para regressar mais depressa. A sala sobe e desce. As flores sobre a mesa movem-se a intervalos regulares. Deslizam, e depois voltam ao sítio. Johannes, distraído, ausente, noutro lado. De sobremesa, charlotte. À sobremesa, a força do mar aumenta. Peço a Johannes autorização para me levantar. Lá fora, um vento raivoso. Sombras movem-se freneticamente. São os marinheiros. Respiro a sublime solidão noturna. As intempéries. E o perigo. Não penso em Johannes. Em dar-lhe o braço e ajudá-lo. Nada conta naquele momento.

Não consigo manter-me em pé. Ao fim de poucos minutos, um marinheiro agarra-me e empurra-me para a frente do camarote. A tripulação tinha ordenado a todos os passageiros que permanecessem nos camarotes. Puderam terminar a charlotte.

O Proleterka mudou de rota. Dirige-se para Zara. Um marinheiro, talvez o mesmo que me agarrou, ficou gravemente ferido durante a noite. Na manhã seguinte, estava numa maca. Acaricio o seu rosto, aperto-lhe a mão. Descem a maca para um barco-patrulha. Eu também queria deixar o navio. O comandante faz a saudação militar.

Os passageiros estão bem. Estamos na sala de refeições para o pequeno-almoço. Dois dias no mar antes de chegar à Grécia. Hoje, tudo tranquilo. Não vejo Johannes, é como se tivesse desaparecido. Como a tempestade. Alguns passageiros estão deitados nas chaises longues. Eu também. Não penso em nada. O nada é matéria de pensamento. Seres, vozes autónomas, memórias desenterradas, acompanham o marulhar da água. O nada não é vazio. Como das garras de um predador em voo, os pensamentos caem na nossa mente quando estamos convencidos de que não estamos a pensar. Aparece Johannes. Um sorriso bom e triste. Pergunta se estou bem, se estou zufrieden, «contente». Como se fosse a nossa obsessão, de pai e filha. A de não estarmos tristes, de escondermos a tristeza que nos marcou sem motivo. Para ele, aquela viagem é importante. Pensei, antes de partir, que o destino me era indiferente. A viagem à Grécia fazia parte da minha educação. É a nossa primeira viagem — e parece a última. Johannes, a pessoa que me é inverosimilmente desconhecida. O meu pai. Nenhuma intimidade. E, no entanto, um laço anterior às nossas existências. Um conhecimento no estranhamento total.

À hora do costume, estamos na sala de refeições. Desci ao camarote para mudar de roupa. Tenho pouca roupa, quase toda igual. Será que Johannes se despe, antes de ir para a cama? Nunca o vi em fato de banho. Nunca lhe vi as pernas. Passou uma noite, não me dei conta da sua presença. A abolição do corpo. É o segundo dia e tudo se repete. Johannes cumprimenta os amigos. Cumprimento-os também. Johannes introduziu-me em criança no círculo dos seus amigos. Eles criticaram a filha única do amigo. Por vezes, as crianças têm uma noção premonitória da condição social. Das aparências. Se são bem aceites ou não. Eu não era bem aceite, mas eles eram os amigos do meu pai. Johannes, num certo sentido, apesar de ser um solitário, fazia parte do mundo deles. A filha, não. O meu pai, Johannes, fazia parte dele por nascimento, por condição social. O amigo do meu pai e a família foram os meus juízes na infância.

E a casa deles. E as janelas. Os objetos. Os objetos, os juízes. A casa rica. Talvez eu não tivesse simpatia por aqueles ricos que nos convidavam, a mim e ao meu pai, para suas casas. Sabem que o meu pai foi rico como eles. Eu sabia que Johannes fora rico. Como eles. Agora já não. Eles são simples, acessíveis, o que constitui uma maneira de ser quando se tem tudo. É-se indulgente. De uma indulgência acrimoniosa. Era assim que eu pensava quando os observava em criança. Observar e ficar em silêncio. A filha de Johannes não era simples, nem indulgente, nem acessível. Não secundava a sua simplicidade de proprietários, a mansidão arrogante do grande amigo do pai. «Tens de a vigiar, com todos estes marinheiros.» O amigo do meu pai ergue os olhos dos óculos em meia-lua com aros dourados. Avalia a filha do seu amigo. Tem o cabelo branco, espesso, brilhante. Um ar de patrão pronto a escutar, não a conceder. O rosto é avermelhado. A mulher priva-se de tudo, incluindo de si mesma. Trincou o seu corpo, deixando-lhe os dentes compridos, ao mostrá-los. É magra, puritana e flageladora. Foi a primeira pessoa a observar a filha de Johannes com a lente do desprezo. É abissalmente atenciosa. O cabelo apanhado num novelo, um carrapito na nuca. Os olhos húmidos de caridade rapace. Sempre gentil. Quem nos condena é compreensivo. Como ela. Compreende os pecadores. Uma fúria selvagem contra os pecadores, contida, sem explosões e sem remissão. Compreensão altamente dolorosa. Está ultrajada pelos males da humanidade. E encarna o ultraje num vanglorioso comedimento. No tom de voz do mau agouro, do lamento e da aceitação. A Johannes, um homem tão sozinho e idoso, que demonstra alegria por ter uma filha, comunica-lhe que essa alegria é só uma ilusão. Essa alegria é perigosa, deve ser extirpada. A alegria deve transformar-se em sofrimento. Ela tem piedade de Johannes. A filha, enquanto estão em casa deles, diz: «Vamos embora.»

São também colecionadores, os senhores amigos do meu pai. Quando nos convidavam para jantar, a mulher sentava-se à cabeceira da mesa, perto da parede, debaixo de um quadro. Junta as mãos, as pálpebras baixadas, murmura. A filha de Johannes não reza. Não dou graças ao Senhor pelo alimento que ele e ela nos dão. Não te agradeço, digo mentalmente. Antes de começar a refeição dos justos, o rosto da mulher vela-se de hebetismo. Esta é a sua oração. A mulher dá graças ao Senhor com uma expressão sombria e rígida. Aproximando-se do Senhor, o sangue gela-se-lhe, a palidez flui-lhe no rosto. Como se o agradecimento fosse um pedir perdão, um mea culpa por haver o que comer.

De cada vez, eu esperava o momento em que ela agradecia com as mãos apertadas em oração. Saboreio todos os seus gestos. E, depois da sobremesa, esperava que ela agradecesse mais uma vez ao Senhor. Em seguida, ia-se para o salão. Mais quadros. Os coleciona- dores têm quadros em todo o lado. Não deixam respirar as paredes. Poltronas. Vista para o lago. Vista para o prado. Os dois amigos falam. Um ri-se, o outro menos. Quando passa a criada espanhola, Johannes dá-lhe gorjeta. Era o que se fazia. E amêndoas caramelizadas à senhora. «Não lhe leves nada», digo a Johannes. O amigo, quando se dirige ao meu pai, serve-se de um nome que parece húngaro. Quando quis chamar o meu pai com aquele nome, ele pediu-me que não o fizesse. Talvez só o seu amigo tenha direito a chamá-lo assim. Desde que eram estudantes. Uma coisa de iniciados. O amigo também tinha um nome, mas dizia respeito aos produtos da sua fábrica. Johannes já não tinha fábrica e, por conseguinte, tinha apenas uma alcunha. De quem já nada possui. A não ser uma filha, que não é um património. Johannes e eu já não temos nada. O melhor amigo sabe-o. A mulher dele: o Senhor deu, o Senhor tirou. Não a eles. Eu sabia-o com uma certa precisão desde que me confiaram a uma senhora que aceitou acolher-me.