Também os Brancos Sabem Dançar” surgiu por ideia do escritor José Eduardo Agualusa, após um convite para uma conferência no Rio de Janeiro. "A mesa onde eu [Kalaf] estava inserido era sobre kuduro, e era a primeira vez que estava a explicar, a uma plateia de brasileiros, exatamente aquilo que fazia. Como me apercebi que eles não entendiam bem de onde vinha e que música fazia, tive de adoptar uma estrutura bastante didática sobre o início do kuduro, de onde surgiu o nome, o porquê de Luanda ser considerado o berço [do género], mas também o facto de Lisboa ter uma importância vital para a sua expansão e desenvolvimento".

"Agualusa virou-se para mim e disse: tu devias escrever a biografia do kuduro”. Um trabalho bastante complexo, e que não era bem o que o homem dos Buraka queria. Mas a ideia ficou, e este romance fica muito perto dela. Escrito na primeira pessoa, mistura a realidade com a ficção. Não é a história do kuduro, mas sem ele também não haveria estória. É o relato de um músico angolano em digressão, numa narrativa que viaja entre a formação dos Buraka, a expansão do kuduro e da kizomba, a busca por identidades e o drama da documentação.

O primeiro romance de um dos autores de "Yah" e "Kalemba (wegue wegue)" concentra-se ao longo de um período de seis horas, na vida de três personagens - um deles Kalaf. "A primeira parte está muito perto da realidade, entre 80%-95% dos factos são verídicos. É óbvio que tive de ajustar algumas coisas, a bem da ficção e do formato romance, mas tudo aquilo aconteceu. Estava naquele autocarro, sem passaporte.”

O autocarro que refere dirigia-se para a cidade sueca de Gotemburgo, em Oslo, e Kalaf ia nele. Como não tinha um passaporte válido, é detido por tentativa de imigração ilegal e conduzido à esquadra mais próxima para interrogatório, onde tem de explicar às autoridades o verdadeiro motivo por detrás da sua visita ao país nórdico.

Já na segunda parte do livro "alguns dos personagens são reais, mas a maior parte da história é ficcionada". Uma delas, talvez a principal, Sofia, reúne na sua figura histórias e traços de várias mulheres, de várias origens, conta. "Consigo sair à noite em Lisboa e encontrar essa personagem. Ou talvez nem precise, basta ir ao YouTube e estão lá várias Sofias".

A terceira parte, "apesar de eu estar omnipresente na história, é totalmente ficção". No livro, "não há muita novidade que esteja a dar em relação à minha personagem. Há coisas que ficaram de fora; concentrei-me num período muito específico, antes da explosão dos Buraka, ou a história nunca mais acabava". Trata-se de uma auto-ficção, repetimos, em seis horas. "Não queria escrever uma autobiografia, não tenho ainda argumento suficiente".

O drama da documentação. Agendar um concerto? É fazer as contas

E o que é que passa pela cabeça de alguém que é detido num autocarro, no estrangeiro, por não ter documentação? Kalaf culpabilizava-se, "porque obviamente devia ter tido mais atenção". E acabou por não ter coragem de pedir por companhia, "não quando se tem uma banda com as milhas que Buraka tem". Eram "praticamente vinte e quatro horas..." de viagem, conta.

Mas esta história, que dá mote ao livro, não é isolada. "A documentação é um drama terrível", conta. Chegou mesmo a condicionar viagens, concertos e tournées. "Há vistos que não consegui obter por ser cidadão angolano, mesmo com tudo tratadinho e bonitinho. Algumas embaixadas, pelo menos os serviços consulares, não têm representação em Lisboa, e lembro-me de ter de me deslocar várias vezes a Paris ou a Londres só para conseguir vistos. E foram-me recusados vistos, em alguns casos".

Esta atribulada viagem acontece naquela que era a primeira tournée "importante" dos Buraka Som Sistema no estrangeiro, ainda que "o drama do passaporte" exista desde que Kalaf se tornou profissional da música. Ao longo de oito anos, viajou pelo menos duas vezes por ano para Luanda para tratar de questões relacionadas com a documentação.

Engane-se, então, quem pensa que a vida de estrada dos músicos é só glamour. No caso dos Buraka era quase matemático. "Para que o visto fosse emitido, era preciso esperar entre dez a quinze dias, e nesse período não tinha passaporte. Então, tinha de fazer contas. Para além de programar a tournée, tinha de ver quantos dias pedia uma embaixada até obter o visto. Se me perguntares como o consegui, não sei. Obviamente houve concertos que tiveram de ser cancelados, porque não consegui visto a tempo".

"Mais: ainda tínhamos de jogar com o promotor. Quando não mandavam as cartas de chamada ou a justificar porque é que estamos a ir para determinado concerto, o visto não era obtido". "Os Buraka só tinham dois portugueses [Branko (João Barbosa) e Riot (Rui Pité)]. O Andro, a Blaya e eu fomos estrangeiros durante boa parte da vida da banda. E eu fui o último a conseguir a nacionalidade portuguesa".

E ir com visto de turismo? "Nem pensar. Bem, às vezes tentávamos, claro", diz. Como a daquela vez em que foram para os EUA. "Na fronteira eles pararam-nos, à vez, e disseram-nos: 'vocês não vieram aqui para turismo'. Naquele momento não vale a pena mentir, tens mesmo de falar a verdade". Foi o que fizeram. A resposta veio rápida: "vamos monitorizar os vossos Facebooks, os vossos Twitters, tudo. Se repararmos que deram mais concertos do que os anunciados vão ser banidos dos EUA por, pelo menos, dez anos".

Há ainda a viagem dos Buraka Som Sistema, em versão redux - apenas Kalaf e Branko - para a Austrália. "Tínhamos os papéis todos, mas o promotor não mandou a tal carta a tempo. E como era um visto especial, demorava ainda algum tempo. Já o visto de turismo conseguíamos obter em quatro dias. Então, a opção era aquela: vamos tentar visto de turismo. Recusado. Automático". A razão: "não posso dar visto de turismo a um cidadão angolano, não há histórias de cidadãos angolanos a pedir visto de turismo para a Austrália".

A grande história dos Buraka escreve-se, então, ao ritmo da burocracia. "Nem imaginas o quanto", responde-nos.

Cavaco, o grande responsável pela disseminação da Kizomba e do Kuduro

“Também os Brancos Sabem Dançar” traça também a história do kuduro e da kizomba. E com algum humor à mistura, como o momento em que o autor aponta Cavaco e o PER (Programa Especial de Realojamento) como os grandes disseminadores da kizomba.

As políticas de eliminação das barracas, o consequente realojamento das famílias e a multiplicação dos centros comerciais foram os ingredientes para o desenvolvimento do género, teoriza uma das personagens presentes no livro, quando questionada sobre a origem da kizomba. "O programa foi dramático para muita gente", e hoje "ainda precisa de alguns ajustes para o tornar realmente eficaz", nomeadamente no que se refere "à arquitetura do espaço", explica Kalaf. Questões que precisam, na sua opinião, de ser ainda discutidas. E quem sabe se a construção de um Museu da Kizomba, que defende, não poderia dar esse mote. "Kizomba não dá para dançar sozinho, é música comunitária. Tens de dançar com os outros. Acho essa metáfora lindíssima. Se tens dúvidas sobre o outro, nada melhor que as tirar a dançar ou a comer".

O músico conta no currículo com dois livros de crónicas: "O angolano que comprou Lisboa (Por metade do preço)" e "Estórias de amor para meninos de cor”, títulos por si só mordazes. Como este, da sua estreia no campo do romance. "Há duas coisas que queria ser muito na vida: uma era rapper, e a outra era ser humorista. A primeira percebi logo que nunca conseguiria ser; a segunda não sei se ainda vou a tempo. Eu utilizo os meus livros para brincar com isso e passar ideias que de alguma forma me incomodam e preocupam. Até há pessoas muito próximas de mim que nem gostam muito deste título...", revela.