PREFÁCIO À DÉCIMA TERCEIRA EDIÇÃO
As doze primeiras edições desta obra só diferem umas das outras devido a alterações muito pequenas. A presente edição, pelo contrário, foi revista e corrigida com o maior cuidado. Nos quatro anos que decorreram desde que este livro apareceu, trabalhei incessantemente para o melhorar. As muitas críticas às quais deu origem tornaram-me, em certos aspetos, a tarefa fácil. Li todas aquelas que tinham algo de sério. Creio poder afirmar, em consciência, que nem por uma vez o desrespeito e as calúnias que aí misturaram me impediram de retirar proveito das boas observações que essas críticas pudessem conter. Ponderei tudo e tudo verifiquei. Se, em certos casos, ficarem espantados por eu não ter dado provimento a recriminações que foram apresentadas com uma segurança extrema e como se de erros comprovados se tratasse, não foi por ter ignorado essas recriminações, mas sim por me ter sido impossível aceitá-las. O mais das vezes, nesse caso, acrescentei, nas notas, os textos ou as considerações que me impediram de mudar de opinião, ou então, através de qualquer ligeira alteração na redação, tentei mostrar onde estava o equívoco dos meus contraditores. Ainda que muito concisas e contendo apenas a indicação das fontes em primeira mão, as minhas notas bastam sempre para mostrar ao leitor instruído os raciocínios que me guiaram na composição do texto.
Para me inocentar, em pormenor, de todas as acusações de que fui objeto, teria de ter triplicado ou quadruplicado o meu volume; teria de ter repetido coisas que já foram bem ditas, inclusive em francês; teria de ter praticado a polémica religiosa, coisa que a mim mesmo proíbo absolutamente; teria de ter falado de mim, coisa que nunca faço.
Escrevo para propor as minhas ideias àqueles que procuram a verdade. Quanto às pessoas que têm necessidade, em prol da sua crença, de que eu seja um ignorante, um espírito falso ou um homem de má-fé, não tenho a pretensão de alterar a sua posição. Se essa opinião é necessária para o descanso de algumas pessoas piedosas, teria verdadeiros escrúpulos em as desiludir.
Aliás, a controvérsia, caso a tivesse iniciado, teria incidido, a maioria das vezes, sobre pontos alheios à crítica histórica. As objeções que me dirigiram vieram de duas partes opostas. Umas foram-me dirigidas por livres-pensadores que não acreditam no sobrenatural nem, por conseguinte, na inspiração dos livros sagrados, ou por teólogos da escola protestante liberal que chegaram a uma noção tão ampla do dogma que o racionalista se pode muito bem entender com eles. Esses adversários e eu encontramo-nos no mesmo terreno, partimos dos mesmos princípios, podemos discutir de acordo com as regras seguidas em todas as questões de história, de filologia, de arqueologia. Quanto às refutações do meu livro (e são, de longe, as mais numerosas) que foram feitas por teólogos ortodoxos, sejam católicos, sejam protestantes, que creem no sobrenatural e no carácter sagrado dos livros do Antigo e do Novo Testamento, todas elas implicam um mal-entendido fundamental. Se o milagre tem alguma realidade, o meu livro não passa de uma trama de erros. Se os Evangelhos são livros inspirados e, por conseguinte, literalmente verdadeiros do início ao fim, fiz muito mal em não me contentar em alinhar trechos retirados dos quatro textos, como fazem os harmonistas, exceto para construir assim um conjunto mais redundante ou mais contraditório. Só se, pelo contrário, o milagre for uma coisa inadmissível terei tido razão ao encarar os livros que contêm os relatos milagrosos como histórias misturadas com ficções, como lendas cheias de inexatidões, de erros, de preconceitos sistemáticos. Se os Evangelhos forem livros como os outros, tive razão em tratá-los da mesma maneira que o helenista, o arabista e o indianista tratam os documentos lendários que estudam. A crítica não conhece textos infalíveis; o seu primeiro princípio é o de admitir a possibilidade de erro no texto que estuda. Longe de ser acusado de ceticismo, devo ser posto entre os críticos moderados, dado que, em vez de rejeitar em bloco documentos fragilizados por tantas misturas, tento retirar algo de histórico através de abordagens delicadas.
E que não se diga que esta maneira de apresentar a questão implica um dado adquirido à partida, que nós supomos a priori aquilo que deve ser provado em pormenor, ou seja, que os milagres narrados pelos Evangelhos não têm suporte na realidade e que os Evangelhos não são livros escritos com a participação da Divindade. Estas duas negações não são, em nós, resultado da exegese; são anteriores à exegese. São fruto de uma experiência que não foi, de modo algum, desmentida. Os milagres são daquelas coisas que não acontecem nunca; só as pessoas crédulas acreditam vê-los; não conseguimos citar um só caso que se tenha passado diante de testemunhas capazes de o constatar; não foi provada nenhuma intervenção particular da Divindade nem na confeção de um livro nem em qualquer acontecimento que seja. Basta que admitamos o sobrenatural para que estejamos fora da ciência, admitindo uma explicação que não tem nada de científico, uma explicação de que prescindem o astrónomo, o físico, o químico, o geólogo, o fisiologista, e de que o historiador também deve prescindir. Nós rejeitamos o sobrenatural pela mesma razão que nos leva a rejeitar a existência de centauros e de hipogrifos: e essa razão é a de que estes nunca foram vistos. Não é por me ter sido previamente demonstrado que os evangelistas não merecem uma crença absoluta que eu rejeito os milagres que narram. É porque narram milagres que afirmo: «Os Evangelhos são lendas, podem conter história, mas, por certo, nem tudo o que lá se encontra é histórico.»
É, portanto, impossível que o ortodoxo e o racionalista, que nega o sobrenatural, possam prestar um ao outro grande auxílio em temas destes. Aos olhos dos teólogos, os Evangelhos e os livros bíblicos em geral são livros como nenhum outro, livros mais históricos do que as melhores histórias, dado que não contêm nenhum erro. Para o racionalista, pelo contrário, os Evangelhos são textos aos quais se devem aplicar as habituais regras da crítica; nós estamos, na sua opinião, como os arabistas em presença do Alcorão e dos hádices, como os indianistas em presença dos Vedas e dos livros búdicos. Considerarão os arabistas infalível o Alcorão? Serão acusados de falsificar a história quando narram as origens do islamismo de uma forma diferente da dos teólogos muçulmanos? Encararão os indianistas o Lalitavistara como uma biografia?
Como podemos esclarecer-nos reciprocamente partindo de princípios opostos? Todas as regras da crítica pressupõem que o documento submetido a exame só tem um valor relativo, que esse documento se pode enganar, que pode ser reformulado por um documento melhor. Persuadido de que todos os livros que o passado nos legou são obras de homens, o sábio profano não hesita em provar que os textos estão errados quando estes se contradizem, quando enunciam coisas absurdas ou formalmente refutadas por testemunhos mais autorizados. O ortodoxo, pelo contrário, certo, à partida, de que não existe um só erro nem uma só contradição nos livros sagrados, presta-se aos meios mais violentos, aos expedientes mais desesperados, para sair de dificuldades. A exegese ortodoxa é, desta forma, uma trama de subtilezas; uma subtileza pode ser verdadeira isoladamente; mas mil subtilezas não podem ser verdadeiras em simultâneo. Se existissem em Tácito ou em Políbio erros tão graves como aqueles que Lucas comete a propósito de Quirino e de Theudas, diríamos que Tácito e Políbio se tinham enganado. As argumentações que não faríamos quando se trata de literatura grega ou latina, as hipóteses com que um Boissonade ou mesmo um Rollin jamais sonhariam, consideramo-las plausíveis quando se trata de absolver um autor sagrado.
É, portanto, o ortodoxo que usa dados adquiridos à partida ao acusar o racionalista de alterar a história por este não seguir, palavra por palavra, os documentos que o ortodoxo considera sagrados. Do facto de uma coisa ter sido escrita não decorre que esta seja verdadeira. Os milagres de Maomé estão tão bem escritos quanto os milagres de Jesus, e sem dúvida que as biografias árabes de Maomé, por exemplo, a de Ibn Hixame, têm um carácter bem mais histórico do que os Evangelhos. Será que, devido a isso, admitimos os milagres de Maomé? Nós seguimos Ibn Hixame, com maior ou menor confiança, quando não temos razões para nos afastarmos dele. Mas, quando nos conta coisas completamente incríveis, não temos dificuldade alguma em o abandonar. Por certo, caso tivéssemos quatro Vidas de Buda, em parte fabulosas, e tão inconciliáveis entre elas quanto os quatro Evangelhos o são entre si, e caso um sábio tentasse desembaraçar essas quatro narrativas búdicas das suas contradições, não acusaríamos esse sábio de fazer que os textos mentissem. Consideraríamos bom ele convidar as passagens discordantes a reunirem-se, procurar um compromisso, uma espécie de narrativa intermédia, que não contivesse nada de impossível e na qual os testemunhos opostos se equilibrassem entre si e fossem tão pouco violentados quanto possível. Se, depois disso, os budistas clamassem que era mentira, que era uma falsificação da história, teríamos o direito de lhes responder: «Aqui, não se trata de história, e se, por vezes, nos afastámos dos vossos textos, a culpa é desses textos, que contêm coisas em que é impossível acreditar e que, aliás, se contradizem.»
Na base de qualquer discussão acerca de semelhantes matérias encontra-se a questão do sobrenatural. Se o milagre e a inspiração de certos livros forem coisas reais, o nosso método é detestável. Se o milagre e a inspiração dos livros forem crenças sem realidade, o nosso método é o correto. Ora, a questão do sobrenatural está, para nós, resolvida com inteira certeza, pela simples razão de que não tem sentido acreditar numa coisa quanto à qual o mundo não oferece nenhum vestígio experiencial. Nós não acreditamos no milagre tal como não acreditamos em fantasmas, no Diabo, na feitiçaria e na astrologia. Teremos necessidade de refutar, passo a passo, os longos raciocínios dos astrólogos para negar que os astros influenciam os acontecimentos humanos? Não. Basta-nos a experiência completamente negativa, mas tão demonstrativa como a melhor prova direta, que é nunca termos constatado tal influência.
A Deus não agrada que desconheçamos os serviços que os teólogos prestaram à ciência! A investigação e a criação dos textos que servem de documentos a esta história foram obra de teólogos, muitas vezes ortodoxos. O trabalho de crítica foi obra de teólogos liberais. Mas há uma coisa que um teólogo jamais saberá ser, que é ser historiador. A história é, na sua essência, desinteressada. O historiador só tem uma preocupação, a arte e a verdade (duas coisas inseparáveis, dado que a arte guarda o segredo das leis mais íntimas do que é verdadeiro). O teólogo tem um interesse, que é o seu dogma. Reduzam esse dogma tanto quanto desejarem; ele terá, ainda assim, para o artista e para o crítico, um peso insuportável. O teólogo ortodoxo pode ser comparado a um pássaro numa gaiola; todos os movimentos adequados lhe estão interditos. O teólogo liberal é um pássaro ao qual cortaram algumas penas da asa. Vocês creem-no senhor de si mesmo e ele é-o, com efeito, até ao momento em que é preciso levantar voo. Então, veem que não é completamente filho do ar. Proclamemo-lo destemidamente: os estudos críticos relativos às origens do cristianismo só dirão a sua última palavra quando forem cultivados com um espírito puramente laico e profano, de acordo com o método dos helenistas, dos arabistas ou dos sanscritistas, pessoas alheias a toda a teologia, que não pretendem nem edificar nem escandalizar nem defender os dogmas, nem destruí-los.
Dia e noite, ouso dizê-lo, refleti acerca destas questões, que devem ser levantadas sem outros preconceitos que não sejam aqueles que constituem a própria essência da razão. A mais grave de todas, incontestavelmente, é a do valor histórico do quarto Evangelho. Aqueles que não divergiram quanto a estes problemas dão azo a que acreditemos que não compreenderam toda a sua dificuldade. Podemos classificar as opiniões acerca desse Evangelho em quatro categorias, sendo as seguintes as suas expressões abreviadas:
Primeira opinião: «O quarto Evangelho foi escrito pelo apóstolo João, filho de Zebedeu. Os factos contidos nesse Evangelho são todos verdadeiros; os discursos que o autor põe na boca de Jesus foram realmente proferidos por Jesus.» Esta é a opinião ortodoxa. Do ponto de vista da crítica racional, é completamente insustentável.
Segunda opinião: «O quarto Evangelho é, basicamente, da autoria do apóstolo João, ainda que possa ter sido redigido e retocado pelos seus discípulos. Os factos narrados nesse Evangelho são tradições diretas de Jesus. Os discursos são, muitas vezes, composições livres, exprimindo apenas a maneira como o autor concebia o espírito de Jesus.» Trata-se da opinião de Ewald e, em certos aspetos, da de Lücke, de Weisse e de Reuss. E trata-se da opinião que eu tinha adotado na primeira edição desta obra.
Terceira opinião: «O quarto Evangelho não é obra do apóstolo João. Foi-lhe atribuído por um dos seus discípulos, por volta do ano 100. Os discursos são, quase inteiramente, fictícios; mas as partes narrativas contêm tradições preciosas que remontam, em parte, ao apóstolo João.» Esta é a opinião de Weizsæcker e de Michel Nicolas. E é aquela a que agora vinculo.
Quarta opinião: «O quarto Evangelho não é, em sentido algum, da autoria do apóstolo João. Não se trata de um livro histórico nem quanto aos factos nem quanto aos discursos relatados. Trata-se de uma obra da imaginação e, em parte, alegórica que nasceu por volta do ano 150, e em que o autor não se propôs relatar, efetivamente, a vida de Jesus, mas sim fazer prevalecer a ideia que tinha de Jesus.» Esta é, com algumas variações, a opinião de Baur, Schwegler, Strauss, Zeller, Volkmar, Hilgenfeld, Schenkel, Scholten e Réville.
Não me posso associar inteiramente a este grupo radical. Ainda acredito que o quarto Evangelho tem uma ligação real ao apóstolo João e que foi escrito por volta do final do século I. Confesso, contudo, que, em certas passagens da minha primeira redação, me inclinava demasiado para a autenticidade. A força probatória de alguns argumentos nos quais insistia parece-me agora menor. Já não acredito que São Justino tenha posto o quarto Evangelho no mesmo patamar que os sinóticos no seio das «Memórias dos Apóstolos». A existência de João, o Presbítero, como personagem distinta do apóstolo João parece-me agora bastante problemática. A opinião segundo a qual João, filho de Zebedeu, teria escrito esta obra, hipótese que nunca admiti completamente, mas em relação à qual, por momentos, mostrei alguma fraqueza, é aqui descartada como impossível. Por fim, reconheço que estava errado ao repudiar a hipótese de um falso escrito atribuído a um apóstolo do final da época apostólica. A segunda epístola de Pedro, cuja autenticidade ninguém pode defender racionalmente, é um exemplo de uma obra, bem menos importante, é verdade, do que o quarto Evangelho, que se supõe estar nessas condições. De resto, essa não é, por agora, a questão fundamental. O essencial é sabermos que utilização convém fazer do quarto Evangelho ao tentarmos escrever a vida de Jesus. Eu continuo a pensar que esse Evangelho possui um valor de fundo semelhante ao dos sinóticos e mesmo, por vezes, superior. O desenvolvimento deste ponto tinha tanta importância que fiz dele objeto de um apêndice no fim do volume. A parte da introdução relativa à crítica do quarto Evangelho foi retocada e completada.
No corpo da narrativa, há vários passos que também foram modificados em consequência daquilo que acaba de ser dito. Todos os elementos de frases que implicavam, mais ou menos, que o quarto Evangelho fosse da autoria do apóstolo João ou de uma testemunha ocular dos factos evangélicos foram eliminados. Para traçar o carácter pessoal de João, filho de Zebedeu, pensei no rude Boanerges de Marcos, no terrível visionário do Apocalipse, e já não no místico, cheio de ternura, que escreveu o Evangelho do amor. Insisto, com menos confiança, em certos pequenos pormenores que nos são fornecidos pelo quarto Evangelho. Os empréstimos, tão restritos, que eu tinha pedido aos discursos desse Evangelho foram ainda mais reduzidos. Eu havia-me deixado levar em demasia pela firmeza do hipotético apóstolo no que diz respeito à promessa do Paracleto. De igual modo, já não estou tão certo de que o quarto Evangelho tenha razão na sua discordância com os sinóticos quanto ao dia da morte de Jesus. A respeito da Ceia, pelo contrário, insisto na minha opinião. A narrativa sinótica que relata a instituição eucarística na última noite de Jesus parece-me conter uma inverosimilhança equivalente quase a um milagre. Trata-se, na minha opinião, de uma versão convencionada e que assenta numa certa ilusão das memórias.
O exame crítico dos sinóticos não foi modificado no seu fundo. Completámo-lo e clarificámo-lo quanto a certos pontos, nomeadamente no que diz respeito a Lucas. Acerca de Lisânias, um estudo da inscrição de Zenodoro existente em Balbeque, que realizei para a Mission de Phénicie, levou-me a crer que o evangelista podia não estar tão gravemente errado quanto pensam certos críticos hábeis. Acerca de Quirino, pelo contrário, a última dissertação do Sr. Mommsen dirimiu as dúvidas a respeito do terceiro Evangelho. Marcos parece-me, cada vez mais, o tipo primitivo da narração sinótica e o texto mais autorizado.
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