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É perigoso escrever... É proibido ler ou ter (alguns) livros...

«DOS BLASFEMOS E DOS QUE PROFEREM PROPOSIÇÕES HERÉTICAS, TEMERÁRIAS OU ESCANDALOSAS»

Esta é a designação do título XII do livro III do Regimento do Santo Ofício de 1640. Quase diríamos que foi a aplicação desta máxima que iniciou o processo de Manuel Fernandes Vila Real em 1643.

Como se disse, Vila Real publicou em 1641 um livro, Epítome Genealógico, de elogio ao cardeal duque de Richelieu, que depois veio a editar em 1642 com o nome mais singular de Político Cristianíssimo. Ambas as edições (supostamente publicadas na Navarra, em Pamplona, o que levantou, obviamente, suspeitas devido ao facto de França ser inimiga de Espanha) são escritas em castelhano, língua com significado global, pois o império de Carlos V criara um enorme espaço político e cultural onde essa língua dominava. A intenção – já se disse – era homenagear o presidente do Conselho de Estado do rei Luís XIII, tendo em conta o seu natural apoio à causa portuguesa da «Restauração», dado que a França era inimiga natural dos Habsburgos, que haviam governado em Portugal até 1 de dezembro de 1640. Essa motivação, por assim dizer «nacional», não impediu que um qualificador do Santo Ofício fosse encarregado de ler o livro com o sentido de o censurar e «mandar riscar» algumas partes, até pelo facto de ter sido escrito por um cristão-novo.

Em 31 de agosto de 1643, o inquisidor Pedro de Castilho (não confundir com o que foi bispo de Leiria, bispo de Angra e inquisidor-geral, falecido em 1615) enviava ao inquisidor-geral a censura, datada de 6 de abril desse ano, do padre-mestre dominicano, do Convento de São Domingos de Lisboa, frei Inácio Galvão, que depois a complementou em 19 de setembro desse mesmo ano. Passados alguns anos, em 7 de maio de 1649 – já Vila Real se encontrava em Lisboa e se preparava o processo que o levaria à prisão, e depois de os livreiros e familiares do Santo Ofício, Francisco da Costa, Manuel Rodrigues e Diogo Jorge, confirmarem que o autor designado na obra por «El Capitán M. F. de Villa Real» era de facto Manuel Fernandes Vila Real –, a Mesa do Santo Ofício, composta por Pedro de Castilho, Francisco de Miranda Henriques, o bispo de Targa (que julgamos ser D. Francisco de Souto Maior), Belchior Dias Preto, Luís Álvares da Rocha, D. Leão de Noronha e Manuel Corte Real de Abranches, anotou as censuras feitas à obra ou ao «livrinho», como lhe chamou em alguns passos da censura Inácio Galvão. Considerava-o nessa censura «muito prejudicial, por temerário e escandaloso» (fórmula que aparecia no Regimento – livro III, título XII), começando por entender que era «sus- peito» porque, além de ter dúvidas quanto ao lugar da impressão e à identidade do autor, não constavam nele as licenças de bispos e inquisidores, como regulamentavam os Catálogos da Censura.

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As partes censuradas, consideradas «cousas menos seguras e outras mordazes e escandalosas», eram descritas pelo dominicano com ênfase, anotando minuciosamente as razões por que, como concluiu, ofendiam as «almas pias» – pias aures offendit. Vejamos, em síntese, quais eram, seguindo o raciocínio ou o sentimento de integrismo eclesiástico, inquisitorial e anti-judaico do dominicano Inácio Galvão, traduzindo para português algumas frases do autor que as escreve, como todo o livro (conforme se disse), em castelhano.

Começa por referir um passo da obra em que o autor louvou especialmente Richelieu, porque – segundo Vila Real – «movido de um zelo ardente de união de todos à verdadeira fé, fez que Sua Majestade Cristianíssima erigisse uma nova cátedra de Controvérsia». Frei Inácio Galvão aceitava que, segundo São Tomás de Aquino, a controvérsia podia ser «de proveito», mas também podia ser «prejudicial». No entanto, também acrescentava que, como «neste Reino» de Portugal havia uma «grande multidão de gente de nação», o autor queria que houvesse igualmente «controvérsia» para que se não procedesse com rigor com os que têm «outra religião», o que era evidente (segundo o censor) em outros passos da obra.

Assim, prosseguindo, cita outro texto, desta vez interrogativo-exclamativo, de Vila Real:

Que cousa há menos conforme à razão que querer fazer de cúmplices profetas e de delitos enigmas, que por um ferro do entendimento se castigue a fazenda, não a própria, mas a alheia, a de sua mulher, a de seus filhos que não são culpados...[!?]

Esclarece frei Inácio Galvão que, assim, o autor quis criticar o «segredo» que é prática do Santo Ofício. Ao afirmar que a Inquisição faz de «cúmplices profetas», quis dizer que ela obriga os presos a adivinhar quem testemunhou contra eles, acrescentando no mesmo sentido que ela pretende fazer dos «delitos enigmas». Ora, conclui o dominicano que o sistema usado pelo Santo Ofício estava de acordo com o que aprovava a Igreja e era louvado pelos seus «doutores», pois o castigo de heresia sempre se executou tanto com penas espirituais como com penas temporais. E, para fundamentar melhor ainda esta afirmação, chega a citar São Mateus e São Paulo, além de capítulos do Concílio Toledano (talvez o quinto, realizado em Toledo, em 636) e do Concílio de Constança (1414-1418), que ordenou queimar os hereges João Huss e Jerónimo de Praga, e a bula de Leão X, de 1521, de condenação de Lutero (Decet Romanum Pontificem, Cabe ao Pontífice Romano...). Por esse motivo – finaliza – é «lícito» que o Santo Ofício mande «relaxar o herege à justiça secular», para o castigar com penas temporais. De resto, este «crime» estava explicitamente considerado no Regimento de 1640: «Dos que impedem e perturbam o ministério do Santo Ofício» (Livro III, título XXI).

Citando várias páginas do Político Cristianíssimo, a censura de Inácio Galvão prossegue, indicando afirmações do livro que considera «temerárias», quando, a propósito de Filipe III (ou II da Coroa portuguesa) ter expulsado dos reinos de Castela os «mouriscos» (1609), os quais ocultamente continuaram, contudo, a observar as «cerimónias do seu Alcorão», o seu autor defende a tolerância religiosa com afirmações deste tipo:

A variedade de Religião, quando é oculta, não deve castigar-se com tanto rigor nem com meios extraordinariamente cruéis. Não faz parte do poder do Príncipe esquadrinhar os segredos da alma; basta que o vassalo obedeça às suas leis, observe os seus preceitos, sem introduzir o seu império no mais íntimo do coração.

O qualificador, criticando estas e outras máximas semelhantes, nota que o autor se refere explicitamente ao «Príncipe», mas, sem o dizer, quer falar contra o procedimento do Santo Ofício, ao mesmo tempo que defende «a liberdade de religião e poder cada um seguir o que lhe parecer», para, deste modo, no Reino, «favorecer a gente de nação» ou «outros hereges».

É interessante, a este propósito, que o qualificador tenha destacado no texto de Vila Real a tese da origem do poder real e a ideia do contrato, numa conceção absolutista, citando assim esta frase:

Na medida em que os homens concederam a autoridade ao Monarca para que os governasse, perderam o direito de examinar as suas ações ou contradizê-las. Eram livres, tornaram-se sujeitos e o que puderam contradizer em liberdade não podem negar em sujeição. 

Olhando para este texto do autor, que, acima de tudo, quis, certamente, relevar a tendência realista que se passava em França, Galvão não deixou de salientar, numa afirmação de poder da Igreja, que os reis não têm jurisdição sobre o clero, porque este tem isenção em matéria eclesiástica, embora os clérigos sejam súbditos dos reis como «homens políticos», dado que fazem parte da «república civil». E, integrando-se numa imagem clássica e nacional, não deixa de afirmar, baseando-se em Xenofonte, que os reis podem ser verdadeiros pais que, por isso, não tratam os súbditos como escravos, tal como sucedia com os «Reis de Portugal verdadeiros e naturais» e concretamente com D. João IV.

Mas também anotava que Vila Real sempre car- regava na ideia da diferença religiosa, ao afirmar: «O príncipe que separar os preceitos da Religião das máximas do Estado verá a divisão do Reino.» E também notava que o autor do «livrinho», nesse sentido, salientava o valor da palavra dada, mesmo a alguém de religião diferente: «A palavra dada ao inimigo da Religião deve ser observada com toda a pontualidade.» Contestando esta máxima, observa que Tristão de Mendonça havia aceite, como diplomata português na Holanda, que viessem a Portugal os «predicantes dos hereges» (entenda-se: os calvinistas), mas acabou por não se aplicar este compromisso, em nome da religião católica.

Porém, o mais importante era para Inácio Gal- vão o que Vila Real queria dizer contra os métodos da Inquisição, ao afirmar, sem referir obviamente o Santo Ofício, que o monarca devia «moderar» o «rigor», pois não poderia tentar iluminar uma «alma cega» (ou seja, alguém que não fosse católico) com um «processo às escuras» e uma «prisão tenebrosa e dilatada». Assim, concluía o qualificador: com esta afirmação só se confirmava que «o ânimo deste Autor é desacreditar o Santo Ofício e favorecer hereges». Daí que finalizasse com a acusação de que «todo o livro é equívoco e, debaixo do zelo representado e fingido, quer introduzir erros», rematando (como atrás se disse) que esse «livrinho» era «muito prejudicial, por temerário e escandaloso».

Em setembro de 1643 confirmava a sua acusação, repetindo ainda, como ponto a ter em conta, que Vila Real considerava, falando da expulsão dos «mouriscos» em Espanha, que tal facto acarretou muitas perdas ao reino com «cidades despovoadas, cidades sem gente, comércio sem mercadores, roubos, desterros, etc.», pelo que procurava reforçar a ideia de que o autor do Político Cristianíssimo queria que se usasse de tolerância em relação aos hereges, o que em si mesmo era uma heresia.

Claro que a obra veio a ser censurada em vários pontos (sete na totalidade), conforme já era referido em 23 de março de 1643, o que veio a proporcionar em 1649 a acusação do promotor da Inquisição. O qualificador do Santo Ofício Fernando de Meneses confirmou, em 18 de maio deste ano de 1649, no Convento de São Domingos de Lisboa, as censuras feitas anos antes pelo seu confrade. Logo no início do seu texto sintetiza, passando depois a tentar provar esta censura através do texto de Vila Real:

Vi o livro intitulado Epítome genealógico del Eminentíssimo Cardenal Duque de Richelieu, etc., por el Capitán M. F. de Vila Real, e ao discurso dele acho que duas cousas principalmente parece que pretende o autor. A primeira, defender, favorecer e amparar os que cometem erros contra a fé, para que por eles não sejam castiga- dos, antes sejam permitidos não só quando os erros são ocultos e deles não resulta escândalo e mau exemplo, mas ainda consentindo-se-lhes liberdades para disputar formalmente seus erros em públicas controvérsias contra os católicos. A segunda, condenar e reprovar os procedimentos do Santo Ofício contra os hereges no segredo dos processos, nos cárceres e na confiscação, caluniando os ministros da Inquisição de ambiciosos e cobiçosos, que com ódio e desejo de vingança pro- cedem, pretendendo não a emenda dos culpados, mas sua fazenda. 

Tendo em conta a análise para provar as afirmações iniciais que acabaram de ser transcritas, considerava que tal era suficiente «para fazer contra ele veemente presunção [de culpa]». Era, pois, muito perigoso escrever, aumentando o perigo se o seu autor, como era o caso de Vila Real, que habitara em França, onde havia outras liberdades de pensamento, viesse para Portugal, como de facto sucedeu.