Titular uma crítica a um filme acusando-o de não fazer sentido é desculpa suficiente para justificar a eventual falta de coerência do próprio texto. Caso lhe falte a substância, podemos sempre atribuir as culpas à obra analisada. Todavia, é precisamente em busca dessa substância que aqui tentamos ir. Para perceber o que falta num filme onde cabem todas as estrelas de Nova Iorque.
Perder e encontrar. A vida, se de outra coisa não for feita, pode resumir-se a buscas pelas coisas perdidas — sejam elas pessoas, momentos, objetos ou ligações. E algures na cabeça de cada um há uma montra que as expõe, delicadamente, à nostalgia de as saber vivas, embora perdidas. À montra podemos chamar museu; ou armário das maravilhas, esse lugar onde arrumamos o que nos faz.
Todd Haynes leva o espectador precisamente por um passeio dentro desse museu das memórias (sejam as recordadas ou as recalcadas). E é um passeio de beleza, poesia. Por vezes também de soberba e tempos há em que sentimos ser guiados em demasia, sem poder descobrir sozinhos os pormenores e os indícios que se escondem nas sombras dos holofotes que apontam a história.
Talvez isto seja exigência a mais para um filme assumidamente feito para crianças — embora o realizador de “Carol” (2015) não seja useiro neste género.
É a explorar as procuras que Ben e Rose se cruzam. Cruzamento que acontece fora da dimensão temporal, embora ocorra na partilha do mesmo espaço: o Museu de História Natural de Nova Iorque e o respetivo acervo. Entra novamente a parábola museológica.
Ambos partilham também esse isolamento provocado pela ausência de sons. Rose nunca ouviu; Ben deixou de ouvir quando um acidente elétrico lhe roubou a audição do único ouvido que lhe funcionava.
Os encadeamentos são por vezes forçados, fruto de coincidências e alinhamentos místicos improváveis. Mas ninguém disse que esta história não é do reino do fantástico. E se fantástico é tudo o resto, porque não pode também ser a realidade da cena?
Se ignorarmos os aspetos formais de uma narrativa que peca nos excessos descritivos e nas evidências escancaradas, temos um bom filme, uma boa lição para os mais novos. Uma lição do privilégio que é ter cinco sentidos em pleno; uma lição de que não é a falta de um que muda qualquer que seja a ambição de alguém. E uma lição de história do cinema.
Por aí, temos um filme para crianças que não maçará adulto algum (tomando cuidado, sublinhamos, com as maleitas atrás indicadas). E se o formato, espécie de pastiche, pode não funcionar num todo, resulta muito bem nas partes, nas pequenas homenagens que faz a estilos e épocas diferentes da arte cinematográfica. E assim visto, como catálogo da arte de que Haynes e Lachman são capazes, vale a pena.
Os contrastes de cor e luz, também os de som e silêncio, apelam aos sentidos do espectador, que os sente gritando as respetivas presenças. Como que a anunciar: estou aqui, mesmo que me não vejas, me não sintas, me não oiças.
Por certo o caminho seria diferente se ouvindo; por certo seria diferente se sentido no quase-pleno dos impulsos. Todavia, por fim percebemos, tal como numa viagem o destino raramente é o mais importante; também na fruição do mundo, raramente as dimensões em que o apreendemos importam, se não a maneira como ele nos apreende a nós.
Ou as histórias. Porque este filme de Haynes é na verdade dois filmes; dois filmes costurados um no outro, com um rendilhado de intersecções, por vezes redundâncias, que nos levam a conhecer a vida de duas crianças, de duas cidades. A primeira é Rose, interpretada pela estreante Millicent Simmonds, que, sendo surda também fora do grande ecrã, traz ao filme uma sensibilidade e personalidade particulares.
Sensibilidade essa que nos é dada pela transposição das ilustrações do livro de Brian Selznick, em que o filme se baseia (Selznick que assina também o argumento deste filme). Através de um engenhoso modelo narrativo, a história de Rose é contada numa homenagem ao cinema mudo dos anos 1920. A preto e branco, sem vozes e com adequadas adaptações técnicas ao cinema do passado, Haynes mergulha-nos na arte dos mestres que faziam filmes precisamente arredados de uma das mais práticas formas de contar história: a fala.
Simmonds traz uma capacidade de expressar emoções através da linguagem corporal capaz de levar a história em frente, sem grande prejuízo para o contexto da história (o prejuízo não é grande, mas também não é inexistente).
Cinquenta anos mais tarde, vive Ben (Oakes Fegley). Dado a perdas, o jovem está em busca de pistas por entre os haveres da mãe quando, literalmente num relâmpago, perde a audição e o mundo se lhe cala. Mas o silêncio do mundo não emudece as dúvidas do rapaz, que parte para a decadente Nova Iorque do final dos anos 1970 em busca do pai, de quem sabe apenas o nome — Danny — e a pista de uma livraria.
Meio século antes, Rose fizera o mesmo. Surda, resguarda do mundo por um pai sobreprotetor, sem saber do paradeiro da mãe, a jovem parte a caminho de Nova Iorque. Não foi, porém, em busca de um eventual Danny, se não à procura de uma famosa atriz do cinema mudo (Julianne Moore), que preparava na cidade do leste dos Estados Unidos a estreia de uma peça. Atriz que acredita (ou deseja) ser a respetiva mãe.
Façamos uma pausa aqui para apreciar parte das cenas em que esta busca decorre. Numa situação em que vários atores ensaiam a peça — e por ser uma referência ao cinema mudo, como dissemos, estes segmentos não têm falas — os autores do filme deram-se à liberdade de fazer algo simpático. Grande parte dos atores que desempenham o papel de personagens falantes é, na verdade, surda. Foi uma oportunidade para estes artistas de interpretar personagens a que, normalmente, não têm acesso.
Regressando à narrativa dupla, tanto os destinos de Rose como de Ben convergem em torno de um meteorito exposto no museu de história natural de Nova Iorque, numa analogia à transitoriedade do tempo e à imutabilidade do espaço. É que os homens passam, mas as montanhas — e o lixo espacial — ficam.
O próprio astro caído ganha significado se o virmos como estrela cadente que foi antes de se despenhar. E a atração pelas estrelas é-nos mais do que uma vez posta à frente, seja literalmente, seja literariamente.
Enunciadas quase todas as premissas, resta falar do final algo atabalhoado a que chegamos. Atabalhoado porque atirado. Num repente, depois de seguirmos as duas pontas do fio de Ariadne, acabamos a bater na testa de nós mesmos, que é como quem diz, depois de seguirmos duas estradas distintas, embora semelhantes, acabamos precisamente no mesmo lugar. Aqui, porém, a culpa talvez seja mais do argumento que da realização.
Reforçando, para concluir, é um filme com momentos de grande beleza cinematográfica; com um desenvolvimento narrativo pouco comum e muito interessante, com atuações exemplares, fotografia precisa e cenários rigorosos. Porém, com um argumento que se enrola dentro de si. No final, não há nada para desgostar fortemente neste filme; contudo, também não sei se há algo para gostar grandemente.
É de louvar, porém, a abertura de uma janela para este mundo do silêncio. Apesar de uma rica banda sonora, o espectador sente a claustrofobia da mudez, da ausência total de som. E essa viagem sinestésica pela vida de duas crianças surdas; pela vida de quem, não ouvindo, recorre ao resto que é o mundo para perceber não só quem é, mas também o que a rodeia.
“Wonderstruck: O Museu das Maravilhas”, de Todd Haynes, com Oakes Fegley, Millicent Simmonds, Julianne Moore e Michelle Williams, estreia esta quinta-feira, 22 de março, nas salas portuguesas.
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