Entrado no antigo Serviço (hoje Sociedade de Transportes Coletivos do Porto) aos 14 anos, “como aprendiz de pintor de automóveis”, António Nogueira, hoje com 68 anos, lembra-se bem de como era a jornada de trabalho nas oficinas da Carcereira, hoje desmanteladas e transformadas em escritórios com o moderno nome de Porto Office Park (POP).
“A vida era dura. Quando fui para lá pegava às 8:00 e saía às 18:00. Na altura trabalhavam-se nove horas por dia. E ao sábado até ao meio dia. Eram as 48 horas por semana”, recorda.
Afirmando hoje que não tem partido e que antes do 25 de Abril deixava a linha da frente da luta para “os que pertenciam ao Partido Comunista e se organizavam”, ainda assim o antigo oficinal ousou fazer greve em pleno Estado Novo e arcou com as consequências.
“A polícia cercou-nos, tinha lá uma carrinha, estava lá um indivíduo da PIDE também, montaram uma mesa lá no meio da oficina” para perguntar quem ia trabalhar.
Segundo António Nogueira, “os dois ou três primeiros que disseram que não iam trabalhar entraram logo para a carrinha”, e passados uns dias, mesmo os que não entraram, foram todos “chamados à PIDE”, na rua do Heroísmo.
“Estive lá uma tarde, eu e os colegas, não fomos todos no mesmo dia, mas tivemos que lá ir”, recordando-se que “aquilo intimidava um bocado” e havia “um ambiente muito pesado”, bem pior para quem ficou nas celas.
Lino de Carvalho, 80 anos, antigo administrativo que chegou a chefe de serviço, sabia bem que “as pessoas, mesmo que nunca tivessem sentido na pele, tinham consciência do ‘cuidado com o que dizes'”.
“Havia este sentido de… não diria medo, mas de cuidado”, recorda.
A sua mulher, Rosa Couto, de 79 anos, corrige: “Era medo, mesmo. Não era só consciência de que não podíamos passar o risco.”
“Eu nunca liguei à política, nunca foi uma coisa que me interessasse. Mas aqueles que se interessaram sofreram as consequências. Tinha-se consciência disso”, reconhece Rosa, igualmente ex-administrativa e chefe nos Recursos Humanos.
No STCP, dependendo da função, uns trabalhadores sofriam mais do que outros. Os colegas de Rosa que foram presos “eram todos oficinais”, operários que “não tinham facilidades nenhumas” concedidas pela empresa ou pelo regime.
Por exemplo, identificados no vestuário com uma “chapinha”, tinham direito a poucos lugares de transporte “na frente e na traseira do elétrico, à coxia”, mas “se fossem administrativos, já tinham direito a sentar-se dentro do veículo”, recorda Lino. “Era um absurdo”.
Tanto nas oficinas como nos escritórios, “era distribuído o jornal”, segundo Rosa, mas este tipo de atividades subversivas era feita, obviamente, “na clandestinidade total”, confirma o seu marido.
“Antes do 25 de Abril já aparecia lá propaganda. Panfletos. A gente não tinha noção de onde eles vinham, na altura. Pelo menos eu, na altura, era novo e nem pensava nisso, mas já havia”, conta António Nogueira.
Mas mesmo para os três ex-funcionários do Serviço que nunca se envolveram muito na luta, travada sobretudo por comunistas no seio da empresa, a revolução trouxe melhorias.
“Do que estamos a falar aqui, além de toda a circunstância política e partidária, no fundo acabou por ser uma grande transformação ao nível dos direitos dos trabalhadores”, assevera Rosa.
Para António Nogueira, que sentiu na pele a dureza das oficinas, “a maior conquista foram as questões laborais e as regalias dos trabalhadores”.
“Eles pagavam muito mal antes do 25 de Abril. Depois começaram a pagar melhor, com as negociações. As greves também ajudaram a conquistar muita coisa. Melhorou muito”, recorda, notando bem a diferença nas “condições materiais” e nas “questões de segurança”, mas sobretudo “a nível de direitos e regalias”.
Desde os 17 anos “até aos 57 e qualquer coisa”, Lino nunca foi a um posto de saúde porque tinha tudo na empresa.
“Nós tínhamos as medicinas. Tínhamos tudo. Tínhamos o dentista, tínhamos plano, a empresa funcionava com pediatria, depois íamos a especialistas fora, e tínhamos os melhores especialistas que havia no Porto”, lembra Rosa.
António Nogueira viu, logo após a revolução, “uma unidade maior dos trabalhadores” para conquistar estas regalias, mas “a partir dos anos 90, aquela unidade começou-se a perder”: “já cada um puxava para o seu lado” e algumas regalias “vão-se perdendo porque os trabalhadores deixam de ter aquele poder de reivindicar como tinham na altura”.
“Os trabalhadores perderam a força porque alguém lhes tirou a força. As coisas não são feitas assim de um momento para o outro”, avisa.
Ainda assim, para Rosa Couto, “o fundamental está lá e eles não podem tirar”.
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