6. Como é que Yahvé se tornou o deus de Israel?
É necessário começar por dizer, com toda a clareza, que a resposta mais honesta a esta pergunta é que não sabemos. Se parece provável que Yahvé “veio do sul”, isto é, de fora da terra de Canaã, e que terá, a certa altura, suplantado El como divindade tutelar de Israel, os dados de que dispomos só nos permitem esboçar cenários muito hipotéticos a respeito das circunstâncias (“quando” e “como”) nas quais semelhante processo teve lugar. O que se apresenta em seguida é, por isso, mais “palpite” que teoria.
Um enorme obstáculo à reconstrução histórica é o facto de não se terem encontrado quaisquer vestígios, nas fontes epigráficas, de que Yahvé foi venerado pelo povo que habitava a zona a sul/sudeste da terra de Canaã a partir do final do Bronze Recente e durante toda a Idade do Ferro: os Edomeus. De acordo com os textos bíblicos, Yahvé “provém” da região (“Seir”, “Edom”, etc.) na qual este grupo étnico lançou as suas raízes. As referências a Edom nas inscrições egípcias e, depois, assírias e babilónicas sugerem que emergiu como entidade étnica durante o século XIII a. C. e que floresceu nos séculos seguintes graças, em grande parte, à exploração mineira e ao comércio. Tendo-se constituído também como entidade política, isto é, como reino (provavelmente, no final do século X a. C., início do século IX a. C.), Edom continua a existir como estado até ao século VI a. C., quando foi conquistado pelo último rei do império neobabilónico, Nabonido (c. 556-539 a. C.). Ora, Edom não parece ter venerado, em momento algum da sua História, um deus chamado Yahvé, nem sequer como membro secundário de um suposto panteão local. Uma tal situação não impediu, porém, a especulação. Alguns estudiosos chamam a atenção para o facto de não termos indícios conclusivos de que o deus Cos ou Caus, a divindade tutelar de Edom, tivesse sido venerado como tal antes do século VIII a. C. É também curioso notar que os textos bíblicos ignoram totalmente Cos, ao passo que os deuses dos Moabitas e Amonitas, vizinhos de Edom, são explicitamente nomeados. Daqui e do facto de o livro do Génesis declarar que os Edomeus são descendentes de Esaú, o irmão mais velho do patriarca Jacob-Israel (Gn 36), chega-se às várias hipóteses que se esforçam por “irmanar” religiosamente Israel e Edom. Propõe-se, por exemplo, que Cos suplantou Yahvé como deus tutelar dos Edomeus, quando este último se tornou a divindade do povo de Israel. Em alternativa, diz-se que talvez Yahvé e Cos sejam apenas dois nomes de uma mesma divindade. Estas são, porém, tentativas pouco convincentes e, provavelmente, falaciosas de argumentar ex silentio.
Uma outra via, não menos problemática, explora um dado a que já nos referimos no terceiro capítulo do livro, aquando da discussão dos diversos grupos referidos nas chamadas cartas de El Amarna. Os Shasu, grupo étnico que habitava ou deambulava pela mesma zona onde veio a surgir Edom, a sudeste do Mar Morto, são associados pelos egípcios a, entre outros, um lugar chamado “Yahu” (ou “Yhw”). Assumindo que se trata da transcrição do nome da que viria a tornar-se a divindade tutelar de Israel (Yahvé), certos investigadores postulam ou que os Shasu são os antepassados do povo de Israel e a razão do seu “Yahvismo”, ou que, pelo menos, alguns elementos deste grupo estiveram na génese do povo que os textos egípcios identificam como “Israel” e introduziram-no à veneração de um deus chamado Yahvé, que, a seu tempo, se tornou a divindade tutelar.
Na discussão da teoria de que “Israel” vem dos Shasu, já mostrámos certa reticência em aceitar que se funda (ou confunda!) aquilo que as inscrições egípcias parecem claramente distinguir: o “Israel” da estela de Merneptá não é apresentado como um grupo ou subgrupo de Shasu. A esta podem-se juntar outras objeções. É metodologicamente prudente transitar da “toponímia” (“Yahu”) para a “teologia” (Yahvé), sem mais considerações? Mesmo admitindo uma certa homonomia, não é possível descartar, neste caso, que se trate de uma mera coincidência. Aliás, esta possibilidade vê-se fortalecida pelo silêncio atrás referido a respeito de uma hipotética veneração edomita de um deus chamado Yahvé. As fontes egípcias associam os Shasu diretamente com Seir/Edom e é bastante consensual assumir-se que os primeiros desempenharam um papel na constituição do segundo como entidade étnica na transição da Idade do Bronze para a Idade do Ferro. Ora, os Shasu não parecem ter transmitido o seu suposto “Yahvismo” aos Edomeus. Alegar que as diferentes tribos ou clãs de Shasu veneravam deuses diferentes, e que, por isso, os Shasu na origem do Israel da História seriam “Yahvistas” mas os que estiveram na génese de Edom não, é simplesmente uma forma de ignorar a questão.
Chegados a este ponto, a única alternativa a renunciar totalmente ao inquérito é aceitar postular uma hipótese menos concreta e, em grande medida, inverificável. Que Yahvé não foi a divindade tutelar original de um povo cujo nome próprio aponta para El (“Isra-el”) parece ser um dado sólido. Também há razões suficientes para assumir que Yahvé não é um deus autóctone de Canaã (um deus cananeu como Baal) e que é ao sul/ sudeste deste território que a memória bíblica localiza as suas origens. Finalmente, tem estado implícito na nossa discussão, mas convém recordá-lo, esta divindade de perfil guerreiro parece estar intimamente associada à vitória contra o Egito e à libertação da opressão (veja-se, por exemplo, Ex 15,1-18). É possível postular que o culto de Yahvé tenha entrado em Israel pela mão do mesmo grupo de ex-escravos (?) que trouxe consigo a memória de uma extraordinária libertação do Egito? Como se disse, esta é só uma das formas possíveis, porventura a mais difundida, de responder à pergunta acerca do substrato histórico do Êxodo. Se tal fosse o caso, talvez aquele grupo de hipotéticos ex-escravos tivesse entrado em contato com Yahvé no decurso da fuga através do deserto a caminho de Canaã junto de um povo ou grupo social do qual não nos chegaram senão ecos distantes em personagens como Jetro, o sogro de Moisés. Tendo, em seguida, atribuído a sua salvação a esta “nova” divindade, este grupo teria sido o “motor”, já em Canaã, do tal processo de suplantação do deus tutelar original de Israel.
Obviamente, também este cenário não é senão mais uma tentativa, não menos especulativa que as anteriores, de resolver o difícil enigma que se coloca aos historiadores do Israel Antigo. Resta reconhecer os limites do que podemos saber, pelo menos por agora, e afirmar aquilo sobre que temos maior certeza. A saber, que, independentemente do “quando” e do “como”, o processo pelo qual Yahvé se tornou o deus tutelar do povo de Israel já se mostrava relativamente consolidado na transição para o primeiro milénio, quando se começa a anunciar a emergência do que viriam a ser os dois “reinos-irmãos” de Israel, ao norte, e de Judá, ao sul.
Quando Yahvé se tornou legislador
O livro do Êxodo contém, nos capítulos 20 a 23, aquele que é considerado o mais antigo código de leis da Bíblia, o chamado “código da aliança” (Ex 20,22-23,19). Revelado a Moisés durante a teofania de Yahvé no Sinai (Ex 19,16-25; 24,9-18), o “código da aliança” é precedido por um decálogo de natureza mais sapiencial que legal – os famosos “dez mandamentos” (Ex 20,1-21) – e prepara a celebração da aliança entre Yahvé e o povo (Ex 24,1-8). O código em Êxodo 20-23 incluiu prescrições rituais (Ex 20,23-26; 23,14-19), mas é sobretudo constituído por leis de cariz civil ou social, formuladas de forma casuística.
Do ponto de vista da datação, a larga maioria dos exegetas considera que o “código da aliança” (pelo menos, o seu núcleo primitivo) é anterior aos outros dois códigos contidos no Pentateuco, o “código da santidade” (Lv 17–26) e o “código deuteronomista” (Dt 12-26). Propor uma data mais concreta é, contudo, um exercício mais difícil. Gerou-se, a dada altura, um certo consenso à volta de uma datação no século VIII a. C., mas, nos últimos anos, multiplicaram-se as objeções também a esta proposta e, hoje em dia, o mais prudente é afirmar simplesmente que, com toda a probabilidade, o “código da aliança” foi escrito na primeira metade do primeiro milénio a. C. Do ponto de vista do conteúdo, as leis civis ou sociais do “código da aliança” não são particularmente “originais”. Por exemplo, em Ex 21,28-32, inclui-se um conjunto de leis sobre como proceder no caso de um boi que tenha investido contra um homem ou mulher, causando-lhes a morte. Prescreve-se o apedrejamento do boi e a absolvição do proprietário, caso seja a primeira vez que sucede (Ex 21,28), mas impõe-se a pena de morte também ao dono, caso já tivesse sido avisado anteriormente do comportamento violento do animal (Ex 21,29). O castigo será menos severo, contudo, se a vítima for um escravo ou uma escrava: nesse caso, além de perder o animal, o dono pagará trinta siclos de prata, mas será poupado (Ex 21,32). Ora, esta lei tem paralelos em vários códigos do Antigo Próximo Oriente, nomeadamente no famoso código de Hamurabi, datado do século XVIII a. C., e inscrito sobre a estela hoje em exposição no Museu do Louvre, em Paris. Nos parágrafos 250-252, preveem-se os mesmo casos que em Ex 21,28-32, oferecendo-se, contudo, sentenças menos drásticas: as penalizações são todas monetárias e aplicam-se unicamente em caso de negligência (quando o dono já sabia que o boi era violento).
Este e muitos outros casos de correspondência estreita entre Êxodo 20-23 e a tradição legal da Mesopotâmia levaram os investigadores a concluir que, muito provavelmente, as leis contidas no “código da aliança” são ou uma revisão/adaptação de códigos legais já existentes, entre eles o do rei Hamurabi (que continuou a ser copiado e transmitido durante o primeiro milénio a. C.), ou simplesmente a expressão local de uma tradição legal que lança as suas raízes na cultura da zona oriental do Antigo Próximo Oriente.
Se as leis não são particularmente “originais”, o quadro teológico do “código da aliança” constitui uma verdadeira inovação. Ainda que isso possa constituir uma surpresa para muitos leitores, no Antigo Próximo Oriente, cabia ao rei e não à divindade legislar. Por exemplo, no prólogo do código de Hamurabi, o rei declara que os deuses Anu e Enlil o elegeram para “estabelecer a justiça sobre a terra… e erguer-se como Samas [o deus sol] sobre a humanidade e iluminar a terra”. Ou seja, ainda que sejam os deuses a ordenar e inspirar a tarefa, é ao rei que cabe legislar: as leis contidas no código são leis reais, não divinas. No caso do “código da aliança” (e também dos outros dois códigos contidos no Pentateuco), o legislador é a divindade. Yahvé manda Moisés comunicar ao povo as leis que ele mesmo prescreve (Ex 20,22; 21,1). Ainda que se fale de “Lei de Moisés”, o herói do Êxodo é tão-só um intermediário: as leis são de origem divina. Esta inovação literária e teológica distingue Êxodo 20–23 (e também Lv 17-26 e Dt 12-26) de todos os outros códigos do Antigo Próximo Oriente que chegaram até nós e está na origem do próprio conceito de lei divina ou lei revelada na tradição jurídica ocidental.
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