Diário de um pai em casa. Dia 46


Campo de Ourique é um bairro histórico da cidade de Lisboa. É um local de coabitação, desde de memórias recuadas, entre operários e burguesias. Velhos e novos. Artistas, boémios e mundo empresarial. Pais que aqui viveram, que agora são avôs dos netos que também cá moram. Sempre foi essa a sua alma. E a génese do seu crescimento.

Hoje, Campo de Ourique, onde moro, vive rendido a modas e a preferências francesas, uma população migrante que parece desconhecer a história de um passado que mostrava, a olho nu, nas suas fronteiras, um gigantesco supermercado da droga à distância de um palmo do pulmão do bairro.

Descrevendo, é um local de romarias em busca de uma pausa à mesa nos cafés ou na vasta oferta de restauração, seja ela mais tradicional ou mais gourmet. De uma passagem por antigas casas de pasto, que desapareceram, e cubículos de provadores de vinhos e queijos. Ou um lugar em que um mercado concentra, em si mesmo, peixe, carne, frutas, produtos das hortas, copos e música.

As retilíneas ruas são polvilhadas por gente que deambula entre as lojas de criança, comércio de rua, retrosarias, drogarias, eletricistas, canalizações, bricolages e sapatarias. Bandos que se enfileiram à porta de padarias em cada esquina, tantas como cabeleireiros, barbeiros, esteticistas, manicures e institutos de beleza.

Território de oficinas, estúdios de artes, papelarias e locais de venda de raspadinhas e passes sociais, de livrarias e alfarrabistas que foram resistindo. De farmácias. Cada qual no seu canto. De supermercados que coabitam, no mesmo território, em concorrência feroz numa 5ª Avenida do pacote de leite, papel higiénico e muito mais.

De um cinema que virou um prédio com uma biblioteca para todos e um cemitério que é a última paragem de um elétrico chamado 28, carregado de turistas.

E, no coração, um jardim de parada de quartéis, transformado na alma matter de várias gerações, que, mais não é, se não um espelho que revela a essência do bairro. É aqui que se joga “à batota”, aos pés do coreto e debaixo do olhar da estátua da Maria da Fonte que vigia, a curta distância, um quiosque que alimenta a vida de uma juventude, o lago dos patos e o jardim das crianças.

Durante o Estado de Emergência, o bairro foi-se esvaziando na sua alma. Da sua natureza. E de gente. Os turistas já não pararam no cemitério dos Prazeres. Os mais novos foram resguardando-se. Os mais velhos, teimavam em ir “só ali à farmácia” ou “aqui à padaria”. Franceses, deixei de os ouvir. Só se faziam notar no barulho das obras dos prédios que recuperam. E, aqueles que já não via desde os anos 80 e 90, voltaram a passear-se por aqui, procurando ajuda para contrariar a vida que deu uma volta e atirou-os, outra vez, para a rua.

Durante estes longos dias da nossa vida, fui para fora cá dentro. O bairro do qual estava a ficar saturado devolveu-me a paz de espírito que, egoisticamente, necessitava. E fez-me lembrar que não necessito sair daqui. Porque aqui tenho tudo. Embora muito tivesse estado fechado. Tenho um hotel para uma noite de núpcias ou uma faculdade para os meus filhos depois de concluída a escola que fazem neste perímetro. Tudo. Sim. Até a presidência do Conselho de Ministros. Repito. Tudo. Menos um hospital que se foi com a Troika.

Durante esta hibernação imposta, um parêntesis manteve a esperança de muitas famílias. Falo da tal 5ª avenida que reúne padarias, farmácia, três supermercados, que tem ligação ao mercado do peixe, da carne e da churrasqueira e que está a um risco de distância do Jardim Teófilo Braga (Jardim da Parada). Um eixo que foi o ventilador que manteve o bairro a respirar.

Pouco a mim, mas sim pela “mãe do Totti” (referência ao meu filho António), aquando do levantamento da encomenda de peixe, não se queixou dos tempos recentes. “Nunca tive tanto trabalho”, suspirou. Duas bancas ao lado, o “Talho do Nuno”, avia tudo e mais alguma coisa se houvesse para aviar. O negócio, manteve-se em tempo de quarentena. Cresceu. No meio da carne e do peixe, continuou-se a virar frangos com a fila a não mexer um milímetro entre o AC e o DC. Antes da covid-19 e durante a covid-19. Veremos como será depois.

O Ricardo da Farmácia “Porfírio”, de máscara há tanto tempo que se o vir sem ela temo não o reconhecer, continuou a rir-se (embora sem se ver) para os clientes habituais que procuraram, em fila indiana, na rua, um simples Brúfen.

A pastelaria “Aloma”, campeã de vendas do melhor pastel de nata de Lisboa, agarrou-se ao “pão nosso”. Foi a reinvenção encontrada para manter-se à tona de água sem os magotes de turistas e “outsiders” do bairro que ali desaguam para comprar meia ou uma dúzia do pastel que se internacionalizou com a anterior crise.

Mais a norte, a papelaria do “Sonho da Teresa”, valeu-se da clientela fixa que ali compra o jornal e o tabaco. Esse mesma fidelização que parece ter abandonado a raspadinha (que tal como o Euromilhões, Placard, que só tem a Liga Bielorrussa, caiu a pique).

E, na “Padaria da Esquina”, as meninas de máscara e luvas não tiveram mãos a medir para as encomendas de pão. Daqueles, caros e bons.

Mas muita coisa parou. Ficou suspensa. Muitos negócios, acima de tudo familiares, ficaram à espera. Muitos dias de ruas vazias. De montras tapadas a anunciar promoções que ficaram por vender e com cartazes a anunciar novos dias.

Durante essas milhares de horas, as mesas dos variadíssimos restaurantes não tiveram marcação. Dias a fim em que o eletricista não vendeu tomadas. O sapateiro não engraxou. A lavandaria que, embora de portas abertas viu pouca gente entrar. Há tempo para por a roupa a lavar e a secar. Ou a drogaria, que se manteve com ligação para a rua, mas que tem, na porta dos fundos, a especulação imobiliária como rosto da outra luta pela sobrevivência. E é já seguir.

Esta aldeia dentro da cidade, prepara-se, agora, tal como qualquer rua em Portugal, para o regresso a um mundo novo. Não à normalidade, porque não sabemos que anormalidade estará à nossa espera a partir de 3 de maio.

Em vésperas do feriado 1 de maio e de levantamento do Estado de Emergência, o bairro de campo de Ourique, com quem estou quase a fazer as bodas de prata de residência oficial (e que, desde meados dos anos 80, tinha uma casa reservada para a minha velhice, que vendi na anterior crise), parecia hoje a representação metafórica de uma primavera. Ou de um iceberg que começa, não a desmoronar-se, mas a multiplicar-se.

Com o aproximar da luz ao fundo de um túnel, registei, na milésima volta pelo bairro, ao lento despertar daqueles que estiveram vetados à hibernação forçada. O movimento nas cargas e descargas anuncia que o comércio de rua vai abrir portas.

Vi velhos, ou “maiores de idade”, como, e bem, tratam em Espanha, no jardim à espera de novidades da abertura das mesas de longas conversas e eternos jogos. A livraria “Ler”, que manteve um postigo aberto aos leitores, abanou o negócio alguns dias e espera agora dias melhores. Dei uma ajuda. Comprei “Homo Deus”, de Noah Harari, um pensador que acompanho, através das suas intervenções nos media. Tenho o livro, fresquinho, para juntar a “21 lições para o século XXI”.

O café “Doce Glaciar”, onde tomo a “bica” servida pelo senhor Afonso, uma cafeína acompanhada de conversa de futebol, abriu-me o apetite da esperança. “Se não deixarem abrir na 2ª feira, venho para aqui preparar isto”, disse-me, antes do anúncio feito do novo calendário, depois de, ele mesmo, ter-se eclipsado daqui. Estava em limpezas. Faz-me falta esta dupla rotina.

Passei ao lado da biblioteca que tem no alto do prédio uma escultura em alto-relevo da princesa Europa (raptada pelo deus grego Zeus), quase como estivesse a marcar lugar, a partir de segunda-feira. Não creio que seja necessário. Fui levado pelo impulso do passado mês de março.

E, por fim, “choquei” com o cauteleiro do meu bairro. O José “cauteleiro”. O homem que há “42 anos” distribui a sorte grande. Dá aos outros, mas não a teve durante os três Estados de Emergência. “Ganho 10% de cada cautela vendida”. Ora não vendeu nenhuma desde de meados de março, o que significa que 10% de nada, é nada.

Aos 63 anos de vida, “espero que dia 18 vá tudo para a frente”. Está habituado a contratempos na sua vida. E a não a vidas que poderiam ter sido outras. Recorda, o dia que “Osvaldo Silva pediu-me a cédula e que me apresentasse nos treinos do Sporting, depois de ter feito uns testes”. Acabou na estiva, pela mão do pai. Que era estivador.