A pandemia está a fazer um ano, mas as marcas que o vírus deixa nos adultos e crianças que infeta podem durar mais do que isso e até tornar-se crónicas. Algumas são já visíveis nos raio-x, mas ainda pouco se sabe quanto a efeitos a longo prazo.
As estatísticas indicam que cerca de 50% da população acabe por ter sequelas. Nas crianças e adolescentes, a doença é mais rara, e as sequelas também são menos frequentes, mas ainda assim deixam marca.
Maria João Brito, diretora da unidade de infecciologia do Hospital Dona Estefânia, explicou à Lusa que as alterações no corpo só estabilizam “seis, nove ou 12 meses após ter ocorrido a doença”.
“Só nessa altura podemos avaliar”, disse.
Em entrevista à agência Lusa, a especialista explicou que nas quase 800 crianças e adolescentes que a Estefânia recebeu com covid-19 — cerca de 240 precisaram de internamento –, há dois tipos de sequelas: as orgânicas, como os problemas respiratórios ou cardiovasculares, e as inorgânicas, como a ansiedade, a depressão e até a obesidade.
Como exemplo, Maria João Brito aponta o caso das crianças que estiveram internadas com pneumonias complicadas, que irão todas “fazer provas de função respiratória”.
Mas até para isso é preciso esperar. “Essa provas só terão valor feitas seis a nove meses depois da doença”, explica.
Além das sequelas respiratórias, a especialista indicou também as que têm que ver com a parte cardíaca, por exemplo, em crianças que tiveram inflamação no músculo do coração. Cerca de 20 estão a ser acompanhadas através de um protocolo feito com a cardiologia pediátrica do Hospital de Santa Marta.
Ecocardiogramas e ressonâncias ao coração, feitas numa fase posterior, são alguns dos exames que ajudam a perceber as marcas deixadas pelo Sars-Cov-2. E são repetidos três, seis ou nove meses depois, dependendo dos casos.
“Algumas crianças, que fizeram miocardites, ficam como que com cicatrizes no coração e deixam de poder fazer a sua atividade física normal, como correr ou jogar futebol”, explicou.
Conceição Trigo, da cardiologia pediátrica do Hospital de Santa Marta, disse à Lusa que as sequelas da parte cardíaca estão ainda em estudo, mas lembrou que “a maior parte das crianças têm um percurso relativamente benigno da doença”.
“De facto, durante a fase aguda da covid pode haver lesão direta das células cardíacas”, afirmou a cardiologista pediátrica, que no corredor colorido pelos alunos do Instituto de Artes e Ofícios da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, com o apoio da Fundação do Gil, falou ainda num “quadro inflamatório que pode ocorrer após a infeção”, mesmo que os doentes não tenham tido sintomas na fase aguda da doença.
Chama-se síndrome inflamatória multissistémica, “envolve vários órgãos” e, quando atinge o coração, também resulta na “inflamação do miocárdio”, explica.
A médica contou que a evolução destes casos é muito variável e que tudo depende da gravidade inicial da doença. No caso de Francisco, o primeiro adolescente em Portugal a apresentar esta síndrome inflamatória multissistémica, o desfecho foi feliz, mas o susto para os pais e irmã foi enorme.
À Lusa, a mãe de Francisco, Madalena, disse que foi surpreendida pela doença do filho, que sempre tinha sido uma criança saudável: “Nem me lembrava da última vez que ele tinha ficado doente.”
Foi em abril de 2020, quase um mês depois de a mãe ter estado infetada, que Francisco acordou com febre alta. Como não passava, a mãe levou-o ao Hospital Dona Estefânia, onde lhe fizeram diversos exames. Foi nas análises ao sangue que “perceberam que havia um foco grande de infeção”.
Ficou logo internado, a 23 de abril, e os médicos “iam tentando perceber o que tinha”, contou a mãe. Os cinco testes covid-19 deram negativo. Só mais tarde o teste serológico identificou o novo coronavírus através dos anticorpos no organismo da criança.
“No dia 25 de abril – nunca mais de hei de esquecer esta data – ele estava muito apático”, relatou Madalena, explicando que só nessa altura, depois de Francisco se queixar de uma “impressão no peito”, é que os exames começaram a mostrar valores preocupantes e revelaram uma pneumonia bilateral.
A partir dessa altura, “começou a inflamar tudo”, desenvolveu miocardite, pancreatite e foi para os cuidados intensivos.
“Lá dentro foi um terror. Eu via nos olhos deles, todos mascarados, que estavam à nora. Foi muito assustador”, desabafou. Só depois de três dias de coma induzido é que Francisco, na altura com 13 anos, começou a melhorar.
Esteve internado cerca de 20 dias, perdeu 10 quilos e, como não podia fazer exercício com impacto ou esforço cardíaco — proibição que se mantém até hoje –, Francisco fez Pilates para recuperar.
Madalena disse que o desconhecimento foi o que mais a assustou no caso do seu filho, ainda hoje a ser seguido na Estefânia.
Além das sequelas que se veem nos exames de imagem do hospital, há as outras, que não se veem, mas se sentem, como a ansiedade e a depressão.
“Percebemos que as pessoas que têm esta doença podem vir a adquirir ansiedade ou ficar deprimidas. Isto nunca acontece com as crianças mais pequeninas (…), mas nos adolescentes constatámos que, mesmo depois da doença, havia uma grande carga de ansiedade e que alguns ficavam deprimidos”, conta Maria João Brito.
Alguns jovens têm apoio da pedopsiquiatria e outros são medicados. Durante quanto tempo as sequelas vão permanecer? Ninguém sabe.
“É muito cedo. Há doentes que ainda nem sequer têm os seis meses para avaliar sequelas. Nesta altura ainda temos muito em aberto”, disse.
O vírus instala-se e deixa sequelas, algumas irreversíveis
Mesmo com asma, Ana Cristina subia, devagar, os oito degraus que levam ao rés-do-chão onde mora, nos Olivais, mas depois da covid-19 isso tornou-se mais difícil. O vírus já foi embora, mas a tosse e o cansaço ficaram.
Ana Cristina é uma das muitas doentes pela qual o novo coronavírus passou e deixou marcas. As sequelas podem ser várias, dependendo da gravidade da doença e do estado do doente na altura na infeção.
No caso de Ana Cristina, os 52 anos já carregavam asma crónica e, mais importante, um internamento com coma induzido que durou 10 dias e lhe deixou muitas fragilidades.
“Eu já tinha febre, tosse e falta de ar há uns dias e sentia-me prostrada”, contou à Lusa Ana Cristina, que começou por se dirigir ao Hospital S. José, sendo depois transferida para o Curry Cabral.
“Não estive internada muito tempo no Curry Cabral. Fui internada na terça-feira e saí numa sexta-feira ao fim do dia”, explicou, sublinhando que desde que foi infetada o cansaço não mais a largou: “Se forço um pouquinho a minha vida normal sinto um cansaço que a médica que me deu alta disse que ia permanecer por uns tempos.”
A tosse continua, não tão persistente como quando saiu do hospital, mas conseguiu estabilizar a falta de ar com a medicação que faz diariamente (inaladores) e que fará para sempre.
Ana é seguida por uma especialista no Hospital de Santa Marta, por causa da asma, e já tem programados exames para poder retomar o tratamento experimental que seguia para essa doença crónica.
As sequelas da covid-19, os médicos já lhe disseram que vão “permanecer durante algum tempo”.
“Penso que nem os próprios médicos sabem”. E não sabem mesmo.
Luísa Semedo, a especialista que acompanha Ana Cristina no Hospital de Santa Marta, confessa: “Ainda não sabemos qual a percentagem daqueles [doentes que estiveram internados] que ficam com sequelas.”
“Mas uma coisa é a ideia que temos e outra coisa é fazer um estudo de acompanhamento destes doentes” e ao fim de meses tirar uma conclusão, afirmou Luísa Semedo, sublinhando que a ideia que os especialistas têm é que “uma percentagem significativa” fica com sequelas.
“Isso depois também tem que ver com doentes que têm outras patologias de base, doentes com asma, doentes com DPOC [Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica], doentes com fibrose pulmonar (…). Tudo isso vai condicionar as sequelas com que ficam”, afirmou Luísa Semedo, responsável pelo transplante pulmonar em Santa Marta.
Além dos problemas respiratórios, há os problemas musculares de quem precisa de ficar internado durante muito tempo: “Apesar de fazerem reabilitação quando estão internados, serão doentes que vão ficar com meses” de trabalho pela frente para o Serviço Nacional de Saúde.
Falta de ar, tosse, falta de forças e suor noturno são alguns dos sintomas com que muitos dos doentes ficam. Durante quanto tempo e se são ou não reversíveis “é ainda uma incógnita”.
Contudo, Luísa Semedo disse que os especialistas já estão a verificar que algumas alterações são irreversíveis.
[Susana Oliveira (texto), Pedro Martins (vídeo) e José Sena Goulão (fotos), agência Lusa]
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