Argentina a viver na Europa há mais de 20 anos a CEO da empresa tecnológica Didimo já mal tinha memórias da mulher atlética que subia montagens e se atirava de precipícios. Nunca pensou que a fosse recuperar depois de um jantar aleatório com pessoas que mal conhecia na África do Sul, e hoje entra na maior aventura da sua vida.

Mas voltemos ao início desta história e ao que um grupo de mulheres pode fazer. Verónica sempre foi resistente à ideia do discurso da diferença entre homens e mulheres na tecnologia. E sempre que em entrevistas lhe perguntavam se se sentia diferente respondia não. "Nunca me senti diferente por ser mulher. Tal como um homem acho que se tem uma ideia, e se se quer executá-la põem-se todos os recursos nela. Há desafios que se ultrapassam". Mas o que Verónica desconhecia era "a perceção do que várias mulheres juntas conseguem fazer", no caso dela foi mudar de vida. Tudo começou com um prémio que recebeu da E&Y, o Entrepreneurial Winning Women, cujo objetivo é "juntar mulheres de todo o mundo e durante um ano elas ajudam-se na área que precisarem enquanto CEO de desenvolver, tanto a nível pessoal, como de liderança, de negócio, de tudo... E fazem vários eventos durante o ano."

Foi num destes encontros que esteve pela primeira vez com 20 mulheres na mesma sala, e aí percebeu que se deixou ficar mais "vulnerável e houve maior cumplicidade". Compara esta experiência com o evento Tech Stars, em Londres, do qual fez parte em 2016. "Eram 11 empresas, todos CEO homens menos eu e o nível de intimidade também foi muito forte e foi espetacular. Mas aqui foi diferente no nível de apoio emocional, até porque os problemas são similares."

Se com 20 mulheres a energia foi diferente, com centenas as coisas agigantam-se. E, uma vez por ano, centenas de mulheres das várias edições deste evento juntam-se. O que Verónica não sabia era que o encontro do ano passado na África do Sul ia mudar a sua vida. Mais ao menos 100 mulheres que durante três dias em workshops e diferentes sessões para aprenderem "um pouco de tudo". Mas foi no último dia, no último jantar com um grupo de pessoas que mal conhecia que se decidiu subir o Quilimanjaro. Assim de forma simples. Uma contou que o ia fazer e as outras imediatamente se quiseram juntar.

Verónica Orvalho conta a história como se nem se percebesse do caricato, e perante a nossa estupefação justifica. "Eu acho que há um fator comum quase todas as raparigas que conheci dentro deste programa. Falo por mim, mas há a ideia de que se consegue fazer tudo. Há muita força e uma ideia de não se ter medo de nada que nos leva a fazer o que mais ninguém pensa que pode fazer. Mas todos podem." E esta partilha é tão válida para os negócios como foi para a organizar esta subida: "Pode-se se calhar não chegar ao topo, mas a experiência de subir o Quilimanjaro não é os nove dias que vamos estar a subir, é o percurso que nos levou até lá".

Porque, explica, logo naquele jantar onde só duas pessoas se conheciam notou-se que havia "a mesma forma de pensar, o mesmo espírito, a mesma necessidade de fazer uma coisa por nós próprias". De forma mais pormenorizada, mas não menos romântica explica que depois de Farana Boodhram, fundadora do Forever Farana Coveralls e CEO da MiDesk Global, ter dito que ia subir o Quilimanjaro com a filha, o que realmente espoletou a vontade das convivas foi o facto de essa subida ser para angariar dinheiro para uma causa. "O que nos motivou mais foi o drive de fazer uma coisa complexa para ajudar outro."

Mas não tão motivadas assim para que a ideia começasse imediatamente a ganhar forma. Naquela noite a única coisa que foi criada foi um grupo de WhatsApp. Mas em outubro do ano passado Verónica vê-se cheia de trabalho, "cheia de coisas para solucionar e sem tempo para nada. Senti que o meu oxigénio estava a acabar" e foi como se preparar-se para cumprir aquele objetivo fosse o balão de oxigénio para aguentar o trabalho. É isso que a faz mandar uma mensagem para o grupo a dizer: "Vamos ou não". Em segundos, as respostas sucedem-se: "Sim.", "Sim.", "Sim.". Sete "sim" e depois um "ok, vou marcar uma reunião". E assim num momento de fadiga extrema se começou a criar o enérgico projeto Klimb4Kids.

Verónica acredita que todas as suas, agora, companheiras de subida sentiram aquilo que estava a sentir. "É tanta pressão que temos, que é preciso um desafio ainda maior para que os desafios do dia-a-dia nem existam, sejam simplesmente coisas".

créditos: 24

A subida por elas e pelos outros

A subida começa hoje, Verónica, oito mulheres e um homem a quem insiste chamar um "homem corajoso" começam este sábado a subir os 5.895 metros do Quilimanjaro. Metro a metro, o objetivo de todos é angariar dinheiro para a MiDesk Global Africa, LIFT Ireland e ACAS Argentina.

Conta que todas são apaixonadas pela educação, e que no momento de escolher as associações não houve dúvidas: Verónica escolheu a ACAS fundada pela sua tia e que constrói escolas e forma professores em sítios de fronteira na Argentina. Depois, a Lift que promove o empreendedorismo em crianças pequenas no Reino Unido. E, claro, a MiDesk Global Africa, que pertence à impulsionadora mor da expedição, Farana. A associação criou uma mala que se transforma em mesa, cadeira e luz solar para as crianças da África do Sul poderem estudar mesmo sem infraestruturas.

Neste momento têm 25 mil euros e esperam chegar aos 60 mil, ao longo do percurso que prometem ir partilhando nas redes sociais. Mas se todos sobem com o objetivo de uma "educação mais justa e acessível." Cada um tem os seus. No caso de Verónica, o objetivo é "voltar a reencontrar a minha própria identidade, porque há 20 anos antes de vir para a Europa eu fiz a Patagónia durante 26 dias, subi montanhas, fui instrutora de ski, saltei de precipícios, fiz backcountry... Isto fazia parte do meu dia-a-dia e, de repente, fiquei tão imersa numa realidade que eu adoro, mas que fez com que grande parte de mim se perdesse no caminho."

Mais do que pela experiência, parte em busca da Verónica "completamente livre de mente, de espírito e de corpo", de quem diz sentir muita falta. E acredita que só a preparação foi suficiente para a reencontrar, porque "o que importa não são os nossos valores, mas as ações que tomamos para executar esses valores."

É que desengane-se quem está a pensar num grupo de mulheres altamente em forma. Quer dizer, agora esse é o caso, mas no dia em que a ideia foi desenhada estavam longe disso. "Isto começou em outubro e até hoje perdi 12 kg, deixei de beber alcool, deixei comer acúcar e farinhas brancas. Basicamente, pus-me em primeiro para poder atingir um objetivo."

Conta que passou de nunca ter ido a um ginásio para ir ao ginásio todos os dias. " Visitei mais ginásios em não sei quantos países nos últimos meses do que em toda a minha vida". E continua a dar exemplos de como a sua vida mudou, "acordar às 6h30 da manhã para treinar estava fora do que eu pensava que eram as minhas capacidades, e consegui. E isso fez-me ser melhor mãe, melhor profissional, melhor líder na minha empresa."

Obstinada, ouvia os mais próximos a dizer que estava maluca e que aquilo não fazia sentido. "Aí eu pensava, quanto mais disserem isso mais eu vou fazer. Não me podem dizer que eu não posso." E garante que as nove pessoas com quem vai subir "têm a mesma filosofia, a força que te dá um grupo é incrível, todos os dias há mensagens no nosso WhatsApp com as nossas imagens e videos: todos a suar, a conseguir fazer o treino".

Verónica conversou com o SAPO24 um mês antes da subida e na altura não sabia como seria passar por esta provação com este grupo de pessoas, mas sabia que o rastilho que estão a criar é o suficiente para que tudo corra bem. Conta que com esta prova semearam uma semente de mudança, a começar pelo segunda edição do evento onde a ideia teve início, e que este ano foi na Turquia. Desde o primeiro dia começou a impulsionar todas as participantes para que se encontrassem às 6h30 na recepção para caminhar. Se no primeiro dia eram 4 ou 5, no último apareceram 20 para caminhar 14km pelo Bósforo de Istambul. "Todas a apoiar o que nós começámos a fazer. Fomos inclusive chamadas ao palco a meio do evento para partilhar o que estamos a fazer".

E mesmo que este apoio não mova montanhas, é o maior combustível para conseguirem subir a montanha. Verónica emociona-se quando fala do apoio e das pessoas aleatórias que têm conseguido mover. Conta que, por exemplo, há pouco tempo foi convidada para falar em Dublin num painel do evento "Invest her", e que mesmo o facto de coincidir com os dias da subida não fez com que desistissem do convite. "Perguntaram-me se conseguia ter um bocado de conexão de rede no Quilimanjaro para fazer uma videochamada. Querem-me em direto num evento de 300 pessoas só para explicar que tudo começa com tomarmos uma decisão."

créditos: AFP; ROBERTO SCHMIDT

O que mudou mesmo antes de sair de Portugal

Verónica traça uma imagem muito simples do que acontece no momento em que está a treinar, tão nítida que até parece fácil fazer este percurso. "Durante uma a duas horas por dia eu desligo completamente. É como se o meu cérebro ficasse limpo e com mais espaço. Porque quando se passa duas horas no ginásio nem que eu quisesse pensar em como solucionar um problema, conseguia."

Explica que mesmo saindo fisicamente cansada sai limpa, e que aos 47 anos sente-se com 18 "sem medo de nada". "É  como que se o meu cérebro tivesse começado a oxigenar e de repente tenho mais espaço e consigo ir do ponto A ao B mais rápido, não há ruído".

Compara a sensação de sair dos treinos à que já tinha quando uma vez por semana dava um mergulho no mar frio da foz do Porto. "Ficamos viciados porque gera uma adrenalina, uma energia e uma força que nos ajuda a não ver as coisas de forma negativa".

Tanto em casa com os filhos, como no trabalho a vida de Verónica já mudou. Em casa, os filhos motivam-na a treinar, no trabalho "agora que tenho menos tempo não me deixo enrolar em coisas que não valem a pena." E resume, "não tenho energia discutir problemas que não interessam". Confessa que já era "ultra-optimista" e que depois destes treinos ninguém a pára.

Partilha que esta caminhada a ensinou a tomar decisões mais rápidas, a tomar micro-decisões em vez de esperar por resultados. Questionada sobre o que teria sido diferente na sua vida se tivesse decidido subir o Quilimanjaro mais cedo, acredita que "teria sido mais assertiva em momentos em que não fui. Agora aprendi a dizer que não mais rápido. Tinha sido mais rápida a focar nas coisas que realmente têm valor para mim, e não teria deixado de fazer nada por medo dos que os outros pensam".

créditos: TANYA WILLMER / AFP

Da mesa ao Quilimanjaro

O optimismo, a emoção e a força de vontade de Verónica são inspiradores, mas não o suficiente para que a CEO pudesse saltar da mesa daquele restaurante para este desafio. Foi com a ajuda de uma treinadora especializada neste tipo de objetivos que passou a treinar todos os dias, simulando o máximo possível o ambiente do Quilimanjaro.

Mas como vive no Porto a realidade que vai encontrar não podia ser mais diferente, portanto foi na máquina de escadas do ginásio com a inclinação no máximo que passou mais tempo. Depois combinou isso com muitos exercícios de equilíbrio, pernas e glúteos.

E se nesta conversa nada parecia assustar Verónica, é quando perguntamos pelos treinos da respiração que a voz muda. O corpo e os músculos estão preparados, mas "a respiração é a parte que não se consegue treinar muito". Confessa que isso a assusta, "dá-me um bocado de medo não conseguir adaptar-me à altitude porque isso depende do corpo de cada um e eu não conheço o meu corpo acima dos 4 mil metros. Eu fazia muito ski, mas só a 3 mil metros, e nunca tive problemas".

As preocupações vêm seguidas das soluções, sem dar tempo a que mais nada se meta no meio ou, até, que estas comecem a aumentar: "Lá vai ter que ser caminhar muito, muito devagar, e beber muitíssima água. Depois vou ter  todos os suplementos de proteínas e de minerais para pôr na água. A respiração é só ir mais devagar, há duas alternativas: ou tomo antes uma medicação que esconde os sintomas da altitude, ou decido lá se a tomo à medida que vou tendo os sintomas. Vamos ter um médico connosco que decide se podemos continuar ou não. Nós escolhemos ir sem oxigénio, mas ele leva e decide quando precisamos."

Este médico faz parte da expedição que o grupo escolheu a dedo, de forma a que com o valor da subida pudessem também apoiar instituições locais na Tanzania. A expedição custou 4500 dólares por pessoa, mais os bilhetes de avião e mais tudo o que se gastou para ter o guia. Mas até aqui isto foi pensado. "Eu sei que há expedições que custam muito menos. Entrevistámos muitas, mas alinhámos com esta pela missão que eles têm de retribuir e também pela pela qualidade das pessoas".

Pessoas essas que a vão acompanhar na subida, que diz que é o mais importante, embora confesse que irá ficar triste se não chegar ao fim. Mas mesmo que no fim não possa dizer que chegou ao cume, descansa-a poder dizer que tentou junto de pessoas que se tornaram suas amigas.