Ambos historiadores especializados em história imperial e colonial, José Pedro Monteiro, investigador no Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra, e Miguel Bandeira Jerónimo, Professor Associado em História na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, já colaboram em artigos e livros desde 2013. Em finais de 2017, porém, decidiram-se lançar num projeto diferente de tudo o que já tinham experimentado.

Os dois empreenderam na tarefa de sair das paredes da academia e criar um projeto em colaboração com o jornal Público: publicar 12 ensaios — com 12 entrevistas a investigadores internacionais a acompanhá-los — que se centrassem em temas da História que tivessem de alguma forma impacto na atualidade, desde a origem das chamadas “fake news” — que, demonstram, é um fenómeno mais antigo do que parece — às políticas do medo e das suas instrumentalizações ou ao impacto que o colonialismo deixou até aos dias de hoje.

Desta iniciativa resultou “Histórias do Presente - Os Mundos que o Passado nos Deixou”, livro editado no início de 2020 pela Tinta-da-China, numa versão aumentada e revista desse projeto de investigação, e que, já em 2021 foi adicionado ao “Plano Nacional de Leitura”.

O projeto serviu vários propósitos. Um deles foi o de retirá-los da sua zona de conforto ao confrontá-los com temas que não dominavam. Houve “uma admissão imediata de que isto seria uma viagem de auto-descoberta, de reconhecimento da nossa ignorância, de uma espécie de humildade imposta relativamente à nossa capacidade para compreender um determinado conjunto de aspetos e processos”, dirá às tantas Miguel Bandeira Jerónimo durante a entrevista tida por videochamada.

Outro, no entanto, que se reveste de maior importância, é de que não é suposto recorrer à História para procurar soluções imediatas para problemas do presente, pois esta é complexa e muda consoante as descobertas que se vão fazendo e as teses que se vão escrevendo. Por essa mesma razão, muito menos se deve “fetichizá-la” de forma a torná-la uma “fonte de orgulho e de coesão nacional”, adverte José Pedro Monteiro, ou olhar para ela através de um prisma do que é “bom” ou “mau”, acrescenta o seu colega.

Há, no entanto, uma indústria, alimentada pela comunicação social, de pessoas dispostas a vestir o papel de grandes explicadores da nação, mesmo quando não têm o conhecimento para tal, que tende a fazer “simplificações grosseiras” da História, dirá ainda Miguel Bandeira Jerónimo.

Com este livro, ambos tentaram “complexificar a forma como pensamos o passado, porque isso nos ajuda a pensar de uma forma mais complexa sobre o presente e a ser bastante mais cautelosos com grandes prescrições e afirmações cheias de certezas", sublinhou José Pedro Monteiro durante esta conversa.

Estamos dependentes da espuma dos dias, é terrível. Não há debate democrático e informado que dependa disso.

Apesar do livro se chamar “Histórias do Presente”, uma das mais fortes ideias que este apresenta é de que é insensato, ou até perigoso, tentar extrair lições do passado para tentar explicar o presente e o futuro. Porquê?

José Pedro Monteiro (JPM): Há um problema que me parece evidente e que tem a ver com esta crença que as pessoas têm, celebrada na frase que está no memorial em Auschwitz, de que se não conhecermos o passado, tenderemos a repeti-lo.

Em que sentido?

JPM: As pessoas crêem de tal forma que os acontecimentos tendem a repetir-se que são incapazes de perceber que podem surgir transformações profundamente novas e que não foram percebidas. A quantidade de elementos que podem constituir a causa de um acontecimento, quando olhamos para o passado, são tantos que a tentação de escolher um e achar que, repetindo-se esse processo, o efeito será o mesmo, é uma forma muito pobre de pensar, tanto o passado como o futuro. Não só porque esgota a nossa capacidade analítica, mas sobretudo porque bloqueia a nossa imaginação a vários níveis. Ficamos tão presos a modelos e estamos tão focados num determinado processo, que se calhar não estamos a ver aquilo que é realmente novo. E isso é a História, está permanentemente a fazer-se. Por alguma razão não temos leis, ao contrário das ciências ditas duras.

Histórias do Presente
créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

E em que sentido é que este livro constitui uma mudança em relação a essa mentalidade?

JPM: Nós tentámos fazer uma coisa bastante diferente, porque conhecer o passado por si só já é bastante importante. No entanto, mais do que pegar no passado para dar uma lição, quisemos tentar complexificar a forma como pensamos o passado, porque isso nos ajuda a pensar de uma forma mais complexa sobre o presente e a ser bastante mais cautelosos com grandes prescrições e afirmações cheias de certezas. E é nesse sentido que acho que o nosso trabalho ajuda, como pensar o presente, sabendo que, olhando para o passado, nada se resolve com uma simples explicação. O que tentámos fazer no livro foi tentar pensar, questionando-nos sobre o que tomamos por garantido.

Miguel Bandeira Jerónimo (MBJ): Concordo com praticamente tudo, só acrescentaria que pensar nas lições da História presume algo que é factual, de que há um conhecimento consensual definitivo sobre esse passado que pode ser facilmente processado e extraível para orientar ações e tomadas de decisão no presente. Ora, nada disto funciona assim. Bem sei que o que não falta em Portugal são defensores desse culto. 

Qual foi o vosso objetivo então com este projeto?

MBJ: Um dos nossos grandes objetivos foi mostrar as complexidades do saber histórico por um lado e da História por outro, e tentámos fazer isso de variadas maneiras, através de conexões à escala global, tentando convocar diferentes casos em diferentes momentos no tempo, mas também em diferentes geografias. Por um lado, é claro porque é que recusamos essa fórmula [da simplificação]. Por outro, tivemos alguma preocupação em defender constantemente a contextualização dos temas que abordámos.

JPM:Tem a ver com a forma como a história se relaciona e se conecta nos pontos geograficamente mais díspares do mundo. Como olhando para trás, aquilo que vemos como grandes divisões às vezes demonstram uma similitude muito grande. E num mercado que está saturado das histórias do Salazar, do que ele comeu ao pequeno-almoço ou o rei D. Carlos e não sei que mais, tentámos ir ao detalhe individual — dos psiquiatras na Nigéria aos cortes de cabelo da Coreia — para mostrar que centrarmo-nos apenas na história de Portugal até é ridículo para pensá-la. Isto ajuda-nos também a pensar o presente, porque cada vez vivemos num espaço comum onde as ações de um têm muitas vezes efeitos nos sítios mais improváveis.

Sintetizando, procurar respostas no passado pode ofuscar a nossa procura de respostas no presente. A grande lição da História é que ela nunca é tão simples como se nos apresenta?

MBJ: Sim, e isso já é uma extraordinária lição para que evitemos produzir leituras simplistas sobre o presente. Talvez seja essa a única lição a retirar.

JPM: Se a História é complexa, não há nenhum motivo para o presente não o ser. Se conseguirmos passar essa ideia, já metade do nosso sucesso foi atingido.

MBJ: Com a agravante de que temos mais instrumentos, apesar de tudo, para controlar, domar essa complexidade do passado do que temos para a do presente. Nós procurámos refletir sobre questões centrais do nosso tempo, procurando contribuir para um outro tipo de interrogações, de questionamentos, de preocupações e até de "regras" sobre o modo como o devemos fazer, sem ter como objetivo produzir nem lições, nem grandes argumentos sobre o nosso mundo presente. E o nosso esforço também passou pela escolha dos temas. Procurámos escolher tópicos que não fossem apenas e só relativos a problemas atuais da sociedade portuguesa. Tentámos fugir à dependência que muitos seguem religiosamente do que "está a dar". É algo que me entristece, porque saltamos para um tema numa semana, só falamos naquele assunto, e depois saltamos para outro, mas o problema da semana passada já ninguém vai voltar a lembrar-se dele a não ser que seja útil. Estamos dependentes da espuma dos dias, é terrível. Não há debate democrático e informado que dependa disso. É tudo em cima do joelho, ao sabor do acontecimento e quem sobrevive e floresce, financeiramente inclusive, são o tudólogo e o oportunista. Os nossos debates, qualquer que seja o tópico, estão dominados por esta dinâmica e por estas figuras.

Houve uma espécie de epidemia sobre as lições da epidemia, e de epidemiólogos feitos à pressão.

Pouco depois da publicação deste livro, a pandemia da covid-19 entrou pelas nossas vidas. A forma como se reagiu a esta situação e a procura por respostas de certa forma comprovou os vossos temores quanto à propensão das pessoas em tirar lições da História?

MBJ: Sem dúvida. Este momento que atravessamos tem sido pródigo em tristes acontecimentos. Por um lado, pelo florescimento de especialistas inesperados, que, mais uma vez, falam sem ter o mínimo de noção ou conhecimento do que estão a dizer, invocando a leitura de artigos que eu tenho a certeza de que nem conseguem ler o resumo dado o grau de exigência e especialização necessária para descodificar o que lá está escrito. E, por outro lado, esta tendência para procurar grandes evocações de acontecimentos históricos passados. A quantidade de discursos que começaram a evocar desde a Peste Negra até à Gripe Espanhola, fazendo transposições acríticas para as circunstâncias que hoje nos governam, confirmam algo que encontrámos em muitos dos temas que abordamos neste nosso livro. A necessidade de não perdermos de vista a necessidade de interrogarmos seriamente com tempo, com cautela, dialogando com especialistas vários, mas sobretudo tentar contribuir para um debate público mais sério e que consiga neutralizar a charlatanice que neste, como em muitos outros casos, infelizmente floresce, incluindo no interior da academia.

JPM: Uma das coisas que nos aconteceu a escrever este livro foi sermos constantemente surpreendidos por coisas que desconhecíamos por completo, identificar relações que não tínhamos sequer sonhado. Esse exercício, se contrastado com a assertividade com que vemos pessoas que não dominam os instrumentos básicos da matéria que tratam, que o fazem com uma certeza quase… admirável, convenceu-nos que o caminho para as pessoas aprenderem é o de serem bastante cautelosas. Há afirmações que são feitas sobre a pandemia que eu seria incapaz de fazer sobre processos históricos que estão altamente documentados e que sabemos o que aconteceu tendo acesso a arquivos, por exemplo.

MBJ: E acesso ao tempo disponível para pensá-los, para refletir sobre eles.

JPM: Sabendo tudo isso, sabendo como determinados eventos terminaram, eu não me arriscaria a fazer afirmações como as que vejo feitas com uma frequência enorme na televisão. É curioso que às vezes alguns cientistas sociais são mais taxativos nas afirmações que fazem do que os especialistas de epidemiologia, que dizem "não sei", "há incerteza". Só que isso não rende. Na televisão, ninguém gosta quando alguém diz "olhe desculpe, sobre isso não vou falar, não faço a mínima ideia". Houve uma espécie de epidemia sobre as lições da epidemia, e de epidemiólogos feitos à pressão.

MBJ: O problema é que para uma epidemia, neste momento temos algumas vacinas. Para a outra, não vejo vacina no horizonte, antes pelo contrário. E há outro problema.

Qual?

MBJ: Existe esta ideia de que a ciência é certeza, que tem de ser rapidamente destruída. Esta indignação pelo facto dos cientistas não produzirem respostas imediatas e não responderem ao excelentíssimo pivot de telejornal da forma clara e rápida que ele queria. Há que ensinar que a ciência é sobretudo o erro, a falha, a dúvida e a capacidade de pensar o contrário do que se afirmou no minuto anterior.

A propósito dessa segunda "epidemia" a concorrer com a da Covid-19, recupero uma frase que usam no livro: “Quem precisa de estímulos para a empatia não precisa de historiadores mas de outros profissionais”. Esta necessidade de obter grandes respostas e de haver quem se proponha a dá-las não será um sintoma de que andamos perdidos e que precisamos que alguém nos explique o mundo?

JPM: É evidente que precisamos, mas podemos procurá-las de várias formas. Seguramente vou encontrar imensos livros que explicam todo o processo desde Adão e Eva até à pandemia. Eu não me atreveria a fazer tal. Assumo a minha cobardia, mas esta baseia-se na noção de incomensurabilidade da tarefa. Podia dizer que o que me parece é que, na gestão da pandemia, o ideal seria uma necessidade equilibrada entre, por um lado empatia, com um discurso de segurança, mas ao mesmo tempo informado, rigoroso e que apresentasse os riscos. Claramente, em muitos setores, isso não está na moda. Mas também não estou a ver como a História nos pode querer dar isso. Penso que nos pode dar interrogações, dúvidas... que acho que são aspetos importantes na nossa profissão. Aliás, diria que são centrais.

MBJ: Numa frase, acho que o que precisamos é de individual e coletivamente aprendermos a perdermo-nos melhor. Porque essa ideia de que alguém nos vai indicar o caminho por onde ir é perigosíssima e historicamente nunca produziu bons resultados. Temos de aprender a perdermo-nos com sentido, porque não nos resta outra coisa a não ser embarcar com alguma confiança nessa incerteza. Essa confiança tem de provir de trabalho, investigação, sobretudo ouvir e ler muita gente e fazer um teste de credibilidade. Não devia haver tempo para ler ou ouvir aldrabões.

Tal pressupõe que devemos estar bem apetrechados para seguir esse caminho. No entanto, o vosso discurso a abrir o livro é mais pessimista. Fazem a admissão de que falharam “redondamente” o vosso propósito de “contribuir para uma esfera pública viva, atenta, mas sobretudo mais democrática e inclusiva, e menos desigual”. Tal aponta para uma falência do debate público. Como navegamos essa incerteza quando não somos capazes de discutir as coisas?

MBJ: Há muitas maneiras de pegar nisso que escrevemos. Quero deixar isto muito claro, um dos aspetos mais recompensadores deste nosso trajeto, tanto na série que fizemos no Público como no livro em que a mesma resultou, foi de facto uma admissão imediata de que isto seria uma viagem de auto-descoberta, de reconhecimento da nossa ignorância, de uma espécie de humildade imposta relativamente à nossa capacidade para compreender um determinado conjunto de aspetos e processos. Tínhamos, contudo, o objetivo de que essa viagem pudesse chegar ao fim contribuindo de forma humilde para que, pelo menos, o debate sobre o passado e os seus legados no presente pudesse partir de um reconhecimento de limites, de fragilidades, de incapacidades, e com isso pudéssemos ter outra capacidade de ouvir e de pensar sobre o outro, das suas motivações e conhecimentos. Nesse sentido, num conjunto bastante significativo de tópicos que tratamos neste livro, não vemos muitas mudanças de facto. É inevitável reconhecer que teremos de esperar um pouco mais para que isso suceda.

Houve também consequências positivas a extrair? Se sim, quais?

MBJ: Os diálogos que temos tido com colegas, estudantes, amigos e até pessoas que não conhecíamos sobre este livro e estes textos apontam num bom sentido, de quem leu e quis saber mais, pediram mais bibliografia, contestaram as ideias e refletiram de forma inteligente sobre algumas das coisas que escrevemos e questionaram-nas criticamente. É um pouco ambivalente o resultado. Do ponto de vista de alguém que lê os jornais todos os dias, não sentimos grandes mudanças — e também seria um otimismo um pouco idiota da nossa parte esperar que fossemos capazes de o fazer — mas a verdade é que tivemos outro tipo de retorno, se calhar até bastante mais importante, de que há muita gente com vontade de controlar a sua própria reflexão, não dependendo dos oráculos que pululam nas nossas televisões e nos nossos jornais. Nesse sentido, essa navegação da incerteza, que pelo menos crie espaços para um debate rigoroso, salutar, sem hierarquias impostas, é absolutamente fundamental.

JPM: Como o Miguel disse, há várias interpretações possíveis da nossa frase. Uma delas tem precisamente que ver menos com a satisfação que retirámos da escrita do livro e das interações que fomos tendo depois de o escrevermos, mas também muito com os desenvolvimentos políticos e sociais que verificámos na nossa sociedade desde finais de 2019. Um dos ensaios que mais gozo me deu escrever foi o das políticas do medo, como estas são antigas, despertam o pior que há em cada um de nós, e quando olhamos para o panorama atual — e não precisamos de nos ficar por Portugal — o efeito poderosíssimo desse temor, muitas vezes infundado. As políticas do medo sobre o Outro, sobre o emigrante, sobre o homossexual e o transexual. Tudo o que víamos em relação a isso no final de 2019, e continuamos a ver até com mais expansão na esfera pública, não é propriamente animador. Nesse sentido, falhámos. Desde os boatos estranhos que têm uma longa tradição em relação às comunidades judaicas em França e que depois se replicaram com, por exemplo, as comunidades chinesas em Portugal — as “pessoas que desaparecem” ou os “órgãos que são retirados”. Esse tipo de discurso, mais politizado que politicamente enquadrado, ganhou força nos últimos anos, especialmente entre 2017 e 2020. Sabemos que o nosso contributo para contrariar isso é limitado, mas também é porque não sabemos mais.

MBJ: Mas importa dizer que nunca tivemos a ilusão quando escrevemos os textos para a série que iríamos mudar o que quer que fosse. Essa frase é menos uma frustração sobre aquilo que achámos que íamos atingir e não atingimos — porque sabemos que seria ilusório e deslocado da nossa parte — e mais a noção que, passado um ano de escrevermos a série, quando olhamos para as discussões na sociedade portuguesa sobre os temas, sentimos exatamente a mesma coisa que sentíamos no dia em que começámos o projeto. Isso diz menos sobre a nossa ambição, porque temos plena consciência da nossa irrelevância, mas que sobretudo passado este tempo todo, uma série de problemas graves para a nossa democracia mantém-se. 

José Pedro Monteiro
José Pedro Monteiro créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Apesar da pandemia dominar as atenções durante o ano, houve outros temas a impôr-se na agenda. O racismo foi um deles, ganhando monta quer devido à morte de George Floyd nos EUA, quer devido a casos de cariz nacional, como o homicídio de Bruno Candé. Este é frequentemente um terreno fértil para se fazer um uso instrumentalizado do passado. Qual é a forma mais prudente de abordar estes temas?

JPM: O debate do racismo é um daqueles onde a História entrou de forma poderosíssima e é um processo que não começou com o George Floyd ou o Bruno Candé. Em alguns países tem décadas. Mas todo o debate da questão racial que se desdobra do caso português na questão colonial tem aspetos muito positivos. Temos neste momento novas vozes — tanto na academia, como nos movimentos sociais, em comunidades que historicamente foram sub-representadas — que começaram a participar nesse debate. Isso é importantíssimo e poderoso, não só na compreensão da História, como na vivência e participação democrática da sociedade portuguesa e noutras sociedades. Aí a História pode ter, e tem, um papel fundamental, para legitimar argumentos e reforçar visibilidades, por exemplo. Mas obviamente isso também tem riscos.

Como por exemplo?

JPM: O que se assistiu neste debate também e, de certa maneira, era inevitável que acontecesse, é que o recorrer a simplificações de processos históricos altamente complexos. É muito mais fácil explicar 500 anos a partir de três grandes ideias do que, de facto, olhar para esse período de tempo e ver a sua complexidade. Não estou a dizer que está errado ou certo, é um efeito comunicacional importante, mas comporta muitos riscos para a História. Uma coisa curiosa é que o nosso primeiro ensaio da série é sobre a questão colonial, em que procurámos partilhar as nossas inquietações, e o que vemos desde esse ensaio, de 2017, é que houve muita produção académica importante sobre o império português e não só, sim, mas a proporção em relação à utilização pública do colonialismo enquanto fator explicativo é pálida. 

Porquê?

JPM: O colonialismo passou a ser uma questão que não diria central, mas que aparece sempre em algumas discussões, e claramente a investigação académica não acompanhou a multiplicação desses usos do passado colonial como explicação de tudo e um pouco. Tornou-se para muitas pessoas até uma forma extremamente eficaz de legitimar determinadas posições baseadas numa leitura muito apressada da História.

Enviesada até?

JPM: Seguramente. Uma leitura apressada raramente dá bom resultado. Nesse sentido, quisemos demonstrar neste livro que a formação do mundo contemporâneo não pode ser compreendida ignorando o papel que os impérios coloniais tiveram na sua moldagem, em várias práticas, desde a criação de uma certa ideia de desenvolvimento, seja na formação dos direitos humanos, seja na constituição de uma ordem global. Um dos textos que temos é precisamente sobre a forma como a questão racial modelou essa ordem. Tudo isso são histórias profundamente complexas, com sucessos, derrotas e resultados diferentes para pessoas diferentes. A urgência que eu considero bem-vinda de discutir o racismo e as desigualdades etnico-raciais por vezes tem esse lado de desvalorizar essa história. Para não falar de alguns setores que entendem que alguns aspetos —  que para nós são caros —, como o rigor, o método, são pouco importantes face à urgência da mensagem.

MBJ: Devemos estar satisfeitos por algo que tem marcado os últimos anos, que é o alargamento evidente do conjunto de vozes e perspetivas, de objetivos e de argumentos sobre estas questões na sociedade portuguesa. Nunca como hoje se discutiu tanto e se mobilizaram tantas pessoas e ideias, apesar de muitos ainda não terem o seu devido lugar neste debate. Mas temos de sublinhar que este processo tem revelado manifestações com as quais nos sentimos profundamente desconfortáveis. Há bocado falávamos da epidemia e do florescimento de especialistas, mas é preciso dizer que o que marca estas questões na sociedade portuguesa é a emergência descontrolada de "experts" instantâneos sobre história colonial, sobre colonialismo, sobre a questão do racismo, entre muitas outras. Há uma tendência de multiplicação de uma espécie de especialistas instantâneos sobre estes tópicos e que não são sequer reconhecidos pelos verdadeiros especialistas no tópico, que o estudam há anos e anos, o que também tem acontecido na pandemia. Não se trata de um argumento de autoridade, é só constatar um facto interessante. Mas o problema também está na voragem do "expert..."

Muitas destas pessoas são também os arautos da novidade. Não só são instantâneos, como acham que é por causa da sua chegada que os debates finalmente vão ser tidos como deve ser

Na procura dos próprios meios de comunicação em se socorrer de especialistas?

MBJ: Sim. Às vezes é preciso um "expert" que vá falar, mas ele já foi contactado pelo “jornal A”, então é preciso ir à lista buscar o outro que vem a seguir. É um especialista? Não sabemos mas parece que sim, porque foi falar noutro sítio, portanto deve saber sobre o assunto. E é assim que se criam nomes que, para quem está dentro dos campos, são às vezes irreconhecíveis. Não sabemos quem são essas pessoas. Achamos ótimo que exprimam a sua opinião, sem dúvida nenhuma, mas consideramos muito estranho a segurança e os argumentos de autoridade que usam, isto quando não são mesmo pessoas desvalorizadas ou consideradas risíveis. Agora, juntando a tudo isto, ainda há um outro problema muito pouco saudável para todas estas questões.

Qual é?

MBJ: Muitas destas pessoas são também os arautos da novidade. Não só são instantâneos, como acham que é por causa da sua chegada que os debates finalmente vão ser tidos como deve ser. Em alguns casos chega a ser patético, pessoas que pensam que por ter acordado agora para um conjunto de problemas, estes são novos e, agora sim, estão a ser discutidos. Isso introduz dinâmicas de enviesamento descontrolado, porque como são pessoas que começaram há pouco tempo a refletir sobre o assunto e reproduzem simplificações grosseiras que também elas ganham vida pública. Portanto temos um cocktail explosivo que é o especialista instantâneo, a autoproclamada ideia da originalidade sobre o problema e a simplificação. Isto pode ser muito útil para a promoção de certos indivíduos ou grupos, mas eu tenho muitas dúvidas que de facto conduza ao que é necessário fazer, que é enfrentar de forma objetiva e informada estes problemas e procurar resolvê-los.

No vosso livro, todavia, também recorrem a outros investigadores, para discutir cada um dos temas através de entrevistas. Porquê?

MBJ: Quisemos deixar claro que nós não éramos os especialistas. Alguns tópicos até investigamos, atenção, e até nos pusemos numa condição de subalternidade quando ela até não existe, mas fizemos sempre questão de ter especialistas. Foi a nossa forma de sinalizar que há gente que percebe destas questões e que quisemos dialogar com elas. Procurámos balizar a discussão com o mínimo de credibilidade e rigor.

Uma polémica relativamente recente que de certa maneira exemplifica alguns desses pontos é a moda dos romances históricos e o repúdio da parte de alguns historiadores quanto à sua inexatidão. Mas mesmo com as explicações dos investigadores, há muitas pessoas a tomar o lado daqueles que vocês determinam como "os grandes explicadores". É porque a sua mensagem passa com mais simplicidade? Há dificuldade dos especialistas de chegarem ao público ou é um sintoma de um certo anti-intelectualismo? 

JPM: Eu acompanhei essa discussão um bocado lateralmente, mas o problema é que estamos a falar de registos diferentes e isso também se levanta quanto à questão colonial. Uma das coisas que mais confusão me faz é a ideia de novidade do papel de Portugal na escravatura e no trabalho forçado, como se isso não estivesse mais do que documentado há muitos anos pela historiografia. Falo por mim, escrevi uma tese que toca na questão do trabalho forçado, é o seu objeto mas não o seu propósito principal e tive pessoas a dizer-me "finalmente!". Não, não é verdade. A violência do império colonial português tornou-o famoso em quase todo o mundo no período após a Primeira Guerra Mundial. Quando vou a conferências internacionais, pessoas que não são propriamente especialistas no tema, a primeira coisa que me dizem é "trabalho forçado". Obviamente que é uma simplificação, mas a reputação portuguesa é essa. E depois há outro problema.

Qual?

JPM: É que a novidade vem aliada à desatenção e depois criam-se cânones que não respeitam aqueles que vieram antes, às vezes com riscos pessoais. Há um conjunto de autores portugueses, e também internacionais, que escreveram nos anos 50, 60, 70 sobre o império português e que, para visitá-lo, tiveram de passar por provações e agruras e que depois desaparecem nestes registos das grandes descobertas. Quem se propõe a ser a voz da consciência crítica, muitas vezes faz, mesmo que inadvertidamente, um grande desserviço, às vezes um bocado desrespeitoso, ao estabelecer um cânone que elimina um conjunto de gente que teve um papel fundamental. Isto é perigoso.

Achar que 500 anos se explicam em três frases é patético.

Mas não tocaram no tema da comunicação. Porque é que parece haver uma dificuldade dos historiadores em chegar ao público?

JPM: Há de facto uma confusão que às vezes é inadvertida, mas noutras é deliberada entre o que é o debate sobre a questão colonial na esfera pública e na esfera académica, que facilmente permite este tipo de operação em que aparecem uns mas não outros, em que é dado como novidade o que já está documentado há muito tempo. Isto acontece a vários níveis, desde logo com pessoas que renegam o seu trabalho anterior e agora aparecem apresentando uma opinião completamente divergente e contraditória do que fizeram na sua investigação. Isto é um problema, mas também acho que é incontornável. Em certa medida, tendo a achar que são dores de crescimento, mas desgosta-me um bocado, porque cria binarismos marcados por dois grandes campos opostos, quando, na verdade, ao estudar de forma mais fundamentada e ir aos arquivos, vemos muito mais zonas cinzentas. E isto não tem a ver com a defesa do nosso campo.

Qual é o problema, então?

JPM: É que muitas vezes essas simplificações são contraproducentes. Quando as pessoas acham que pela urgência da frase bombástica, da grande explicação se consegue saber alguma coisa... achar que 500 anos se explicam em três frases é patético. E depois é muito fácil encontrar contradições e exceções. Isso gera fragilidade num argumento que é muito importante para registar não só as desigualdades passadas, mas o seu lastro no presente. A ideia de querer criar uma sociedade mais igual, mais democrática, mais partilhada, perde com essas simplificações, porque não consegue apreender a complexidade do passado na forma como afeta o presente.

MBJ: Nós temos visto na sociedade portuguesa e nos seus debates públicos a importância que falsas equivalências têm tido, os exemplos disso são infinitos. E depois noutros debates usa-se a técnica da falsa oposição: ora não há oposição nenhuma necessária entre o comunicador e o especialista, como se este não fosse por definição alguém que sabe o suficiente sobre o assunto para dever ser obrigado a comunicá-lo de forma rigorosa. Da mesma maneira como alguns comunicadores não só são de um simplismo atroz, como também de uma falta de lógica evidente. Não chamo a isso comunicação, não considero a simplicidade um simplismo. Eu não acompanhei esse debate sobre as virtudes do romance histórico e as tensões entre o jornalismo e a academia, entre o comunicador de ciência versus o investigador que não sabe comunicar, mas sei que esse tipo de oposições são falsas, porque há historiadores que são extraordinários comunicadores, capazes de simplificar sem deixar de ser rigorosos. Mas também há aqui o problema do oportunista, do indivíduo que, por razões de natureza profissional, política, identitária ou económica, procura apresentar-se como um comunicador sobre um assunto que na verdade desconhece. Mas o que eu acho importante aqui é: porque é que de repente voltamos a discutir ideias como o anti-intelectualismo? A quem é que serve este tipo de debates, incluindo certos intelectuais que têm todo o interesse em criar esse problema para vingarem a sua posição? Isto não se explica com falsas oposições, há muita gente interessada neste problema.

Miguel Bandeira Jerónimo
Miguel Bandeira Jerónimo créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Essa ideia do colonialismo português ser conhecido lá fora por questões como a do trabalho forçado choca com as queixas em Portugal de que é retratado de forma bem mais positiva nos manuais históricos, focando-se, por exemplo, nos méritos dos Descobrimentos. Como se aborda a História sem moralizá-la, sem dizer que um lado foi bom e outro foi mau?

MBJ: Temos de recusar ao máximo quaisquer perguntas que partam do princípio que é possível discutir estas questões a partir do "bom" e do "mau". Independente dessas preocupações que nascem de outro tipo de interesses, o nosso trabalho enquanto especialistas — e aqui partilhamos muito essa questão com o jornalismo — é que, mesmo conhecendo as fragilidades do nosso ofício, temos de preservar até à última nem que seja uma ilusão de neutralidade, de rigor, de distanciamento crítico. O que me leva a essa obsessão, falhando todos os dias, é recusar esse debate do "bom" e do "mau" da História, porque isso não quer dizer nada. Mas há que fazer um apontamento em relação ao nosso país: ainda estamos, apesar de tudo, muito longe de uma lei presidencial que aponte para a necessidade de valorização dos aspetos positivos da colonização como aconteceu há 15 anos em França. Quanto a essa introdução de dinâmicas de diabolização versus valorização da história nacional, há passos que, apesar de tudo, ainda não foram dados e julgo que a melhor maneira para impedir que as autoridades políticas os dêem é fugir a esse tipo de conversa.

É aqui onde entra aquela questão do historiador ter de ser imparcial?

JPM: Nós, como historiadores, muitas vezes temos de fazer um esforço de contenção, e muitas vezes é mal sucedido. É um dos grandes debates e uma das ideias mais comuns neste momento, de que o historiador não pode olhar com os olhos do presente para o passado. Eu não tenho outros e desconfio muito do historiador que diz que consegue sentir, viver, saber como pensavam as pessoas em 1960.

Porquê?

Porque em 1960, tal como agora, muitas pessoas pensavam de formas muito diferentes. Não havia "uma" pessoa de 1962, havia qualquer coisa como três mil milhões. Isso é algo ao qual não podemos fugir. A ideia do não moralizar abre um espaço complexo, porque é muito difícil olhar para determinados processos e não os condenar eticamente, e muitas vezes se diz que certo fenómeno não era condenável na altura, quando o foi para muita gente. Pegando na questão dos manuais escolares, eu confesso que nunca os estudei. Há quem o tenha feito, como a Marta Araújo e a Sílvia Maeso, no centro a que eu e o Miguel pertencemos. É um trabalho muito importante e revelador. E eu percebo um bocadinho essa ideia de que há uma disjunção entre o que são os debates académicos e o que é partilhado, mas acredito também que as coisas estão a mudar um pouco. No entanto, há uma coisa que me faz um bocado confusão. Continuamos a insistir no tema dos manuais escolares, mas sabemos hoje que as crianças e os jovens têm neste momento fontes alternativas para estudar desde muito cedo. E outra coisa que todos sabemos, porque passámos pela escola, é que um manual pode ser dado de forma radicalmente diferente por um ou por outro professor.

MBJ: E há a família também. Há esta velha presunção da escola como o aparelho imparável de transmissão de uma história oficial. Mas se perderem uma semanita a ler uns livros, percebem que o que se questionou durante anos foi a fragilidade desse mesmo aparelho.

JPM: Como é que podemos pensar hoje em dia que os jovens se cingem aos manuais escolares? É óbvio que pode ser um problema e deve ser debatido, mas isso não esgota o problema. E eu noto que nos últimos quatro ou cinco anos houve mudanças em relação ao discurso público. Quando comecei a trabalhar estas questões, e o Miguel ainda há mais tempo, o nacionalismo imperial estava muito mais impregnado do que está hoje. O que este debate gerou foi mudanças no discurso. Há quem lamente imenso isso. Eu não, porque os discursos mudam e são feitos para mudar e para ajustar-se às circunstâncias.

Esse aspeto das famílias é interessante. Há o caso dos retornados e a sua relação com a descolonização.

JPM: Mas nada disso é certo. A minha família, que são quase todos filhos de colonos e que vieram de Angola, tem uma visão crítica do colonialismo português. Obviamente que há algumas ambivalências, mas não têm ilusões. Tendemos a achar que estes fenómenos se reproduzem quase a papel químico, ou seja, se uma pessoa foi colona vai ter uma visão apologética do colonialismo, ou se uma pessoa tem um manual escolar que diz que Portugal foi uma nação ecuménica e lusotropical, vai ter uma visão positiva. Mas como temos visto, a questão é bem mais complexa. Sempre houve gente a questionar-se e hoje até há muito mais fontes à distância de dois segundos. Este é mais um exemplo de uma enorme simplificação de um processo causa-efeito.

MBJ: A mim parece-me que tem de haver sempre o reconhecimento das condições objetivas do nosso ofício enquanto historiadores, as nossas limitações, propósitos, recursos e referências. E perceber — antes de produzir o que quer que seja sobre um determinado tema — quais as condições de produção do nosso conhecimento, tanto de um ponto de vista individual como coletivo e institucional. E sabemos que o nosso exercício é sempre extraordinariamente frágil, com um protocolo cheio de debilidades e ângulos mortos, de desafios que dificilmente poderemos superar se o objetivo for a ilusão de criar um pensamento neutro. Isso já é meio caminho andado para podermos responder a essa pergunta, que não tem resposta porque varia de pessoa para pessoa e de contexto para contexto. Mas hoje é muito mais possível fazê-lo do que durante a ditadura, em que as respostas a estas perguntas seriam muito diferentes. E claro, há muita gente hoje que se arroga a grande libertário e que tenho a certeza absoluta que há 50, 70 anos teria tido um outro conjunto de opções. São tão libertários hoje como seriam sectários há décadas.

Trouxe o tema dos manuais porque há alguns setores da sociedade portuguesa que têm manifestado alguma oposição à forma como os discursos da história estão a mudar. O tema perdeu fulgor com a pandemia, mas houve, por exemplo, discussão quanto à criação da disciplina "História, Culturas e Democracia", havendo a ideia de que esta ia problematizar a história portuguesa, torná-la "má". Estes debates são sintomas de que o nosso país ainda tem um problema a lidar com o seu passado?

JPM: Parafraseando a nossa introdução, quem precisa da História para sentir vergonha ou orgulho está a precisar de outros profissionais. Temos de questionar essa fetichização da história, quando é usada como uma fonte de orgulho e de coesão nacional. Isso é um problema, porque se criam ilusões absolutas, desde logo a ideia de que há uma história intemporal e que agora estamos a transformá-la. O trabalho do historiador, e isto é uma banalidade, é permanentemente refazer a História. Não há nada dramático acerca disso.

MBJ: Pelo contrário, é uma fonte de vitalidade intelectual.

JPM: Nós abordámos isso em dois ensaios do livro. Um deles é acerca dos direitos humanos, porque há uma tradição de invocá-los e dizer que vêm desde o direito romano, que há uma grande progressão linear que leva à Revolução Francesa e ao abolicionismo. Nós tentámos mostrar que os direitos humanos são um produto muito mais contingente, foram o resultado sobretudo do pós-Guerra.

Portanto, tomamos a ideia dos direitos humanos como dado adquirido quando nada na História o fazia prever?

JPM: A ideia de que há uma codificação nacional além dos Estados que garanta direitos independentemente da nacionalidade, credo e raça é uma ideia bastante recente. Claro que podemos encontrar antecessores em tudo, mas esta ideia de que há direitos inalienáveis que são atribuídos pelo único facto de uma pessoa ser um ser humano e ao mesmo tempo que isso tem respaldo legal internacional — apesar da declaração de 1948 nem sequer ser vinculativa — é uma ideia recente. Tanto mais que, quando a declaração foi discutida, as grandes figuras a aparecer foram a Eleanor Roosevelt e o René Cassin, mas nós tentámos mostrar que houve muitas outras figuras, e foi na disputa entre todas elas que de facto se criou o documento. Mas nada garantia em 1948 que tal acontecesse. Os poderes coloniais, por exemplo, tinham muitas reservas face à ideia de uma aplicação universal para populações que, e este era o argumento, "não sabiam entender estes direitos". Ou seja, aquilo que entendemos como o resultado da evolução natural da chamada civilização ocidental é muito mais complexa, cheia de avanços e recuos.

José Pedro Monteiro e Miguel Bandeira Jerónimo
José Pedro Monteiro e Miguel Bandeira Jerónimo créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Desembocamos então numa citação usada no livro: “A História não tem de ser necessariamente útil”. Ou seja, não deve ser utilizada como uma ferramenta. Arrisco a provocação: qual é então o seu propósito?

MBJ: Há uma tendência desde há muito para valorizar o conhecimento em função da sua suposta utilidade, o que tem inúmeros riscos, porque é aversa à criatividade, à inovação e àquilo que é fundamental na ciência, que é o fortuito, a contingência, a descoberta por acaso.

JPM: A descoberta que se torna útil 200 anos depois...

MBJ: Exato. Tudo aquilo que faz da nossa viagem coletiva extraordinária seria reduzido a escombros com esse pensamento. Mas digo que há várias razões pelas quais os conhecimento histórico é útil e sinto-me perfeitamente confortável por uma delas: ele mostra bem os perigos dessa forma de pensar, que reduz o conhecimento à utilidade.

JPM: Conhecer o passado por si só — e nunca o conheceremos por completo — já é suficientemente reconfortante e útil pelo propósito em si de saber, ter curiosidade de como as coisas foram. Isto sabendo que esse conhecimento é sempre limitado, precário e passível de atualização. Isto já me satisfaz suficientemente. E quando dizemos que a História não é “necessariamente útil", é porque as pessoas julgam que determinado saber ou tem uma aplicação imediata, ou é inútil. Se isso é ser inútil, aceitamos de bom grado que a História possa sê-lo.