Ana Gomes perdeu. Se quem perde por cem perde por mil, Ana Gomes perdeu, ainda que tenha sido a mulher com mais votos de sempre nas presidenciais portuguesas. A socialista (não apoiada pelo partido) ficou atrás de Marcelo Rebelo de Sousa — e, assim, atrás da maioria necessária para ser presidente da República. Mais: não conseguiu tirar essa mesma maioria a Marcelo, não impedindo uma eleição sem segunda volta.

Mas a candidatura de Ana Gomes sempre pareceu ser algo mais do que uma corrida ao Palácio de Belém. A diplomata pôs-se nestas eleições quase como mártir, como alguém que sabia difícil (impossível) ganhar, mas que precisava de aqui estar para fazer frente ao candidato que rejeita aquilo que os presidentes juram defender: a Constituição da República Portuguesa.

Assim, ganhou. Ana Gomes não conquistou a nação, mas segurou-a numa teia delicada. Impediu, por uma curta margem, que o segundo lugar destas eleições presidenciais caísse nas mãos de André Ventura. O líder do Chega, que prometeu demitir-se caso ficasse nesta mesma posição, disse que está disponível para ir a eleições internas no partido nacionalista.

Sejamos claros: Ana Gomes perdeu para Marcelo Rebelo de Sousa e quase todas as críticas foram em direção a Marcelo e em direção a quem, no PS, permitiu que os socialistas não tivessem um candidato a sério — apoiando, mesmo que informalmente, a recandidatura do antigo dirigente social-democrata: António Costa, o secretário-geral do partido.

créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

Quando os primeiras projeções foram anunciadas, na sala, os jornalistas aumentaram os sussurros. Não havia apoiantes da candidatura de Ana Gomes à vista, resguardados em duas salas ao lado daquela onde a imprensa aguardava. Cedo vieram os diretos para as televisões e para as rádios, mas nada mais do que isso.

Alguns minutos depois, Paulo Pedroso foi o primeiro a reagir aos números. Entre alguma confusão, o socialista saiu da sala anexa ao espaço onde estavam os jornalistas, presumivelmente para conversar com a candidata. Já no púlpito, não celebrou mais do que a participação dos portugueses — focando-se na personificação das ameaças à Constituição.

Questionado sobre se estas projeções davam uma derrota à esquerda, Paulo Pedroso apontou a uma derrota maior: “Julgo que esta noite vai obrigar todos os quadrantes políticos que se reconhecem na Constituição a pensar o futuro, porque não podemos ignorar que pela primeira vez desde o 25 de Abril há ameaças sérias à Constituição que não ficam apenas no quadro da competição democrática — são um perigo e não apenas uma nova ideia”.

Foi já depois das 22:30, pelo meio de aplausos, que Ana Gomes subiu finalmente ao palco de muitas cores. Ao lado, Isabel Soares, filha do antigo presidente da República. A primeira palavra foi logo para aquele que desde sempre a socialista apontou como principal adversário: "Felicito o professor Marcelo Rebelo de Sousa pela sua reeleição como nosso presidente da República", disse Ana Gomes, que nesta noite falou apenas com Marcelo — nem António Costa, nem qualquer outro dirigente político telefonou à diplomata.

Ao telefone, Ana Gomes deu conta do seu empenho para ajudar Marcelo a "reforçar a democracia e a não dar mais argumentos e respaldo aos que a querem destruir — e que conseguiram tantos votos tirar ao PSD e ao CDS-PP".

Porém, os principais recados da noite não foram para a "direita democrática". Não, os canhões estavam apontados para a esquerda.

"Não consegui o objetivo de levar estas eleições a uma segunda volta, e a responsabilidade por falhar esse objetivo é só minha: assumo-a. Mas cumpri o meu objetivo central — um objetivo patriótico", sublinha Ana Gomes: "Representar o campo dos democratas e progressistas europeístas e impedir que a ultra-direita ascendesse a uma posição de possível alternativa". E vai mais longe: "se eu não tivesse estado nesta disputa, estaríamos hoje a lamentar ainda mais a progressão da extrema direita".

"A minha candidatura visou — e logrou — afirmar os valores de Abril. E dar expressão aos campos do socialismo democrático e da social-democracia europeísta e ecologista". Ana Gomes agitou as bandeiras da diversidade, da regionalização, da justiça e do clima.

A diplomata agradeceu ainda aos socialistas, de norte a sul, que a apoiaram. Mas destacou os membros do governo e os deputados "que deram a cara" e se puseram ao lado dela.

"O elevado nível de abstenção não pode apenas ser atribuído às restrições impostas pela pandemia. Houve quem quisesse desvalorizar estas eleições presidenciais e não tivesse cuidado sequer de assegurar que eram facultados meios alternativos de voto a quem está retido em casa, obrigado a confinar, e à maioria do milhão e meio de portugueses na diáspora, que, indignamente, se viram assim impedidos de votar", denunciou.

"Apesar disso, a afluência às urnas mostrou que a abstenção terá diminuído em termos reais. Isso quer dizer que, de facto, estas eleições interessaram à maior parte dos portugueses, não obstante haver um previsível vencedor à partida."

"Lamento profundamente a não comparência a estas eleições por parte do meu partido, o PS, que assim contribuiu para dar a vitória ao candidato da direita democrática. Foi uma deserção contra a qual alertei e, por isso, decidi apresentar esta candidatura."

créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

Ana Gomes olhou para estas eleições como "uma missão de serviço público num momento de insuportável adversidade pessoal". "Porque nunca me resignei, nem resignarei a que a democracia degenere e fique à mercê de forças antidemocráticas que cavalgam o ressentimento dos cidadãos".

"Há um ano e pouco, nas eleições legislativas, os partidos da esquerda somaram cerca de dois terços dos votos. Nestas presidenciais, preocuparam-se com as suas próprias agendas em vez de convergir — e, assim, concorreram para dar a vitória ao candidato da direita democrática", acusou Ana Gomes. "Se não estivesse no terreno a minha candidatura, acabavam a fazer o jogo da extrema direita, permitindo elevá-la a alternativa", afirmou ainda.

Semanas antes das eleições, Ana Gomes insistia que uma candidatura abrangente da esquerda nunca seria inviabilizada por ela: “não será nunca por mim que a esquerda não converge antes das eleições”, respondeu a Rui Tavares, na rede social Twitter.

Nesse mesmo dia (15 de janeiro), a socialista participou numa ação de solidariedade com Marisa Matias, a candidata apoiada pelo Bloco de Esquerda), que dias antes fora insultada por André Ventura, líder do partido de extrema-direita Chega.

Desafiada por apoiantes de Marisa Matias a participar no gesto simbólico de pintar os lábios de vermelho, numa homenagem à eurodeputada bloquista e num gesto pela liberdade feminina, Ana Gomes prometeu que o faria — e no dia seguinte, pela manhã, partilhou um vídeo acompanhado pela etiqueta do movimento: #VermelhoemBelem. Marisa Matias agradeceu a solidariedade, mensagem que Ana Gomes voltou a partilhar na mesma rede social.

Assumidamente amigas, partilharam os corredores de Bruxelas, proximidade, aliás que tinha já ficado clara no debate onde se juntaram em vários pontos comuns, distinguindo-se sobretudo nas posições face à justiça e forças armadas. No mesmo debate, Ana Gomes revelou até que a partida para uma candidatura conjunta chegou a estar em cima da mesa.

Apesar disso, as candidatas concorreram individualmente. A esquerda tinha, assim, nestas presidenciais, três candidaturas próximas — Ana Gomes, Marisa Matias e João Ferreira —, com pessoas oriundas dos três partidos que protagonizam o apoio aos governos de António Costa (PS, BE e PCP, respetivamente).

Esta fragmentação dos votos à esquerda pode ajudar a explicar a distância entre os resultados de Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa, que beneficiou da quase ausência de competição na direita democrática.

Aliás, a falta de uma frente unitária impossibilitou também uma barreira maior face à ascensão de André Ventura, que durante toda a campanha não teve vergonha em assumir que desejava uma "ditadura", não queria ser presidente de todos os portugueses, determinadas pessoas deixariam de ser bem-vindas em Portugal, tudo isto pelo meio de insultos gratuitos à aparência e ideias dos adversários.

A campanha do deputado extremista procurou pontuar em várias frentes: os apoiantes compararam o arremesso de caixas de pastilhas a uma tentativa de homicídio; a comitiva entrou por exéquias alheias dentro, levando os familiares a pedir que parassem de filmar “a missa por alma da mãe”; ameaças a jornalistas e destruição de viaturas de serviço; jantares com 170 pessoas em pleno período de recolhimento obrigatório.

créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

Nada disso, porém, pareceu afetar a reputação do candidato — e a soma dos votos foi renhida durante toda a noite. Mais uma vez, Ana Gomes aponta o dedo a António Costa: "Quanto à direção do PS, espero que os militantes a ajudem a refletir profundamente e a tirar consequências da sua atuação, que fez eleger o candidato da direita democrática. A direção do PS apostou na diluição das fronteiras políticas entre a esquerda e a direita democráticas — aqui, ao lado da doutora Isabel Soares, faço notar que tal diluição não serve a democracia".

Todavia, Ana Gomes guarda o "sentimento de dever cumprido": "Não desistirei nunca de fazer o que for preciso para defender e reforçar a democracia. O que implica pô-la a dar resposta aos problemas dos cidadãos, a exigir isenção e transparência a quem governa e a exigir o regular e independente funcionamento das outras instituições democráticas", defendeu, terminando o discurso de dez minutos com um "Viva, Portugal".

créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

Ana Gomes vai manter-se militante base do Partido Socialista. E promete que nunca se vai reformar da política enquanto andar neste mundo.

"Há muitos cidadãos muito desapontados, muito desiludidos com a falta de respostas da democracia, com a falta de oportunidades que sentem que deveriam ter e não têm. É exatamente por isso que me bati nesta candidatura, e com muito mais gente, que percebeu que regenerar a democracia passa por saber dar resposta aos anseios e expectativas dos cidadãos. A responsabilidade pelo ressentimento que se expressa em formações de ultra-direita, aqui e noutros países, é daqueles que, estando em funções de responsabilidade, não conseguem fazer os órgãos democráticos responder aos anseios dos cidadãos".

Podemos perguntar o que teria sido sem Ana Gomes. Mas, hoje, são só suposições. A diplomata não ganhou o lugar cimeiro da nação — mas pode muito bem ter dado mais algum tempo de vida ao regime que nos rege. Ana Gomes não ganhou, mas sublinhou o alerta: o país não é a terra que começa aqui, no Parque das Nações, e termina em Benfica. O país não são as praias de areia escura banhadas pelo Tejo, nem as serranias de Loures. Portugal é mais do que Lisboa. E se o grito do Porto foi votar em Ana Gomes, o do interior foi votar em André Ventura. Ambos válidos — mas provavelmente incompatíveis.